segunda-feira, outubro 24, 2022

PIPOCOS E PIPOCAS

 

“... Tem uma bala no meu corpo... E não é bala de coco” (Chico Cesar)

 

João Silva, do Morro dos Desparidos, jantando pipoca, acompanhava em sua televisão de tubo, a feliz conclusão da condução de Roberto Jeffersson à uma carceragem federal. Narrava o repórter que o distinto cidadão disparara cerca de vinte vezes contra policiais federais, arremessara granada, ferira policial, coisa e tal. E pacientemente, a operação policial esperou o distinto se entregar. “Fosse no morro, já tinha levado pipoco”, conjecturava João Silva. E João Silva não teve tempo de assistir à continuação da matéria, um estrondo interrompeu seu entretenimento, sua refeição, suas conjecturas. A porta de seu barraco veio ao chão: “perdeu vagabundo, perdeu vagabundo”, era a polícia invadindo seu lar. Quando a mãe, que embalava balas de coco no cômodo ao lado, chegou, João agonizava ao chão.  Alegou o policial que fora tomado de surpresa à reação de João. João morreu com dois pipocos, segurando uma vasilha com pipoca. Roberto Jeffersson passa bem, obrigado!

terça-feira, outubro 04, 2022

A CULPA NÃO É DO POBRE DE DIREITA, ELE NÃO EXISTE!

 

 

“A pobreza não é uma condição, é o resultado de uma relação de apropriação e exploração que subjuga muitos a poucos. Não há o pobre; há o empobrecido.” (Zózimo de Ítaca)

 

É preciso entender as relações e estruturas que mantém o empobrecido fiel aos que o expropriam. Se não entendermos estas relações, continuaremos condenando o empobrecido em suas escolhas, quando as pode ter, sendo ele refém da maquinaria que o mantém refém de seus expropriadores. Uma vez que entendamos, é quase improvável que consigamos esclarecê-lo de sua subjugada situação. Os que mantém os recursos e mecanismos de empobrecimento do empobrecido, mantém, sobretudo, os espaços discursivos “legitimadores” de sua posição. Púlpitos, cátedras, mídias estão a serviço dos expropriadores. Contra cada um de nós, da consciência que tomamos, há centenas de padres, pastores, professores, articulistas, “formadores de opinião” prontos a convencer o empobrecido que somos nós, e aquilo que defendemos, que os empobrece e não os expropriadores. A nossa ilusão de poder vencer os que empobrece o empobrecido pela mobilização popular, subvertendo as estruturas que o cativam, há de ser sempre frustrada, se ao invés de entendermos os processos de subalternização, passarmos a culpar o subalternizado. O empobrecido carrega em si o expropriador. Por vezes, ele não apenas anseia a vida dos que o empobrece, ele enseja, saindo da situação de empobrecido, tornar-se senhor não de si, mas sobre muitos. Este ensejo lhe é introjetado. Os instrumentos do expropriador são eficazes e eficientes. Nosso empenho discursivo insuficiente.   Não há empobrecido de “esquerda” e empobrecido de “direita”. “Esquerda” e “direita” são termos burgueses, é preciso uma certa condição econômica para se intitular ideologicamente. O empobrecido não tem ideologia tem carências, necessidades, anseios. O voto do empobrecido não é pelo ontem ou pelo amanhã, é pelo agora de suas necessidades. Nosso discurso não os atinge porque, Paulo Freire já havia ensinado: tomada de consciência é um ato pessoal e não se transmite. E, ainda na linha freireana,  é preciso pararmos de falar do empobrecido, objeto social, para o  empobrecido sujeito real e passarmos a falar com ele, deixando-o falar.  Em nossas relações e intervenções junto aos movimentos populares, uma nova práxis precisa ser estabelecida. Não é a partir da consciência que tomamos da realidade, mas é a partir da consciência que o empobrecido tem da sua realidade que devemos criar juntos as estratégias para avançarmos na resistência, e desta à superação, das relações e estruturas que nos subjugam aos que nos expropriam e empobrece. Por ter produzido o empobrecido, o expropriador o conhece e sabe como mantê-lo cativo. Nossa consciência dos processos que produzem o empobrecido é ineficaz sem nosso conhecimento do empobrecido sujeito real, dotado de anseios particulares, muitas vezes espelhantes do caráter do expropriador. E entender o empobrecido é preciso estar com ele, deixando-o se dizer e não dizendo-lhe dele. O empobrecido não se vê na descrição que dele fazemos, mas se vê nos modelos que os expropriadores lhes oferecem como entretenimento.


sábado, outubro 01, 2022

DO CONTO DO VIGÁRIO

 



Vigarista e vigarice são termos oriundos de vigário. Vigário é um termo religioso de origem latina, vicariu, us. Vicariu significa fazer a vez de outro ou de outra coisa. Na tradição católica, o sacerdote durante a administração dos sacramentos faz a vez de Cristo. Assim se confessa que quem administra o sacramento e consagrada a eucaristia é o próprio Cristo e não o sacerdote mesmo. Administrativamente, porém, fora dos ofícios religiosos, nem todo sacerdote é vicário. Administrativamente, vicário é o sacerdote que responde pelo bispo de uma diocese, ou pelo sacerdote titular de uma paróquia – o pároco, em sua ausência. De vicariu deriva vigário. E de vigário, vigarista. Vigarista é o sujeito que se passa por vigário sem sê-lo. A princípio, cair no conto do vigário é acreditar em quem se passa por autoridade religiosa sem que de fato ela seja religiosa. Tornou-se sinônimo de se deixar ser feito de otário, de se deixar levar por vigarices: discursos fraudulentos, conversas enganosas. O Vigarista se passa por vigário com intenção de enganar e roubar. Não o devemos confundir, portanto, com “padres de festa junina”. Estes não têm outra intenção que divertir-nos nas danças de quadrilha e com eles não nos enganamos, nos divertimos. O “padre de festa junina” que tomou a cena do último debate antes das eleições, não é padre de festa junina, ele não estava ali para nos divertir; não é vigário, não estava ali no lugar de outro, pois não representa autoridade religiosa alguma, ele é um embuste. O embuste é uma estratégia de engano. O padre “de festa junina” do debate é uma estratégia que a campanha da familícia encontrou para desviar a atenção de suas vigarices e dá folego à campanha do mitômano – é deste termo que lhe deriva a alcunha: mito . Só cai no conto do vigarista que se passa por vigário apenas quem acha que terá vantagem. É com a vantagem que o otário espera obter que o vigarista conta para aplicar seu golpe. A familicia já nos mostrou que não nos pode oferecer mais que mentiras. O padre de festa junina é a ilustração cabal de suas vigarices. Diz um amigo meu que entre o vigário e o vigarista é preciso distinguir o crente do crédulo. Diz ele: “o crente não crê em tudo e é capaz de questionar o que crê, já o crédulo está disposto a acreditar em qualquer coisa, principalmente se lhe promete vantagem. A relação do crente com o vigário se dá pelos benefícios dos sacramentos. A do crédulo com o vigarista pelas vantagens que este lhe promete. O crente quer estar bem com Deus, o crédulo quer se dar bem. Assim, o crédulo está para o vigarista como o otário para o malandro. E no Brasil há mais crédulos que crentes”. Estão loucos para caírem no conto da famílicia.

quinta-feira, setembro 22, 2022

SALTA DO MUNDO

 


Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa. (Chico Cesar)

 

Hoje estou em estado de choro. O vento me move lágrimas, o sol me move lágrimas, o casal de pássaros, do mamão fazendo refeição, me movem lágrimas. Não são tais encantos os motivos do pranto que seguro. O pranto que seguro é de ontem, do ler que uma criança violentada foi culpabilizada pela violência sofrida. O pranto que me vem de ter é da indignação apenas, é, sobretudo, de uma impotência, de minha inútil presença no mundo ante pessoas que pensam ser inteligente “achar graça de tudo” e não se perceberem se desumanizando. Meu corpo esta noite se recusou a dormir, perambulou tal zumbi pela casa, abriu e fechou portas e janelas, acendeu e apagou as luzes, procurando formular respostas ao babaca que “de tudo acha graça”. Que graça há em uma criança violentada? Não há repostas. Há coisas que não precisam de explicação, e dadas a idiotas nada lhes esclarece, apenas produz mais confusão. Este silenciar aos estúpidos me fere. A rigor, é ultrajante ter que explicar o explicito. Só me vem de chorar minha impotência. E meu choro está seguro por sertralina. Do sol em minha pele me vem de chorar seu inútil calor em meu ser, incapaz ante os que condenam crianças por seu sofrer.  O absurdo desumano, tornado graça para um idiota letrado, me convida ao choro.  Nos ouvidos, um sussurro: “salta, salta do mundo!” Tomo outro comprimido, o choro reprimo. Chico Cesar me salva dos sussurros!

sábado, setembro 17, 2022

BEIJO QUE ANELO

 


 

Saudações, aquela que anelo!

Ultimamente tenho pensado insistentemente em ti. Agora mesmo, falava de ti com a faca.

Insinuante a faca sorria-me, exibindo sua lâmina afiada. O menino,  acordou, em prantos, assustado. Teve um pesadelo.

Cara amada, por que brincas comigo deste modo? Por que não me beijas logo, num acidente de trabalho? Quem sabe um infarto? Poupa-me deste ato.

Insone, ando pela casa, ouço meus comprimidos, sugerem-se todos em um só gole de vodka. Estou preste a dar-lhes ouvido.

Deito-me ao lado da flor que me prende. Brinco com seus cabelos. Beijo-lhe os olhos dormente. Penso escrever-lhe um último texto.

Invade-me de alento, seu despertar sorrindo-me. Seus lábios no meus, expulsa-me os fantasmas. Por hoje eu vivo.

Outra hora, aquela que anelo e de mim escapa, havemos de nos abraçar. De quem será a iniciativa, minha ou tua, do beijo que anelo?

segunda-feira, agosto 29, 2022

RABISCOS

 


 Para me tornar um escritor razoável

Devo nascer umas tantas vezes ainda

“Quem salta da vida,

Não renasce,

Torna-se alma perdida”

Disseram-me

Vou contentando-me

De tecer rabiscos

domingo, agosto 14, 2022

O HUMANO REVIRANDO LIXO E O HUMANO GEEK

 

O pouco gosto em viver que me toma não é explicável. Eu não me sinto bem alojado no mundo, e não faria falta alguma não estando nele. Mas esse não querer ser e estar é em mim, e não me impede de acreditar num mundo outro. Paradoxalmente, eu sou um entusiasta do humano, de suas realizações. Eu costumo dizer a meus alunos que nós somos seres incríveis, capazes de feitos inacreditáveis, detemos o poder de criar, de fazer coisas e realidades inexistentes existirem. Digo a eles que de habitantes de copas de árvores e cavernas sombrias, hoje vislumbramos habitar outros planetas, de seres vulneráveis e fugazes, criamos formas sofisticadas de nos proteger e prolongar nossa existência. Com nosso corpo e com nossa voz, aliando criatividade e fantasia, produzimos artes e esportes de infinita variedade. Nos corremos, saltamos, rolamos, nadamos, com aparato técnico, voamos, nos lançamos no espaço. Nós desenhamos, esculpimos, moldamos, fotografamos, produzimos ritmos e músicas do mais variado estilo e gênero. Do teatro ao cinema, narramo-nos, damos forma às nossas fantasias. Com aparatos técnicos, observamos o macro e o micro, produzimos imagens belíssimas. Digo tudo isto, porque acompanhei, ontem, meus filhos no 1º Poá Geek Festival: que mundo fantástico! Quanta diversidade! Quanta plasticidade e Beleza! Penso nesta infinita capacidade que temos de produzir coisas fantásticas, a partir de nossas fantasias. Saio dali, como meu filho, entusiasmado. Entro na rua do comercio, pessoas revilam o lixo, outras dormem embrulhadas em papeis. Ao dizer a meus alunos das muitas possibilidades e capacidades que temos de produzir coisas belas com nosso corpo, com nossa voz, e coisas incríveis, como lançar satélites ao espaço que nos permitem nos comunicar com os pontos mais remotos da terra, também produzimos miséria, pobreza, violência. Tudo o que se apresenta ante nossos olhos é produto de nossas ações, o belo e o grotesco, o bem e o mal, o sublime e o repugnante. Nada existe fora de nossa ação. Somos nós que produzimos o mundo como ele é, o mundo fantástico e o mundo concreto. Para que o mundo fantástico não se torne um lugar de alienação é preciso dar respostas ao mundo concreto. Antes de habitar outros planetas já deveríamos ter resolvido  a fome, a vida insalubre, a falta de dignidade em que vivem centenas de milhares de seres humanos. Eu me entusiasmei com o universo geek, porque é plástico, enche-me os olhos de encanto, vislumbro o belo do humano. Homens e mulheres revirando o lixo fazem-me sentir menos: esta é uma realidade que já deveríamos ter superado. O entusiasmo pelo humano cede ao grotesco de nossa realidade. Aloja-se em mim o desejo de não ser. Saber de nossa grandeza e me deparar com nossa mesquinhez me deprime.

sábado, agosto 13, 2022

Gozo Escópico

 


 Antes do gozo está o olhar. (Altamiro Borges)

 

Eugênio Onan, antes do sexo real, descobriu a fantasia erótica e a pornografia. Menino desengonçado e raquítico, era tomado, em sua infância, por apalermado. Falava pouco, e quando falava, provocava risos que o envergonhavam. Preferia brincar só, construindo bonecos e potes de barro. Daí nasceu seu apelido na infância: Tijolinho. O acanhamento de Eugênio Onan foi produzido, seu semblante sempre fechado, foi produzido, sua fisionomia melancólica foi produzida. Eugênio Onan é resultado das interações escolares, familiares, comunitárias em que foi se tornando a pessoa que é hoje. Como dizia, antes de conhecer o sexo real, o embolar dos corpos, na troca de suores e fluidos, Eugênio Onan conheceu as narrativas eróticas e a pornografia. O pai de Eugênio tinha uma pequena mercearia e era frequentada por operários de uma fábrica de tecidos. Entre os operários tinha um que estava sempre acompanhado de um livro. Ele era chamado pelos companheiros de Erudito. “Erudito”, disse certa feita um, “o que você está lendo agora?” “Rapaz, nem te conto! É uma história por demais picante!” E mesmo dizendo que não contava, Erudito passou a contá-la:  “[...] e a menina era um pitel de menina, cabeça bem formada, redonda, redondinha, olhos negros vivazes, lânguidos, nariz gracioso, boca formosa, lábios carnudos, sedentos, sorriso brejeiro. Os cabelos trançados à africano. Ela foi descendo o vestido de chita, revelando o corpo. O corpo, o corpo, meus caros, que corpo! Seios pequenos tipo pera, ornados por duas rijas amorinhas. Cintura bem ornada cingida por um cordão de sementes de lágrimas de Nossa Senhora. Depois, lentamente foi baixando a calcinha, mostrando os pentelhos, a frestinha do grilo...”. Eugênio, que brincava por ali, com seus hominhos de barro, não tinha mais que doze anos. Como os operários, ia se deixando levar pela narrativa de Erudito. E desenhando em sua mente aquela personagem, ia sentindo um frêmito descomunal. Mais tarde, umas de suas obras viria a receber o título: “Mulher de peras com amoras.” “Cabra de sorte este pandego! Rapariga assim não se acha não, vice?”, exclamou um dos operários, ao fim da história. Enquanto Erudito estava sempre acompanhado de um livro, Miquéias trazia sempre consigo uma Playboy, ou fotonovelas pornográficas, que, depois de três quatro copos de cachaça, deixava abandonada sobre o balcão. O pai de Eugênio corria a recolher e esconder. A mercearia atendia também mulheres e crianças em busca de itens para casa e guloseimas. Então, era preciso manter um certo decoro. Certa feita, Eugênio voltou furiosíssimo da escola. A professora o fizera ir à frente da sala e ler um paragrafo da cartilha. No que ele leu “plobrema”, a professora, para o riso de muitos, desceu-lhe a régua: “Prrrroblllleeeema, prrrrrrobllllleeeema, seu energúmeno!” “A carrasca”, sua premiadíssima obra, relembra este episódio. Dizia, Eugênio voltou para casa furioso, pudesse aniquilava a professora e todos que dele riam. Passando pela mercearia do pai, deu, antes do pai, com uma das revistas de Miqueias: “o confessionário”. À medida que as cenas enchiam o olhar de Eugênio, sua raiva ia se aplacando. Desde então, Eugenio buscava se antecipar ao pai, no confisco das revistas de Miqueias. As revistas e os contos eróticos, além da escultura e, depois, a pintura, tornaram-se o refúgio de Eugênio contra as aporrinhações dos professores, companheiros de escola e familiares. Hoje lhe são refúgio contra o mundo. Eugênio só se satisfaz alheio ao mundo. A vida concreta o oprime. Moldando suas figuras, dando forma a suas angústias e fantasias, Eugenio  se assegura na existência. Dia destes entrou Eugênio em um Dink’s Bar. No palco, à meia luz, uma “erotic Woman” performava  ao som de Lady Gaga. Pouco a pouco, o vestido preto colado ao corpo foi descendo, revelando-o, liberando os seios miúdos, duas peras ornadas por duas rijas amoras. A cintura, cingida de uma delgada corrente de prata e uma pequena medalha de Santa Maria Madalena, serpenteia de um lado a outro. Na anca direita uma sutil borboleta estampa a pele, parece ganhar vida. Lentamente, a calcinha vai descendo por entre as pernas, revelando uma pelve imberbe. Os olhos de Eugênio fixam-se à fresta. “Vamos fazer amor?” ao pé do ouvido, ouviu Eugênio o convite de uma ruiva. “Eu já cheguei ao gozo, meu bem!”, respondeu Eugênio, tomando em um gole só a dose de vodka. Fora um dia difícil para Eugênio, ele saiu desejando ter uma bomba e mandar tudo aos ares. Cogitou jogar-se debaixo de um carro. “Você precisa dar uma, Eugênio!” disse-lhe um conhecido, andas muito estressado. Eugênio lhe sorriu desanimado, seguindo seu caminho, entrou naquele Dink’s bar. Encontrou numa dançarina à meia luz, seu ponto de sossego.

***

ARTISTA BANANENSE É DESTAQUE EM CHICAGO

 

Abre hoje, no Museum of Contemporary Art de Chicago, a exposição Eugênio Onan: The bananense genius, que coloca à visitação do público norte americano obras do renomado escultor e pintor bananense, Eugênio Onan. As obras de Onan são, como ele mesmo afirma: “para o gozo do olhar”. Em uma entrevista para o The New York Times diz ele: Eu produzo refúgios aos horrores da vida real, em que as relações concretas frustram, humilham, sufocam. Minha obra é para quem não encontra, na vida real, ponto de sustentação e não encontra coragem para dela saltar. Eu prendo meu olhar ao impossível de uma relação e o transformo em minha obra. Meu prazer é escópico, eu projeto ao mundo minhas fantasias, é nelas, tornadas visíveis que me encontro e gozo.” A exposição em Chicago trará a público sua mais recente obra: Medalhinha de Maria Madalena no dorso nu de uma dançarina. – Diário de Bananópolis, 13 de agosto de 2022.

 

domingo, agosto 07, 2022

ENCANTAMENTO E ALUCINAÇÃO

 

“Falar já é sublimar” (Castoriadis)

 

Querida, a manhã é cinza e fria. Levanto-me e preparo o café. Enquanto conjecturo sair ou não para caminhar, penso na eventualidade de encontrar-te. Mas, os deuses do acaso já não mais existem, não mais tramam encontros inesperados. Está em meu caminho uma livraria, passo por ela todos os dias, vez ou outra a frequento, apenas para me inteirar de uma nova publicação. Nunca encontro o título que procuro. No fundo, eu sei que não vou encontrar. Não são os livros e meu interesse por eles que me atraem  à esta livraria. Penso sempre poder encontrar-te, sem aviso, folheando algum exemplar. Seria-me festa no olhar, festa de embriagar a alma de contentamento. Dia deste tive um destes sonhos contigo. Eu era na livraria e buscava o livro do Barthes, o Fragmentos de um discurso Amoroso. Achando-o entre os livros de literatura erótica, folheio-o e nele leio “Espero um telefonema, e essa esperança me angustia mais do que de costume. Tento fazer qualquer coisa e não consigo.” Ouço, então, atrás de mim uma voz conhecida: “A espera é um encantamento”, viro-me e me deparo com teu sorriso seguido de uma explicação: “a pessoa encantada pela espera tem medo de, saindo de onde está, perder o ser que busca encontrar”. Tua presença transborda-me. Abro os braços para acolher-te em mim. Neste instante, desperto. É o vazio a me tonar à realidade. Nessa livraria sempre observo os que entram, batem papo, leem tranquilamente, saboreando um café. Mas é tudo tão cinza, sem vivacidade. Há dias que me vem de me plantar e não arredar pé da livraria, no aguardo de tua presença. É relutante que cedo ao: “Senhor, precisamos fechar!”. A festa de ter-te e encantar-me de tua presença se adia. Sonho e realidade se conluiam contra mim. Não saber de ti é como viver no exílio. E neste sentimento exilar deliro. Toda pessoa por quem passo, toda voz que ouço, é, numa primeira impressão, a tua presença. O encantamento da espera não é apenas imobilizante, é, sobretudo, delirante. O café está pronto, seu aroma preenche a cozinha. É teu perfume que sinto: alucino o que desejo. Escrevendo-o, mantenho-me lúcido.

segunda-feira, julho 18, 2022

DE MINHA LEVIANDADE

 

Conversávamos sobre os pecados capitais. Sabíamos serem sete; não sabíamos nominá-los. Fomos chutando: avareza, luxúria, orgulho – não, orgulho, não –, soberba, falsidade – falsidade, também pareceu-nos que não. Bom, não houve acordo. Surgiram mais que sete. Depois, o que parecia-nos certo ser, discutíamos sua validade nos dias de hoje: a gula, por exemplo. Passamos, então, a reformular os pecados capitais. O que poderia ser hoje alçado a pecado capital. Duas atitudes se destacaram: presunção; leviandade. Segundo o Aurélio, a presunção é a opinião ou o juízo baseado nas aparências; suposição, suspeita. Este é um pecado que os articuladores do direito (juízes, promotores, advogados) não deveriam ter. Foi esse o pecado que atribuí a uma amiga nossa, por ela ser advogada. Mas tem a leviandade. É leviano quem “julga ou procede irrefretidamente; precipitado, inconsiderado”, quem calunia, faz falso testemunho. Este texto é para pedir perdão de meu pecado: fui leviano. Pelo estado de coisa em que encontra nosso sistema jurídico, julguei imponderadamente minha amiga. Na verdade, minha amiga, ao invés da presunçosa, como a julguei, é assaz espontânea e franca na conversa amiga e sabe como poucos manter a reserva e o recolhimento quando se trata de sua atividade profissional.  É uma pessoa divertida, de uma generosidade impar. Querida: perdão, mil vezes perdão, por ter sido tão leviano. Foi bom estar entre amigos, foi um encontro revigorante.


terça-feira, julho 12, 2022

NÃO HÁ ATOS ESTÉREIS

 

Não há atos estéreis, toda ação produz novas ações, não simplesmente reações. A palavra é ato. Pensar é ato. Falar o que pensa produz consequências.  Antes das reações está o resultado desejado do ato, como o resultado não desejado, ambos é de responsabilidade de quem dá início ao ato. O resultado ignorado de um ato é de responsabilidade de quem o inicia. “Somos responsáveis por nossa ignorância. Ignorar não nos exime de culpa.” A palavra é ato, minha fala, atingindo ou não o objetivo desejado, ignorando ou não seu impacto sobre outros é responsabilidade minha. Não posso negar isenção. Eu sou responsável pelo que falo. Palavras matam. Também o silêncio obsequioso é ato, também o silêncio cúmplice é ato, também o silêncio indignado é ato, também o silêncio covarde é ato. Também por meu silêncio, pelas consequências de tal silêncio, sou responsável. O silenciamento também mata. É preciso saber quando falar, porque falar, como falar, a quem falar. É preciso saber o que silenciar, quando silenciar, porque silenciar. É preciso assumirmos a responsabilidade por nossas falas, por aquilo que calamos. O momento requer responsabilidade, não isenção, o que falamos e o que calamos tem alimentado e motivado os que apenas odeiam. Há atos que só podemos desejar, sem contar com ele, o resultado. O ódio, não, o ódio só produz um resultado, e nós o estamos assistindo avolumar-se.

domingo, julho 10, 2022

ELUCUBRAÇÕES INSONES SOBRE SER LIVRE

 


Se faire valoir par de choses que ne depedent point des outres, mais de soi seul, ou renoncer à se faire valor. La Bruyère

Afirme o valor das coisas que não dependa do ponto de vista dos outros, mas apenas de si mesmo, ou renuncie a julgar.

 

As coisas concretas estão aí, a liberdade transita a ausência, aquilo que se retira de sua concretude e deixa de ser sua. O campo da liberdade é o abstraído da concretude objetiva da realidade. A flor, enquanto flor, é concretude, esta aí, fugaz. O ninho do pássaro está aí, logo o pequeno pássaro há de estar, haveremos de contemplar o seu voo. É o que se abstrai desta concretude: o amor que se declara na flor que se doa à amada, a expectativa incerta do voo sem gaiolas – outra presença aí, outra concretude – do pássaro que ainda há de ser, que nos permite a arte, a crença, o conhecimento, o pensamento, a liberdade. Ser livre não é dizer o que é no que é concreto no aí presente. Ser livre é dizer do que é, aquilo que não é do que é, mas é daquele que pode dizer o é do que é. Ser livre é abstrair das coisas concretas o ser e o devir daquele que diz é. Da flor doada se diz do amor do amante. Do voo ainda a ser se diz do anelo daquele que o antecipa e já o contempla.  A liberdade não é deslocada da concretude das coisas, delas brota. Das coisas dadas, das coisas aí, de sua concretude, a liberdade se lança em voos (abstração do movimento concreto do pássaro) que configuram o espírito livre. É abstraindo conceitos, princípios, valores, sentidos da concretude das coisas aí presente que a liberdade se estrutura e significa aquele que pode dizer é, não apenas dizendo o que a coisa é e não pode deixar de ser – o pássaro não pode deixar de ser voo – mas dizendo si mesmo no do que diz da coisa mesma. O pensar é concretude: pensamos. Não somos livres porque pensamos. Somos livres dizendo-nos no que dizemos pensar. Ser livre é dizer si mesmo no que dizemos pensar, não apenas dizer o que pensa pensar. Ser livre é abstrair da concretude das coisas não o que é a coisa mesma, mas o que somos ou pensamos ser.  Eu penso é concretude. Existo não, existo é abstração. Dizer o que pensa é dizer abstrações que diz de si. Existir não é o simples pensar, é o pensar o abstraído no pensar, o abstraído que diz de si. O que penso do voo do pássaro, diz de mim não do pássaro mesmo ou de seu voo, o que penso do simples gesto de doar flores, diz de mim não da flor ou do gesto mesmo de doá-la. Não sou o que penso, mas sou no que digo pensar. Só sou livre se assumo o que digo, dizendo o que penso. Penso, mas só passo a existir dizendo-me no que penso, só sou livre apropriando-me de mim no que digo do que penso. Ser livre é ser senhor de mim mesmo, tornando-me senhor, responsável, por minhas palavras.

domingo, junho 26, 2022

BAQUARA ARARÊ E OS IBIRÓ-BIRÓ

 

“As coisas se deram assim”, começou Baquara Ararê, que entre seu povo quer dizer Sábio como papagaio. “Quando não era ainda burbulê (a lua), cachipiap (o sol), quando não era ainda o mundo, e nele não era ainda os Ibiró-biró, pra pescar e fazer farinha. Quando ainda não existia abá (homem), ainá (mulher), Etê sonhou companheira Ibi“. Ibi, na língua do povo de Baquara Ararê, significa terra, enquanto planeta, que para ele é diferente de alorê, a terra em que se planta e se mora. “Etê”, continuou Baquara Ararê, quando acordou do sonho, Ibi era com Etê. E Etê fez colar de uaiquira (estrelas) para enfeitar Ibi e fez jamana (a chuva) para Ibi se banhar e  euetu (o vento) para Ibi se secar. E Etê fez para Ibi cachipiap (o sol) para Ibi brincar, caçar, plantar, tecer e burbulê (a lua) para Ibi dormir e sonhar. Etê cobriu Ibi  de seu ariê (fogo, espírito). Ibi  alorê (a terra), fez birô (os rios), cuiàda (as matas), cupuaçu, (as árvores) e fez todo tipo de eimap (animais), e tudo presenteou Etê. Etê e Ibi dançaram e cantaram e nadaram nas águas de Yguaçu. E Ibi ficou gravida de Etê, e Ibi fez nascer os Ibiró-biró, que quer dizer filhos de Ibi do rio, porque Ibi tem muitos outros filhos. E Ibi ensinou Ibiró-biró a caçar, pescar e nadar. Ibi ensinou também seus filhos a cantar e dançar e pintar o corpo. E o que os Ibiró-biro aprendem de Ibi, eles ensinam a seus filhos. Os Ibiró-biró fazem presentes para suas esposas: cocares, colares, pulseiras, suas esposas lhes fazem presentes: o peixe assado, a mandioca cozida, o cauim. Quando eles se encontram, Etê e Ibi que neles dançam e seus filhos são filhos de Etê e Ibi. Toda criança Ibiró-biró é sagrada.  É Etê e Ibi continuando a criação.” Depois disto, Babaquara Ararê sumiu no profundo das matas, onde seu povo não se deixa encontrar.

 

domingo, junho 19, 2022

O BEATO AUSTERO

 

No centro do quintal erguia-se o mastro e em seu topo os estandartes de Santo Antônio, São Pedro e São João. Da ponta do mastro fios com bandeiras se esticavam por mastros ao seu redor formando uma tenda multicolorida: era uma belezura de olhar. À noitinha, então, quando as estrelas da imensidão céu lhes vinha permear, a mistura de cores e luz era uma festa pro olhar. Vó preparava os doces e os quitutes: milho, batata doce na brasa, pipoca, canjica, pé de moleque, doce de abobara, paçoca. Tia preparava o quentão, o vinho quente, os caldos: feijão, couve, mandioca. Os tios armavam a fogueira, animavam as noites com musica, cantos e causos. Em causos, no entanto, ninguém superava tia: “Cê compadre”, era tia iniciando um causo. Silenciava a noite! Só o fogo mantinha o seu crepitar, como que combinado com tia. “Cê num soube de compadre Austero, que se dizia todo prosa, todo homem valente, cheio de coragem! Cê num soube, que o formoso se aprumô todo em dia de guardar penitência: “isto é bestera de padre, num dou respeito a quem veste saia não!” “Então, Sussuarana que te coma”, esbravejava a mãe, que, em vão, tentava lhe endireitar as ideias. E foi cumpadre Austero, em dia santo, pra cidade, todo garboso, cheio do perfume, da goma nos cabelos, parecendo um daqueles doutorzim da cidade, sabe? Mas, cumpadre Austero deu foi com burros n’água! Se tem coisa que mulher dama respeita é dia santo. Cumpadre Austero não encontrou um lupanar aberto. Só um ou outro buteco, com um ou outro desconsolado como cumpadre.  Depois de entornar umas, num destes butecos, amofinado, por não encontrar colo pra alugar, Cumpadre Austero, tomou rumo de casa, morrinhando praga contra os costumes “desta gente ignorante, apegada a crendices de padres velhacos”.  Quando cumpadre Austero está por chegar na picada do Jambeiro,   não é que cumpadre Austero se dá com uma moçoila de formosura sem igual? Pro cê ter ideia, cumpadre, diz que Ritinha, de cumadre Jacobina, perto desta,  perde é de longe em formosura. Imagina cumpadre: Ritinha! Num é outra não viu, é Ritinha!  “Eita, que a noite num tá perdida!”, entusiasmou o cumprade Austero e se galanteou pra riba da moça. E a moça, cumpadre,  não se fez de difícil não, ao contrario, foi é se oferecendo toda, sem pudor algum. E cumpadre Austero foi se enleando com a moça, e a moça foi se enleando com cumpadre Austero, e foram se embreando pela mata e se deram lá no chapadão do riacho. E a noite foi cedendo vez à aurora e o dia foi nascendo, cumpadre, e as lavadeira foram chegando com suas cantorias pra bater pano no chapadão. Foi um susto só, cumpadre. O mulheril calou o vozeiro, estatelou os olhos, engasgou a língua, até que rompeu da garganta de cumadre Tiana, o crendos padre e a Ave Maria, esconjurando uma onça-parda de beleza sem igual, descansando no lajedo. A bichana, cumpadre, com a rezaria de cumadre Tiana, agora acompanhada do mulheril, saltou ligeira nas águas do ribeirão e deu-se sumiço. Mas antes, cumpadre, a maldita cuspiu de si cumpadre Austero, como este veio ao mundo. Uns dizem,  cumpadre, que cumpadre Austero se tornou beato e vive de lupanar em lupanar clamando arrependimento e cobrando que se faça penitência. Outros, no entanto, dizem, cumpadre, que ele caminha pelas matas à noitinha procurando encontrar a formosa Sussuarana. É preciso ouvir o fogo crepitando, é preciso contemplar o céu permeado de bandeiras e estrelas para se ouvir os causos de tia. Viva Santo Antônio, Viva São João, Viva são Pedro e os encantos que nos oferecem!

domingo, junho 05, 2022

LEITURA


Perguntaram-me dos meus hábitos de leitura. Eu respondi que leio compulsivamente. Perguntaram-me de minha preferência de suporte: livro físico ou digital. Eu disse gostar do livro físico, mas leio em qualquer suporte: Lousa, Quadro de aviso, letreiros, anúncios em poste, porta de banheiro, bula de remédio, muros e paredes. Tudo eu leio. Não leio só o escrito eu disse a quem me indagava. Leio canto de pássaros, vento soprando, flores se abrindo, chuva caindo. Eu leio semblantes, olhos e olhares, contornos de lábios esboçando sorriso, insinuando um beijo. Eu leio a dor e a alegria em lágrimas escorrendo. Leio a acolhida num abraço, a despedida em acenos. Leio punhos cerrados, dedo em riste, apertos de mãos, uma mão estendida oferecendo apoio. Leio gritos de fúria, de indignação, de emoção. Leio o silêncio obsequioso ante o opressor, e a palavra presa à garganta que diz de amor. Mas de tudo o que leio, a leitura a que sempre volto, aquela em que mais me enleio, é a do calor e do frêmito de teu corpo enquanto teus lábios eu folheio.


terça-feira, maio 31, 2022

UM HOMEM DE MÁ QUALIDADE

 

Bom dia querida!

 

Não foi para ti que escrevi o que segue, mas descreve-me por esses dias.

 

[...] Os dias estão cinzas e as horas se desbotam. Os minutos se arrastam numa prolongada tristeza.

A minha reserva de serotonina anda ladeira a abaixo, mesmo consumindo triptofano. Meu estado de humor é lastimável, tudo me aborrece e exaspera. Insônia, falta de concentração, confusão mental e a expressão vazia e melancólica no olhar descrevem-me.

A vontade de evadir-me, de não ser, é pungente. A faca tem conversado comigo, digo-lhe preferir cicuta.

Te amo!

Amor, no entanto, não produz serotonina.

Minha felicidade, e a ela eu renuncio, depende dos artifícios químicos.

Mesmo que amargo, recebas meu beijo!

[...]

 

Querida, não te preocupes, é só literatura de má qualidade! Ainda tenho que pagar-te um café!

Que tenhas uma semana bonita!

quinta-feira, maio 26, 2022

O BOM CRISTÃO

 

Em memória de Genivaldo de Jesus Santos1

 

Estava Jesus reunido com seus discípulos quando um deles lhe perguntou: “Rabi, que quer dizer mestre, quem havemos de considerar bom cristão?” E Jesus respondeu-lhe: “Nem todo aquele que diz: “Senhor! Senhor!”, é digno de meu nome” e contou-lhes a seguinte parábola:

“Dois pastores, antes de saírem para pastorear, tomaram da Palavra, leram um Salmo, oraram ao Pai, pedindo-lhe a divina benção. Depois, seguiram para o pasto. Suspeitando de um que pelo pasto caminhava, o abordaram, o agrediram e o colocaram em uma cova, para que este morresse sufocado. Imediatamente, a noticia chegou aos ouvidos de todos. E teve aqueles que os condenaram, pois a função deles era proteger as ovelhas sem se tornarem algozes dos lobos. E outros os aplaudiram, pois, julgavam o inocente morto um dano colateral. Entendiam que para evitar risco às ovelhas a operação dos pastores se justificava. E mesmo não sendo deles a tarefa de executar lobos, os que os aplaudiam diziam: “poderia ser um lobo, nunca se sabe; é melhor prevenir que remediar”

E Jesus, então, perguntou a seus discípulos: “O que vos parece, quem é digno de meu nome, os que condenaram os pastores ou os que os cobriu de elogios”.

Os discípulos guardaram silêncio. Jesus, então lhes observou: “Em verdade, em verdade vos digo, chegará a hora em que os indignos de meu nome serão honrados, e em meu nome farão fama e fortuna e os meus passarão por esquerdistas, defensores dos direitos humanos”. E Jesus concluiu: “Amanhã hão de colocar em minha boca o seguinte ensinamento: “Armai-vos uns aos outros! Mas eu vos digo: o meu reino não é dos sacerdotes e pastores; meu reino é dos mansos e humildes, dos pobres e humilhados, de todo injustiçado, creiam ou não em mim.”

 

1 - Genivaldo de Jesus Santos, em 25 de maio de 2022, foi covardemente assassinado por asfixia em uma câmara de gás. Os assassinos são bons cristãos.

domingo, maio 15, 2022

Marreta


Em minha infância, a cidade era um canteiro de obras. Próximo de casa havia, então, um alojamento de operários, acredito que deste complexo comercial. Eu me recordo como se fosse hoje, toda esta área era um enorme bosque de vegetação rasteira e árvores de pequeno porte, algumas frutíferas.  Ali, o estacionamento, era um descampado, tinha um campo de futebol, em que, também empinávamos pipa. Então vieram as máquinas e os operários, pouco a pouco, tudo foi se transformando comercio e prédios residenciais. Aos domingos, os operários organizavam partidas de futebol, rodas de samba, churrascadas. Um domingo, houve um jogo entre um time organizado pelos operários e o time da comunidade, quem perdesse pagava a cerveja. Seria um dos últimos jogos no campo, dias depois começariam trabalhos de fundação nele. Eu tinha por volta de dez anos, acompanhei pai para assistir a partida. Não havia arquibancadas, operários e moradores se misturavam ao redor do campo. Não havia rivalidade, apenas apostas animadas para um ou outro dos times. O árido era fraterno e festivo. Os jogadores se trocavam no meio do campo, e tinha lá o Marreta, um candango de pouco mais de vinte anos. Assim chamavam o sujeito, porque, segundo dizem, ele quebrava colunas de cimento no punho. E Marreta, embora moço, era mesmo um sujeito forte, de tronco vigoroso, braços e pernas que eram toras. E Marreta, como se estivesse na privacidade de seu banheiro, despiu-se aos olhos de todos, para envergar o uniforme dos operários. Britadeira seria apelido mais digno. O ponteiro do Marreta era algo impressionante. Eu não sei dizer de outros, mas eu me desliguei, entrei em vertigem. do jogo, do pós jogo já não sei relatar quase nada. Mas o ponteiro do Marreta penetrará minha alma. Depois daquele domingo, passei a espiar pai no banho. Mãe um dia pegou. Tomei uma baita surra. Pai pedia explicações. Mãe apenas respondia: “ele, apontava para mim, sabe. É o suficiente!” Depois da surra, mãe levou-me no padre, na mãe de santo, no pastor, no psicólogo. Mãe só desapoquentou quando lhe apresentei Clarice. Mas, mesmo casado, eu não deixava de procurar o “ponteiro mágico”. Visito banheiros de academias, bares, rodoviárias, vou a exibições de gogoboys, consumo pornografia do gênero, mas nada, nada se compara ao instrumento de Marreta. Desde aquele domingo vertiginoso, acordo, no meio da noite, molhado, sufocado.  Hoje cedo chegou-me um corpo para ser preparado, sou tanatopraxista. Que Marreta descanse em paz! E que no outro plano ele não sinta falta de nada.

sábado, maio 07, 2022

QUEM NÃO SABE PARA ONDE VAI, FICA ONDE ESTÁ!

 

Já um tanto ébrio, Pedro Augusto tomou o ônibus sem observar o destino. Habituado com o trajeto, Pedro Augusto, postado à janela, ia admirando a paisagem de luzes cintilantes das lojas e bares no cair da noite. Pedro Augusto cochilou e não deu conta que o ônibus, a certa altura saiu de seu habituado trajeto. Quando despertou, ainda embriagado, já não mais reconhecia a paisagem lá fora. Ruas estreitas, escuras, casas esquálidas, empilhadas umas sobre as outras, o cheiro azedo de esgoto. É certo que onde Pedro Augusto morava, a paisagem não era outra, mas aquela lhe era estranha. Pedro Augusto procurando inteirar-se qual era o destino daquele ônibus indagou o passageiro ao lado: “quem não sabe para onde vai, fica onde está!”, foi bruta, foi seca, foi dura a resposta. Pedro Augusto deu-se com o semblante do passageiro: esquálido, sombrio, ameaçador. Pedro Augusto cogitou descer do ônibus e tomar outro no sentido contrario, mas a paisagem lá fora tornava-se deserta e sombria. Pedro Augusto, em desassossego com o passageiro ao lado, resolveu por continuar a viagem até seu destino final. Lá fora a penumbra reinava. Pedro Augusto tomara um ônibus sem destino.

quinta-feira, abril 28, 2022

QUAL O VALOR?

  “O operário produz valor desvalorizando-se”

 

Um médico espera filhos, filhas, médicos.

O advogado espera filhos, filhas, advogados.

Os juízes esperam filhos, filhas, juízes.

E cantores e atores e jogadores, todos esperam igual destino dos filhos, filhas.

O operário não, o operário não espera filhos, filhas, operários.

Esperam filhos doutores

E todos contam com os professores,

Que, tais quais todos, não esperam filhos, filhas, professores!

Que valor tem algo que ninguém deseja ao filho, filha?

quarta-feira, abril 27, 2022

EU RASO


Eu não perdi a perspectiva das coisas

Não! As vejo e as descrevo tais quais.

O que percebo é carecer-me profundidade

De onde lanço meu olhar sei dos contornos,

Das formas e das cores de uma superfície.

E sei-me, sobremodo, raso. 


quarta-feira, abril 20, 2022

SOBRE PATENTES E COVARDIA

 

 

SOBRE PATENTES E COVARDIA

 

Quando criança, assisti no bar de pai um debate que acabou em agressão. Um falava das maravilhas da “gloriosa redentora”, na expressão de Stanislaw Ponte Preta. Outro falava da inflação, do custo de vida, de escolas sucateadas, de obras inacabadas, de pontes que começavam e terminavam sem ligar “lugar nenhum a nenhum lugar”. O tal das loas à “gloriosa redentora” definiu o debate com um safanão do pé do ouvido do oponente. Não houve quem protestasse, o tipo ostentava patente, o outro era apenas “um vagabundo, defensor de bandidos, merecia era pau de arara.” Vó percebeu meu desacerto com o ocorrido: “Fio, o orgulho de um patenteado é a covardia e a covardia triunfa onde há medo”. A lei da anistia impede o julgamento e a penalização dos covardes, mas não impede que a história venha à luz. A “revolução democrática” que orgulha os covardes foi, na verdade, um período de desumanidade e é preciso desumanidade para não se sentir enojado com o que veio à luz no domingo de Páscoa. “Fio, dizia vó, o tanto de estrelas que um ostenta na farda é o tanto de desumanidade a que se sujeita.” E é preciso muita desumanidade para se sair com esta, diante da comprovação de que as forças armadas (são minúsculas mesmo) praticaram perseguição e tortura durante a “gloriosa redentora”: “Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém. A minha não estragou.” Vó não se espantaria, talvez disse-me: “Fio, em alguns a indiferença é simulacro de vergonha e covardia.” A honra militar se alimenta deste simulacro e se mantém de ameaças.

domingo, abril 10, 2022

MOJITO COM SAL


 Nos jogos de teus desejos

Vieste-me de barwoman

Trazendo-me um drink

Beijaste-me com delicadeza

Rum e hortelã

Segredando-me

“O segredo está no sal!”

Sentando-me em teu colo

“Te ensino a receita”

E assim o fez

“Beija-me com demorada volúpia

Acaricie meu corpo

Cafunei meus pentelhos

Aninhe teus dedos

Entre minhas pernas

Brinque prazenteiro

Suga-me os mamilos

Ora delicado, ora desmedidamente

E desça teus lábios por meu corpo

Misturando o mojito ao sal de meu suor

E ao acido de minha Vênus

Quero sentir tua língua sugando-me

Enquanto me preparas

Para que eu te engula

Em minhas entranhas

E me lambuze

Em nosso gozo!”

 

 

 

domingo, março 27, 2022

DA FILOSOFIA

 

“Eu falo de coisas que não sei, por isso, as falo com incertezas.” (Rodner Lúcio)

 

Eu gosto de falar com pessoas, adultas ou jovens, que queiram ampliar as suas e as minhas capacidades de compreensão de mim, de si, da realidade que nos produzimos. Eu gosto de conversas que evidenciam a minha ignorância e me instiguem a querer saber, e gosto de falar com pessoas que queiram ser autônomas, capazes de pensarem por si mesmas. Agora com pessoas, adultas ou jovens, que já tudo sabem e se fartam de suas certezas, que se mostram indiferentes ao modo como são conduzidas à “normalidade” das coisas, com aquelas que encontram no Google, nas redes sociais, nos telejornais, as respostas que lhes cai melhor, a estas eu me reservo o direito da escuta entediada, desinteressada.

Então eu não gosto de ensinar, eu não sei ensinar. Ensinar supõe que você sabe, e eu não sei. Eu estou sempre me interessando por saber. Costumo dizer a meus alunos que eu não lhes ensino nada, que apenas falo com eles de coisas que me interessam saber. Há um bom tempo, eu brinco com a filosofia, ou a filosofia brinca comigo. Eu me aproximo, ela se afasta, eu me afasto ela me seduz. Quando penso já ter clareza de algo, este algo me desafia, numa pergunta de um aluno perspicaz.  

Há a noção de que a Filosofia ensina a pensar. Não é verdade. Pensar é um patrimônio de todas as pessoas, pensar nos diferencia das demais espécies. Nós não ensinamos as pessoas a respirarem, nós não ensinamos as pessoas a correrem. As pessoas andam, correm, pensam. Eu não ensino a pensar, porque as pessoas pensam. A Filosofia é um produto do pensamento, como a arte é um produto do pensamento, como um verso é produto do pensamento. Há formas de respirar, há formas de correr, há formas de pensar. Um nadador usa a respiração de modo diverso de um maratonista e de um yoga. Um maratonista não corre do mesmo modo que um fundista.  Um filósofo pensa a realidade de um modo diverso do historiador, de um biólogo, de um sacerdote, de um poeta, da pessoa comum, sufocada de afazeres, sufocada de informações e distrações, que quase “não respira”, que quase “não pensa”. Eu não sei ensinar a pensar, a filosofia não ensina a pensar.

Eu sei falar do que penso, e sei que penso um tanto de absurdos, um tanto de excrescências, que não falo tudo o que penso. Falar é uma responsabilidade. A fala discrimina, ofende, humilha, incita, mata. É preciso responsabilidade com a fala. É preciso inverter o “eu falo o que penso”. “Eu pensei antes de falar, e falo o que pensei”, seria o certo. A filosofia apenas coloca o pensar antes do falar, é a arte de suspender a fala e de falar incerto de saber. Quem suspende a fala e a repensa não dita certezas, a fala filosófica é aporética. “Só abra a boca quando tiver certeza!”, para quem pensa é uma impropriedade. Quem pensa está sempre incerto, e se abre a boca é justamente para expor suas incertezas.

Eu não sei falar do que sei, gosto de falar do que me interessa saber. E desde meus quinze anos me interesso por filosofia.   

sábado, março 26, 2022

IONE-ME


 

DEPOIS DE ERGUIDO TUDO TORNA A SER RUÍNAS

 A ordem surge do caos e ao caos retorna

É do conflito que nasce o desejo da fugaz tranquilidade

O conhecimento surge da ignorância, que se renova todas as manhãs.

Do desentendimento nasce o esclarecimento sempre cedendo às cegueiras da razão

As civilizações prosperam do culto às barbáries.

Não obstante todo avanço, o retrocesso esta sempre adiante.

E o homem, que entre amigos sorri e festeja, em si traz apenas o desejo de não ser.

Viver é caminhar para a morte.

terça-feira, março 08, 2022

QUE HOMEM EU DEVO SER?

 

“Eles são homens e fizeram porque aprenderam que podiam fazer” (Pitty)*

 

Eu já fiz muita coisa que contribui com a cultura do macho abusivo, escroto. Já assinei revista pornográfica, já assinei sites pornográficos, já participei de despedidas de solteiro em Drinks Bar, e já frequentei Drinks bar sem a despedida de solteiro. Já incentivei concursos de misses, já fui em festas e baladas apenas para “caçar”, já fiz psiu e chamei a menina de tudo aquilo que um homem tóxico chama uma mulher que passa por seu caminho. Eu aprendi que as atividades domésticas é coisa de mulher, e que mulher, não tem querer ante os desejos dos homens, mesmo quando seus desejos sejam inconfessáveis. Dizem por ai que somos produto da cultura. Se assim é, poderia me escusar então: Eu sou o que a minha cultura é! Cultura se escolhe? Creio que não! Temos uma outra cultura? Parece-me que não. Então eu sou machista e meu pai, meus irmãos e minha esposa, minha mãe, minhas irmãs e cunhadas também são. Mas a cultura não é um dado estático, permanente. A cultura não é dada, é produto humano, por isso é cambiante, pode ser transformada. E é mudando nosso modo de ser e relacionar-se que mudamos a cultura. E a cultura do macho abusivo, escroto, precisa ser combatida. Então, o que me tenho proposto há alguns anos é abandonar o como eu me relaciono com as mulheres, compreender minha cultura, reconhecer os abusos que a estruturam e assumir nova postura, abandonar o macho abusivo. Diria que tenho me proposto nascer uma segunda vez, isto é, dar-me um novo nascimento, e este nascer não é algo que se dá do dia para a noite, há todo um processo de gestação.  Neste processo, permeado de contradições, eu tenho evitado amigos misóginos, machistas, racistas, homofóbicos etc. Não participo de conversas sobre mulheres sem que elas estejam presentes. Assim, mesmo vivendo em uma sociedade ainda marcada pelo machismo, tenho me proposto rever atitudes, comportamentos, formas de pensar.  Precisamos refundar as relações entre homens e mulheres, produzir uma nova cultura, em que a dignidade da pessoa enquanto pessoa esteja antes de seu gênero e de suas opções sexuais. Essa nova cultura só se dará se homens e mulheres estiverem juntos, combatendo o que precisa ser combatido: a visão redutora e submissa do feminino e a exaltação das “virtudes” do macho alfa e seus desejos. Para isto, é preciso condenar toda e qualquer forma de violência: física, psicológica, econômica, política, religiosa, contra as mulheres e dar-lhes a palavra. É preciso ouvir as mulheres: que sejam elas a nos dizer como querem ser conquistadas e amadas, que homens elas esperam que sejamos, que cultura devemos produzir!

 

* A epigrafe é referente a um comentário da cantora Pitty sobre o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos, no Rio de Janeiro, em maio de 2016.

sábado, fevereiro 19, 2022

FOI ALI E NÃO VOLTOU

Era de Tutu dizer: “vou ali e volto já!” E Tutu se perdia no mundo com os amigos, deixando a mãe a perder os cabelos de preocupação. Quando a mãe bronqueava, Tutu, choramingando, respondia: “só fui ali! Nem se pode mais ir ali?”, entrava no banho e depois se trancava no quarto. O ali de Tutu era a rua, o campinho de terra, a lagoa, o sitio do Capitão Oswaldo, onde ele e os amiguinhos “roubavam” goiaba, ameixa, jambo. Numa dessas, Tutu tomou um tiro de sal, que escondeu da mãe. “Era tomar uma surra por cima!”, dizia. O tempo passou, ele e os amigos cresceram, constituíram família, e agora se encontravam em rodas de cervejas, depois de uma pelada. Tutu manteve a mania de dizer “vou ali e volto já!” Ao sair para o trabalho cumpria um ritual: beijava a esposa, Marinalva; dava a benção aos filhos, Thiago, Nathalia, Kauã, beijando-os também, acarinhava o cachorro, Ajax. “Vou ali e volto já”, dizia e partia. Hoje Tutu não voltou, pois deu no noticiário: “Num caso isolado, policial confunde o trabalhador Antonio Gonçalves de Silva com marginal e o assassina.” Tutu foi ali e não voltou.     


terça-feira, fevereiro 15, 2022

É CADA COISA EM BANANÓPOLIS

 


Antes que me venham processar, devo esclarecer que o que segue acontece em Bananópolis, uma republiqueta abaixo do Equador. No Brasil tal coisa seria impensável. Somos um povo avançado. Mas Bananópolis é outro mundo. Por lá surgiu um grupo político avesso à política, o Movimento Bananópolis Livre, também conhecido como Movimento dos Beócios Literais. É um grupo de molecotes de classe média se achando elite, que tinham como mestre um astrólogo da Virginia, Estados Unidos. Os meninos esbanjam arrogância, mas são parvos. Um deles, Quizimnazi, assumiu, para combater a política, um posto político. Tornou-se deputado federativo de Bananópolis. Quinzimnazi levou às instâncias do parlamento um projeto de lei limitando a judiciação de caluniadores e difamadores, pratica comum de Quizimnazi e o seu Movimento de Beócios Literais.  Ocorre que Quizimnazi indagado sobre a legitimidade de existir um partido político cujo estatuto prevê o assassinato de determinados grupos humanos, ele respondeu convicto que a proibição de tal partido era equivocada. Para proteger-se das críticas e questionamentos, Quizimnazi enfiou seu projeto parlamentar em lugar que não cabe mencionar aqui e promete judicializar quem o associar aos devotos da aberrante ideia de um partido abjeto. Personagens apequenados como Quizimnazi e Movimentos como o dos Bovinos Literais só são possíveis em Bananópolis. Fosse no Brasil estaríamos despreocupados, seriam motivo de comiseração.  Que os meninos de Bananóplis não me queiram processar, mas, na boa: eles são facistóides.

quinta-feira, janeiro 27, 2022

DA DIFERENÇA

 

“A diferença é uma intuição imediata. Abrimos os olhos e o diferente se manifesta como outro ante nós. Esta intuição primeira nos desestabiliza, nos confronta, nos remete a nós mesmos. Sabemos de nós diante do outro. Depois damos conta das semelhanças e dessemelhanças que nos aproximam ou afastam do outro. A partir de mim, julgo que o outro tem as mesmas necessidades, os mesmos desejos, os mesmos receios que eu. E o outro torna-se me amigável ou ameaçador. A meu juízo, ele deseja o mundo tanto quanto eu. E entre a possibilidade de partilhar ou consumir egoisticamente o mundo, com o outro eu passo a disputar o mundo. A diferença não funda a desigualdade, a diferença dá-nos a alteridade. A desigualdade nasce das disputas pelo mundo. É do desejo de desfrutar o mundo e submeter o outro aos meus desejos, isto é, de desfrutá-lo também, que se dá a desigualdade. A igualdade não é outra coisa que o ato do outro de resistir à imposição de meus desejos, para que possa fruir de seus próprios desejos. A diferença não se pode apagar: basta abrirmos os olhos e ela nos sorri. A igualdade se negocia todas as manhãs. Não há igualdade se não se respeita as diferenças e se não se compartilha o mundo.” (Rodner Lúcio)

quarta-feira, janeiro 19, 2022

ABSTRAÇÃO

O abstrato não é algo que brota na mente, é algo que se abstrai de algo concreto. Do nada não se abstrai nada. De abstrações também se abstrai; a abstração primeira é sempre de algo concreto. O impossível do absoluto é ele ser abstração de abstração à enésima potência.

Eu vejo um pássaro voando, pássaro é abstração de algo que voa. Voar é abstração de uma forma especifica de deslocamento.  Desse algo voando eu digo ser pássaro e não avião, abstração de um outro algo, que também se desloca no ar. Do pássaro, e não de aviões, de seu voo eu abstraio liberdade.  Da criança na areia, construindo castelos, banhando os pés na água, abstraio contentamento e torno-o desejo. Desejamos abstrações.  O desejo anda lá nas esferas do absoluto, embora também nasça do concreto.

É um fim de tarde. Os pescadores arrematam os últimos preparativos antes de lançarem-se ao mar. Lá no horizonte o sol vai empalidecendo-se, dando lugar aos primeiros vestígios de uma noite que promete estrelada. Acompanho os últimos turistas recolhendo suas tralhas, pondo-se a caminho das pousadas: “amanhã tem mais!”, grita um ao filho que teima em continuar um com o mar.

Tomo um gole da cerveja e corro a costas da mão pelos lábios. Sorris-me. Teu sorriso é vida à enésima potência, abstraio. O desejo é que o tempo pare.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

EM TEUS LÁBIOS

 

Dei-me com o fenômeno

Desafiando-me

Dei de ombros

Não quero saber de mim

Por que daria conta da coisa em si?

“Eu te apelo em ti”

Disse-me o gaiato

“Soy latinoamericano mi compadre!”

Sem cogitar, respondi

O fenômeno esvaneceu-se

Mergulhei-me em teus lábios.

segunda-feira, janeiro 10, 2022

DA NATUREZA E NOSSA MAIOR TRAGÉDIA

 

A natureza não é algo estático. Não, ela se movimenta. Água corre, se avoluma, transborda. Pedras se desgastam, se desprendem, fendam, rolam. Terra encharca, desmorona, erode. Árvores caem. A natureza é movimento. Ela não se vinga das ações humanas sobre ela. Ela simplesmente tem suas leis e as segue peremptoriamente. As pessoas são dotadas, umas mais, outras menos, devidos a fatores socioeconômicos, de inteligência. Esta dotação nos capacita, uns mais, outros menos, a entender as leis que regem a natureza, seus ciclos, seus movimentos. Desta capacidade, uns mais, outros menos, acreditam ser possível dominar e explorar ad infinitum a natureza, tirando dela seu sustento, seu conforto, sua segurança, seu lazer. Alguns incluem glória e poder ao pacote. Mas é da inteligência não apenas a capacidade de entender as leis da natureza e de usufruir deste conhecimento; é da inteligência também observar, avaliar, destacar situações temerárias, que colocam em risco o bem estar, a segurança, a integridade física e mental, a vida das pessoas, e procurar recursos preventivos. Uma árvore que cai numa floresta sem dela darmos conta é um evento natural, uma onda que impacta contra uma rocha e a faz rolar para dentro do mar, se não nos atinge, é um evento natural. Um cisco que cai de uma palmeira e infecta o olho desatento de uma pessoa, já não é apenas um evento natural. Teve ali uma displicência humana. Não há acidentes naturais onde há a presença humana. Há falta de bom senso, de inteligência, de descaso. Desrespeitamos nossa capacidade de saber, de aprender, de usar o que já sabemos ou deveríamos já saber, de evitar “acidentes”. Não, não é a natureza reagindo, se vingando. A natureza tem leis, não sentimentos. Somos nós, presunçosos ou displicentes que somos, que escolhemos ignorar o que já sabemos – ignorar o que se sabe é algo criminoso – e não fazer caso dos riscos a que nos submetemos.  Não fossem as vidas perdidas e as pessoas sequeladas, o desprendimento da rocha em Capitólio seria um espetáculo: é um espetáculo. A forma como desprende, tomba e impacta contra a água é lindo. Nossa presença tornou-o uma tragédia. Cabe-nos lamentar pelas vidas perdidas, mas não poderemos dizer que não sabíamos que poderia acontecer e que poderíamos ter evitado ou amenizado a gravidade, para que a fruição da natureza não se tornasse uma tragédia. Não, não foi a natureza nos punindo – li isto em algum lugar –. Ela não estava lá de espreita apenas esperando a nossa aproximação para se lançar contra nós. Nós, por descaso ou displicência, descuidamos do que estava para acontecer.  Somos nós que, podendo, nos recusamos a fazer caso do que já sabemos. Produzimos tragédias não por não saber, mas por ignorar o que sabemos. Este ignorar é consciente, é trágico, é criminoso. Se há algum sentimento na natureza a nosso respeito é de pena. Mas não há, a natureza segue suas leis e nós nossa ignorância, mesmo sabendo. Somos seres dignos de pena. Mas a natureza não tem sentimentos.