quarta-feira, novembro 20, 2019

RACISMO COVARDE


A ideia que entende a humanidade constituída por raças diferentes se difundiu com a formação dos Estados nacionais europeus no século XVI e raça significava pertencer a uma linhagem. Até o século XIX, não havia uma classificação entre raças superiores e inferiores. A definição de raça como um sistema de classificação humana se dá na França, no século XVIII com a criação da Frenologia. A Frenologia pretendeu estabelecer as características de cada raça com base nas medidas e no tamanho do cérebro. Ela influenciou as teorias eugênicas sobre raças superiores nos séculos XIX e XX. Um de seus mais destacados adeptos foi o italiano Cesare Lombroso, criador da Antropologia Criminal, defendia que a criminalidade era uma questão biológica e hereditária. No século XIX, com o chamado darwinismo social, se afirmará não só a diferença de raças humanas, mas a superioridade de umas sobre as outras e a eugenia, que propõe uma seleção artificial das raças, eliminando as raças inferiores. O racismo é a aplicação prática dessas teorias. Sua expressão ocidental mais trágica deu-se com o nazismo e os campos de concentração, sobremodo Auschwitz.
No Brasil o racismo sofre influência de Arthur de Gobineau, um conde francês, partidário de um determinismo racial absoluto. Gobineau escreveu o Ensaio “Sobre a desigualdade das raças humanas” (1855), que apresenta os primeiros fundamentos para a eugenia e o racismo no século XiX. Ele serviu como diplomata no Brasil durante o segundo império e teve grande influência na corte. Gobineau considerava o Brasil, devido a miscigenação de seu povo, uma nação dada ao fracasso, à degeneração. A única saída seria o incentivo à imigração de "raças" europeias, consideradas superiores. Nossa sociedade escravista absorveu com deleite as teses de Gobineau e delas se alimentam ainda hoje.
É preciso pontuar que o racismo não é universal, não são todos os homens e mulheres que são racistas. O racismo tornou-se uma ideologia de classe, justifica o poder e os privilégios econômicos de uns poucos. Como toda ideologia, atinge indivíduos fora das classes privilegiadas, mas é uma ideologia de classe.
Condenado moral e criminalmente, é combatido no mundo todo. No entanto, como uma doença incurável, alimenta entre nós a visão de mundo de uma elite presa ao escravismo.
E em sua expressão mais bárbara e irracional tem se manifestado como pratica covarde. Falta a seus adeptos argumentos, são homens e mulheres ignorantes que alimentam uma fantasia de superioridade. Como não há mais ciência que justifique tal fantasia, fazem uso da arrogância, da força, da injuria e da brutalidade para imporem-se como se fossem senhores de engenho. A atitude do deputado Marcio Tadeu, do PSL, é uma ilustração cabal de tamanha covardia.

terça-feira, novembro 19, 2019

CONSCIÊNCIA HUMANA E CONSCIÊNCIA NEGRA




“A consciência humana é um atributo de um psiquismo complexo e a complexidade desse psiquismo é produzida em condições objetivas de vida e de educação” Profª. Drª. Lígia Márcia Martins

Se é preciso falar de consciência humana, vamos falar de consciência humana.
A consciência é a percepção imediata daquilo que se passa em nós e fora de nós, é a impressão primeira que temos de nossos atos de nosso estado psíquico e da realidade. É também a capacidade que tem o espírito humano de imitir juízos espontâneos. Das operações imediatas nós distinguimos, diferenciamos, relacionamos, tiramos conclusões. Ela se prende à mera aparência da realidade sem se dar conta das contradições que movem a realidade e presa à espontaneidade da percepção imediata produz equívocos, distorções, mistificações, falsas concepções de si e da realidade.
A realidade é movida por contradições e conhecer e compreender estas contradições é fundamental para entendermos como criamos um conceito universal de humanidade em que homens e mulheres são iguais, merecem ser tratados com a mesma dignidade e respeito e, ao mesmo tempo, alijamos e impedimos populações inteiras e grupos humanos específicos de desfrutarem do mínimo de nossa riqueza material e cultural, condenando-os a condições sub humanas de existência.
Percebendo as contradições que entremeiam a percepção imediata e procurando compreender tais contradições nós percebemos que consciência imediata não é a fonte de todo conhecimento e de toda ação, e pode converter-se em fonte de enganos e ilusões. Daí que a consciência assume uma dimensão reflexiva, buscando amparo no conhecimento e na critica ao conhecimento.
Sem conhecimento nós ficamos presos à mera aparência da superficialidade do imediatismo, e limitamos nossa capacidade de entender o mundo no qual vivemos e suas contradições. O conhecimento amplia e aprofunda nossas concepções de mundo, nos auxilia a entender como natureza, cultura e sociedade se relacionam e condicionam as formas de nossa inserção no mundo. No entanto, as ciências, as artes, a religião, a filosofia, fontes de nosso conhecimento também produzem enganos e alienações. Daí que a consciência precisa ser critica. Para ampliarmos nossa compreensão das contradições que nos marcam devemos nos ancorar no conhecimento, mas é preciso um ponto crítico ao conhecimento.
A consciência crítica não para no conceito de natureza como elemento orgânico necessário à nossa existência, ela busca compreender as contradições que as ciências produziram e que nos levam a aniquilar os recursos naturais, a devastar florestas, a produzir o caos ambiental que ameaça a existência de novas gerações. Da consciência crítica nasce a consciência ambiental que defende a necessidade de frear a ação indiscriminada sobre a natureza.
Do mesmo modo a consciência crítica não se firma no conceito de humanidade universal. Ela questiona a formalidade dos princípios universais e aponta a distância entre estes princípios e a realidade concreta. Ainda há homens e mulheres vivendo em condições sub-humanas, ainda há homens e mulheres que vivem alijados de nossa riqueza material e cultural, há ainda homens e mulheres que devido sua opção religiosa, sexual, são perseguidos, destratados e mesmo mortos, há ainda homens e mulheres que devido à pigmentação de sua pele, devido a seus traços físicos são destratados, humilhados e mesmo mortos. A consciência critica desperta movimentos que colocam em causa tais contradições e cobram o avanço em direção aos princípios fundamentais que regem o conceito de humanidade. O dia de Consciência Negra não se contrapõe a Consciência humana, ele faz um apelo para que essa consciência não seja um apego ao espontaneísmo da consciência imediata que diz: “somos todos iguais”, mas ignora o desrespeito, o destrato, a morte continua de homens e mulheres, crianças, jovens, adultos, devido a pigmentação de sua pele. Em seu nível mais elevado a consciência humana é consciência transformadora. O dia de Consciência Negra aponta para as transformações que devemos enfrentar, aponta para o nível mais elevado de consciência humana.

sábado, novembro 16, 2019

CONSCIÊNCIA NEGRA




“É verdade, as pessoas não nascem racistas. Mas se se tornam é porque o racismo existe. E reconhecer sua existência é o primeiro passo para combatê-lo.” (Ildes Comparato).

“O racismo é a pretensão de ser superior a uma pessoa ou grupo humano, devido sua etnia. E tal pretensão te leva ao ponto de submeter a pessoa ou grupo humano a seus caprichos e descartá-los como se descarta um objeto inutilizado. É uma doença do ego.” (Josias Capello)

A expressão "consciência negra" foi cunhada pelo ator político anti-colonialista Sul Africano Steve Biko. Steve Biko tinha 30 anos, quando foi preso, torturado e assassinado pelo Apartheid em 12 de setembro de 1977. Ainda estudante de medicina, ele criou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos (SASO, em língua inglesa).
Na África do Sul, o movimento de Biko reclama o reconhecimento do racismo e da condição subalterna do sujeito negro. Para ele tomar consciência do racismo, fundado na desvalorização social de homens e mulheres, submetidos a um regime de opressão é o primeiro passo no caminho da superação do racismo. Steve Biko destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura, pela educação, pela religião e pela política, combatendo formas e manifestações de racismo.
Para Biko a dominação não se dá apenas de forma política, e ou nas estruturas do judiciário. Sua maior incidência se dá no campo das ideias, dos valores, das ideologias. De tal modo, segundo ele "a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido.” Ele acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso desconstruir o discurso desprestigioso acerca do homem e da mulher negra, criando uma ideia oposta, de força e orgulho negro. Para Biko o confronto do racismo com a consciência negra produziria uma síntese mais humana, construindo um país igual entre negros e brancos.
Assim a consciência negra não propõe um confronto entre pessoas, mas entre mentalidades, de um lado a racista e colonizadora e de outro a da valorização e emancipação do oprimido, marcado pela pigmentação de sua pele.
O movimento de Biko e suas ideias irão reverberar no Brasil já na década de 1970. E em julho de 1978, com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro passa a ser um dia de combate ao racismo. 20 de novembro recorda a morte de Zumbi de Palmares em 1695, Neste gesto, o movimento negro brasileiro elege a luta do Quilombo dos Palmares como gancho para a reflexão acerca do tratamento desprestigioso e desrespeitoso dispensado a homens e mulheres no Brasil devido a pigmentação de sua pele.
Não podemos ignorar que, ainda hoje, pessoas são destratadas, humilhadas e até mortas devido a pigmentação de sua pele.  O entendimento desse sistema de desvalorização do ser humano segundo a pigmentação de sua pele e das consequências que ele acarreta como exclusão social, marginalização e criminalização arbitraria de sujeitos e de comunidades é um passo necessário para superarmos nossas contradições.
Para Steve Biko “O princípio básico da Consciência Negra é que o homem negro deve rejeitar todos os sistemas de valores que buscam torná-lo um estrangeiro em seu país natal e reduzir sua dignidade humana básica.” (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/09/12/Quem-foi-Steve-Biko-e-como-ele-se-tornou-um-%C3%ADcone-contra-o-apartheid).
Nem todo homem branco, nem toda mulher branca é racista e, por isso, os não racistas não deveriam se incomodar com o dia de consciência negra. Pois, o dia de consciência negra não é um combate ao homem branco ou à mulher branca, é um combate ao racismo nas estruturas de poder, em instituições e entre aqueles e aquelas que destratam, humilham, marginalizam, criminalizam e executam arbitrariamente pessoas, devido sua etnia ou pigmentação de pele.

domingo, novembro 10, 2019

SOBRE A FAMÍLIA


Eu tenho observado uma coisa: o termo família, parece-me, pode ser aplicado a uma série de situações de amizade e camaradagem, menos para família. Eu tenho muitos conflitos com minha mãe, meu pai, meus irmãos e irmãs, considero alguns encontros entre amigos, encontros familiares. Com eles não há conflitos, há apenas bebericadas, comilanças, troças de ideias destoantes, a aceitação parcimoniosa de nossos desatinos. E é isso que procuramos: uma família em que não temos que dar explicações nem assumir responsabilidades... Mas família, família mesmo: é pai, mãe, irmãos, irmãs, com todas as rusgas que se possa produzir em seus encontros. Eu não dou minha confiança e minha lealdade a ninguém que maldiz seus irmãos e irmãs, que demonstra pouco respeito por seu pai, sua mãe. Família não é para ser um paraíso é para ser o berço onde forjamos nossa personalidade e nossa personalidade se forja no conflito, principalmente com nosso pai, com nossa mãe. Um dia percebemos, como diz a canção, que somos como eles e como nossos irmãos e irmãs. Eu brigo muito com minha família, não a troco, porém por minhas amizades, que podem até ser uma espécie de família, mas é uma espécie menor. Pai, mãe, irmãos, irmãs não se substituem.

sábado, novembro 09, 2019

PELO BOM SENSO

“Ou somos uma civilização, ou somos um apanhado de bárbaros” (Rodner Lúcio).

Eu não sou um homem político, mas acompanho a política e me posiciono à esquerda, se defender educação pública de qualidade, educação critica, que não descuide do conhecimento, mas que não faça deste conhecimento justificativa para nossa vergonhosa desigualdade social, mas, pelo contrário, faça do conhecimento um ponto de apoio para a intervenção e a inserção no mundo, em vista de combater desigualdades e injustiças. Se isso for ser de esquerda, eu sou de esquerda. Eu sou de esquerda se de esquerda for defender o SUS e a Universidade Pública para os filhos e filhas da maior parcela de nosso povo, os que não contam. Eu não defendo um estado mínimo nem um Estado absoluto, eu defendo um Estado do tamanho das necessidades da maior parcela de seu povo, desta que se equilibra em empregos precários, em subempregos (empreendedorismo) e na informalidade para viver. Se acreditar que a segurança que tanto ansiamos não está no aparato policial (de uma policia preparada para ser capitão do mato e não guardiã de nossas vidas e respeitadora de nossa dignidade), mas na educação, na distribuição de renda, na melhoria das condições de vida das parcelas em vulnerabilidade social, no combate ao tráfico de armas e de drogas, nas fronteiras, nos condomínios de alto padrão, nas organizações comerciais, nas articulações palacianas, nas milícias, e não em nossas comunidades. Não é rotulando a todos nós de bandidos e nos matando com “balas perdidas”, ou nos prendendo indiscriminadamente, que venceremos a violência. Apenas a institucionalizamos. Se defender menos polícia e mais promoção social, mais intervenção cultural, mais práticas esportivas, mais espaços de convivência, aliados à educação formal é ser de esquerda, eu sou de esquerda. Se acreditar que as pessoas têm o direito a um julgamento justo, independente do crime que cometeram, brando ou hediondo, e que só podem cumprir pena após condenação judicial, esgotado todos os recursos; que prisão preventiva ou cautelar não é cumprimento de pena e não podem ser usadas como instrumento de intimidação, de perseguição e para negociatas em que se forjam “delações”, que seu prolongamento é falha do sistema investigativo, da promotoria pública, do judiciário e do sistema prisional e caracteriza não nosso desejo de justiça, mas nossa vontade de vingança contra um mal que receamos sofrer, é ser de esquerda. Mesmo que ingênua, minhas posições são de esquerda. Manter pessoas presas porque, se livres irão, numa hipótese factível, nos agredir, é um crime não contra a pessoa; é um crime contra a humanidade. Só em regimes autoritários se condena por antecipação. É a morosidade do sistema que precisa ser questionado, não nossos direitos. Ninguém deve estar preso sem assistência jurídica, sem previsão de julgamento. E quando julgado e condenado a pena deve se dar em ambiente humanizante e não degradante. Temos quase 200mil pessoas presas neste país sem um único julgamento. O mínimo que elas merecem é uma condenação, não de meus medos e de meu ódio, mas da justiça. Ou somos uma civilização, ou somos um apanhado de bárbaros. O bom senso não encontra morada no ódio. E vivemos um momento em que as pessoas estão odiando por antecipação, nutrem desejos de vingança antes de sofrerem qualquer ofensa, um problema para a saúde mental que alguns têm transformado em instrumento político. Ou retomamos o caminho do bom senso, do diálogo, do debate civilizado, ou estamos fadados a um genocídio. É onde o medo e o ódio, como política, nos levam.

sexta-feira, novembro 08, 2019

Coisas que aprendi com minha avó

Embora eu me esqueça com muita frequência e descambe pra cretinice, minha avó, não com as palavras que seguem, nos ensinou: "vocês não são cretinos, não são bárbaros, não animais. Vocês não devem resolver suas questões com xingamentos ou agressões. Não tendo o que responder fechem a boca, mas não sejam cretinos. A honra do homem não está no braço, está na fala. Homem que é homem não ofende, não agride, não sai no tapa, sustenta o que fala, com a fala. Xingou, ofendeu, não se perde apenas a razão, iguala-se a um cão."

quarta-feira, novembro 06, 2019

EU NÃO SOU NEGRO


“Tomar consciência de si sem se negar é como entrar nas águas de Narciso.” (Rodner Lúcio)

No Brasil a negritude é fruto do sistema escravista. Nossa sociedade é fruto do trabalho escravo e suas estruturas continuam a reproduzi-lo. O escravismo frequenta ainda hoje as mentes de grande parte de nossas elites econômicas, políticas, intelectuais, religiosas e se alastra em largos setores de uma classe média medíocre. Por mais que queiramos afirmar que o negro, a negra são homens e mulheres e precisam ser dignificados como tais, a negritude é o apagamento desta evidência. A negritude rebaixa a dignidade de nós homens e mulheres, brasileiros, brasileiras, de pele escura e retinta. Parafraseando Joaquim Nabuco que dizia “o escravismo degradava o escravo e corrompia o proprietário”, a negritude apaga homens e mulheres num termo e torna parte de nossa sociedade repugnante. Nossa esperança era que afirmando positivamente a negritude, derrogássemos o escravismo e emprestássemos dignidade aos despossuídos e extorquidos de nossa sociedade. Não, negro, negra para alguns é uma vergonha para outros um xingamento, uma ofensa. É preciso contexto para usar o termo: o tom de vós, o tom de pele, o ambiente em que se usa pode corresponder a articulação de movimentos sociais, mas bem pode caracterizar exclusão. Dependendo de quem vem: nego, nega é carinho ou ofensa. Na afirmação, então, de nossa condição nos deparamos com nosso apagamento e a negação de nossa participação plena em todos os segmentos e ambientes sociais. Mas tomarmos consciência de que somos mais que uma condição marcada pelo tom de nossa pele já não é suficiente. É preciso passar para negação. A consciência é um movimento dialético. A afirmação visibiliza, coloca em foco. A negação criticiza, provoca superações. A conscientização continua necessária. E criticamente afirmo, não sou negro: eu sou homem, sou mulher, brasileiro, brasileira com plenos direitos de ocupar qualquer função e ou posição social, de ingressar e circular por qualquer ambiente comercial ou social sem receios. Ser tratado com dignidade e respeito não é uma concessão que peço, devido ao tom de minha pele. É um direito que tenho, para além do tom de minha pele. É hora de dizer que tomando consciência de nossa condição, nós não a aceitamos, nós não a exaltamos, nós queremos supera-la, porque ela nos apaga, nos rebaixa, nos avilta. Ser negro não é ter um lugar. Eu não quero ficar restrito à negritude, eu quero o estatuto pleno. Não sou negro! Para nossas elites econômicas, políticas, intelectuais e religiosas, e para a parcela medíocre de nossa classe média, afirmarmo-nos negros não passa de uma evidência. Esta expressão soa a seus ouvidos: “eu estou aqui para servir-vos!”. E a ela eles respondem desdenhosos: “então, ponha-te em teu lugar”. Não, o que os perturba, o que lhes tira o sono não é afirmamos nossa diferença é exigimos igualdade. E a igualdade se exige negando o lugar que nos determinam. Ato político, e ofensivo, é afirmar-se brasileiro, brasileira e afirmar que temos o direito de assumir as mesmas funções e posições políticas, econômicas, sociais que eles, que temos o direito de circular os mesmos espaços que eles e receber o mesmo tratamento respeitoso que eles. Que não queremos lugar de fala, porque queremos e podemos falar em todo lugar. A estética: “o negro é bonito!” tem que ceder à política: O Negro tem fala e não apenas aparência.  E eu quero poder falar em qualquer lugar, sobre qualquer coisa e não de um lugar de fala de um sempre e mesmo assunto: minha negritude. Eu não sou negro! Se este lugar não me liberta, se este lugar me restringe! Eu não sou negro é para romper com o lugar de fala, um lugar cômodo para quem não nos quer ouvir, para exigir o lugar da fala, a tribuna, a cátedra, o púlpito o parlamento e poder falar e ser ouvido sobre qualquer assunto. Não sou negro: sou logos! Eu não preciso ser bonito, preciso ser levado em conta. Não somos um elemento racial. Somos uma parcela de um povo, a parcela dos que não conta nos lugares da fala.

sábado, novembro 02, 2019

SAMBINHA PARA MURMURAR-TE


Flor de minha existência

Vou fazer-te um sambinha
Destes que ninguém escuta
Pra cantar em teus ouvidos
Cafunando tua nuca

Vou fazer este sambinha
Um tanto desafinado
Pra depois do amor
Ser-te assobiado

Um sambinha acalanto
Pra murmurar-te com lábios trêmulos
Enquanto, reposada em meu braços
 De teu sorriso me encanto

Um sambinha vou fazer-te
Deste meu jeito
Pra falar-te de tua presença
Energia que pulsa em meu peito


NOSSO HOLOCAUSTO COTIDIANO

Por Claudio Domingos Fernandes

Entre nós homens e mulheres em processo de humanização, raça não existe. Existe o racismo, que não é universal, nem de um grupo particular. Nem todo mundo é racista, nem o racismo pertence a um determinado grupo. Deste modo não existe racismo reverso, existe apenas racismo, que atinge a todos nós, se defendemos que uns são melhores ou piores devido suas características étnicas. Assim, o conceito de raça existe, mas a existência de diferentes raças humanas – e daí, a existência de raças inferiores – não. Os privilégios de uns poucos e a escassez de recursos de tantíssimos outros não encontra mais sustentação na biologia. São fatores históricos e aplicações políticas de determinadas teorias que explicam, mas não justificam, a opulência criminosa de uns, a criminalização obscena de tantos outros.
“A origem do pensamento que entende a humanidade a partir de raças diferentes está no século XVI e na formação dos Estados nacionais europeus” (SILVA; SILVA, 2013, p. 346). Foram, porém os iluministas “que cunharam as primeiras doutrinas racialistas”. Assim, durante muito tempo confundiu-se raça com a noção de nação, de povo, de etnia. A noção de raça como ideia da existência de heranças biológicas e físicas permanentes e distintivas de comportamento cognitivo e moral dá-se no século XIX “em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas” (Schwarcz, 1993, p. 48), sobretudo darwinistas. Exemplares são a frenologia e a antropometria, que prometiam “interpretar a capacidade humana tomando em conta o tamanho e a proporção do cérebro dos diferentes povos” (Idem, p. 48).
Essas pseudociências influenciaram teorias eugênicas, que não apenas exaltavam a existência de raças, mas as classificavam em superiores e inferiores, propagando meios de controle da miscigenação, que consideravam degenerar a evolução das “raças superiores”, por fixar “sempre as características mais negativas das raças em cruzamento” (Idem, p. 57). Influenciaram, também, a Antropologia criminal de Lombroso, que defendia que a criminalidade era uma questão biológica e hereditária. A violência e a criminalidade deixava de ter fatores históricos, econômicos e políticos em sua estrutura, e passava a ser determinado pelas características físicas e biológicas dos homens e mulheres e de seus grupos de pertencimento. Assim, quanto mais miscigenado um grupo, mais provavelmente propenso ao atraso social e à criminalidade ele estará fadado.
O racismo é a aplicação prática e política dessas teorias, cujo exemplo mais escandaloso de nossa história recente é o holocausto. Seis milhões de judeus perderam suas vidas em campos de concentração e câmaras de gás por terem sido “reduzidos ao mínimo denominador comum da simples vida biológica” (ARENDT, 2008, p. 227).
A biologia avançou, e hoje, nenhum cientista sério defenderia que a forma de nosso corpo, a cor de nossa pele, de nossos olhos, o nosso cabelo, nossa língua e linguagem, determinam nossas inclinações políticas, religiosas, morais, cognitivas e culturais. No entanto, ainda é comum discriminar as pessoas por conta de suas características físicas e ou identificação a seus grupos de pertencimento.
No Brasil, então, a crença da existência de raças povoa o imaginário popular e enraíza-se nas estruturas de poder e comando, principalmente no preconceito de cor. Diluído nesse preconceito, a crença de raças diferentes sustenta as explicações dos privilégios de alguns poucos diante da escassez de recursos da gritante maioria, explica a pouco representatividade de homens e mulheres de pele escura nas estruturas de poder e de comando.
Em sua aplicação política mais nefasta, explica, mas não justifica, o rigor das estruturas judiciais e a truculência policial contra as camadas populares e empobrecidas (sim, as pessoas são tornadas pobres, a pobreza é uma produção política e não uma condição social) nas periferias de nossas cidades. Esse rigor judiciário e essa truculência policial atingem, principalmente, nossos filhos e filhas, tornando nossas vidas um holocausto permanente e cotidiano.
Sob o titulo de controle social e combate à criminalidade, vamos sendo executados ou encarcerados arbitrariamente, criminosamente. Mesmo negando, estas práticas são implementos políticos com base na diferenciação de raças e na inferiorização de seres humanos. Para o Estado, suas elites e sua polícia somos incontados, descartáveis.
Raças não existem. O racismo, sim. E é mais que um discurso social, e ou um comportamento condenável nas pessoas; é uma prática política: nosso holocausto cotidiano.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e questão Racial no Brasil (1870 - 1930). São Paulo: Companhia das Letras. 1993.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Marciel Henrique. Dicionário de conceitos Históricos. São Paulo: Contexto. 2013.

quinta-feira, outubro 31, 2019

DO PERDÃO


O dano não tem reparo. A ofensa não se apaga. A ferida não se fecha sem deixar cicatriz. O arrependimento não restitui o dano, não repara a ofensa, não alivia a dor do ferimento. O perdão não apaga tudo, não esquece; não é um desmemorizador. O perdão é uma aposta incerta de que, apesar do dano, apesar da ofensa, apesar da ferida, a relação pode ser restituída, e um novo começo possa se instaurar. O perdão se dá: é doação. De modo que: só o amor, ou quem muito ama, tem o poder de perdoar.  Embora seja uma doação, o perdão não se oferece. Ele precisa ser requisitado. Aqui novamente entra a dimensão do amor. Só quem muito ama é capaz de se penitenciar e pedir perdão. O dano, a ofensa, a ferida que se abre, rompe o amor. E é o amor rompido que se restabelece no perdão. E o amor é oferecimento e procura. Por isso o perdão só pode ser oferecido a quem o procura. E, por isso o perdão exige contrição e sacrifício. À gratuidade no perdão espera-se o compromisso do perdoado, simplificado no ato de penitência. Entre aquele que perdoa e o que é perdoado não se opera uma amnésia, se opera um sacrifício, uma penitência, um ato de amor: um milagre. O perdoar humano tem a grandeza do ato divino da criação, o perdão inaugura um novo começo, uma nova aposta no amor que sustenta a razão de viver. Onde não há amor, não há perdão, não há vida: há apenas amargura, sofrimento, dissolução.  O amor não repara danos, o amor não alivia dor, o amor não desfaz ofensas. O amor produz vida. Mas, só quem ama perdoa; só quem ama pede perdão. Só o amor produz vida. Perdoar é abrir-se a incerteza de uma vida nova.

segunda-feira, outubro 28, 2019

DA AMIZADE



"Se queres ser rica, frequente ambientes onde os ricos circulam, entre franciscanos serás franciscana" Padre Leontino



Ontem, estive conversando com uma amiga de longa data. Dizia a ela que não entrei na vida por ato de vontade, mas, por ato de vontade, penso, hora dessas, dela me retirar... Mas a conversa descambou à amizade. Então disse à minha amiga que as pessoas com quem tenho me relacionado desde o fatídico dia de minha entrada na vida, nos mais variados graus de intimidade e cumplicidades, eu, como entrar na vida, não as escolhi: as encontrei. Nossos relacionamentos se dão devido a causalidade dos encontros a que estamos sujeitos. Estando na vida, estamos fadados a nos afeiçoar ou não às pessoas que circulam entre nós. E afeiçoar-se a alguém não é uma escolha, é um acontecimento. À medida do tempo, as escolhas que tenho feito é a dos ambientes que frequento. Escolhendo tais e tais ambientes, tenho, aproximativamente, tipos de personalidades que posso encontrar. As pessoas com quem nos relacionamos e pelas quais vamos ou não nos afeiçoando circulam, onde circulamos. Isto não é uma ciência, mas, refazendo um antigo adágio: “digas-me onde andas, direi a ti com quem andas”. Entrei na vida sem querer, entre pessoas que não escolhi. Há algumas me afeiçoei mais, a outras menos, a outras nem um pouco, mas foi preciso que eu e elas estivéssemos no mesmo espaço. Da vida, querendo, eu posso sair. Das amizades não consigo me desfazer, na verdade os amigos não me abandonam, é isto que atenua o meu desejo de não ser... Minha avó era uma mulher muito sacada, médicos nunca deram respostas a meus desatinos, foi ela que me orientou: "Fio, procure pessoas com gana de vida", eu não sabia o que era gana de vida. A encontro nos amigos que tenho feito... Estou vivo!!!!

JOÃO PESCADOR


Foi assim: João todos os dias ia ao mercado pedir peixes. Tinha sempre alguém que lhe dava uma ou outra sardinha. Um dia alguém reclamou: "que este malandro aprenda a pescar o próprio peixe!" João retrucou, "o senhor ensina-me a pescar?" "Não tenho tempo, não tenho condições, não posso", respondeu o reclamante. O fato é que João, ao invés de ir ao mercado pedir peixe, passou a pedir: "alguém me ensina a pescar?" Certo dia encontrou um velho pescador que se dispôs a ensiná-lo. Precisava, porém de um barco, das varas, do anzol e, principalmente permissão da empresa que administrava o pesqueiro. Foi uma luta, vai num vereador e nada, vai em outro e nada também, procura-se o sindicato e nada. Com sacrifício, João conseguiu o que precisava para pescar. Aprendeu logo, pois o quanto antes aprendesse, antes dependeria menos da solidariedade das pessoas, seria auto-suficiente. Uma vez que João aprendeu a pescar, aprendeu também que tinha que pagar para usar o lago, que não podia ficar com o peixe. Teria que compra-lo no mercado. Uma coisa João aprendeu: "abaixe o liberalismo!", anda gritando pelo mercado. João não pede mais peixe, João agora grita: "Abaixe a liberdade econômica que nos escraviza ao mercado e nos mata a todos de fome!"

sábado, outubro 26, 2019

DAS KAPITAL




“Marx escreveu, no “Das Kapital” se nós não destruirmos a família, nós não conseguiremos mudar a sociedade. Tem que quebrar as referências de família...Isso tá escrito, documentado”  Tiozinho do Guarda Chuva.


Se nós brasileiros fossemos sujeitos bem formados, com gosto pela boa leitura e pelo estudo, algo que não precisa ser sistemático, nem rigoroso como se espera dos especialistas, mas razoável, que esclarece-nos e torna-nos as coisas mais compreensíveis... Bom, se nós brasileiros fossemos ao menos razoáveis de entendimento, nós riríamos da gravidade de certas falas de certos boçais em casaca de ministro disto ou daquilo, principalmente da Educação. Então quando o sujeito, empolado em títulos que inventou para sentir-se alguém abrisse a boca para falar de Marx, marxismo, comunismo e coisas do gênero, riríamos e lhe daríamos as costas. Um pouco de conhecimento nos informa que Marx, marxismos, comunismos e coisas e tais mudaram de lugar e pulsam no coração das antiguidades clássicas, aquelas coisas que visitamos por erudição. Tornaram-se saberes desencantado no reino do consumo de mercadorias e espetáculos. (Estamos esperando o próximo mega show para ouvirmos gritos de “Ei, Bolsonaro! Vai tomar no cú!”). Marx, marxismo, comunismo, fica bem num churrasco ou enquanto se espera o lanche no Mc Donald. Durante o passeio à feira dominical, em que comemos pastel, ou numa fila para assistir o último lançamento da Marvel num cinema no Shopping. Uma pessoa com um conhecimento que não seja apenas para compreender informações de como ir e vir e receber comandos diretos, saberia que Marx e temas correlatos se trata sem muita gravidade. Com um pouco de estudo deixaríamos o tiozinho falando sozinho... O fato, porém de Marx, o marxismo, o comunismo e coisas tais estarem englobadas pelo mercado não anula a sensibilidade e a percepção de nossa realidade: as divisões sociais se acentuaram, a renda concentra-se cada vez mais com cada vez menos pessoas, bolsões de miséria voltam a nos rondar e estamos no ponto de esgarçar o tecido social. A única coisa que não podemos intuir, numa caminhada pela Nove de Julho, é o que virá com o rompimento, se este vier: não será o comunismo ou o socialismo. Um pouco de inteligência nos informa isto.     Ademais, há tiozinhos que nasceram para o ridículo, mesmo em casaca de ministro.

quinta-feira, outubro 24, 2019

DE CASULOS SAEM COLIBRIS


“De casulo sai Jacaré. E de ovo de Jacaré, pode sair girafa?”

A epigrafe é uma rememoração de um evento longínquo, que sempre esteve entre minhas vontades de resposta.

I
As relações pedagógicas não se dão entre sujeitos simples, as relações pedagógicas se dão entre sujeitos plurais-complexos. O professor é um sujeito complexo, enredado numa teia de relações e situações com as quais se envolve e se embate. Uma delas, o seu ser professor numa sociedade de consumo e do espetáculo. O aluno é um sujeito complexo enredado num universo de valores familiares, comunitários com os quais vai construindo sua identidade...

II
Envolvendo-se com as ciências nos vamos dando conta que há três expectativas para a educação. Duas delas deterministas e pessimistas. A outra, desafiadora e incerta. As pessimistas se dividem entre aquelas que culpam ou o professor, ou o aluno, ou a escola, pelo fracasso educacional. “com este professor, com este aluno, com esta escola, não há redenção, estamos condenados ao fracasso.” Na mesma perspectiva, algumas linhas pedagógicas falam da família, da sociedade, do Estado... A terceira coloca professores, escola (enquanto coletivo, e não unidade), alunos nas interdependências da Educação mesma.
Nesta perspectiva, o centro da Educação não é o aluno, não é o professor, não é a escola. O centro da Educação e a Educação mesma. Professores, alunos, escolas, estão relacionados e circunstanciados, mas não determinados (para lembrar Paulo Freire).
Não são as relações, nem as circunstâncias que mudam, ou determinam seus destinos. São os sujeitos (professores e alunos) que trazem em si as potencialidades, as capacidades de se autodeterminarem. Professores e alunos são seres abertos que se encontram na mesma realidade: a Educação.

III
A abertura que caracteriza os sujeitos na Educação é o inacabamento, o ser-sendo, a natalidade: capacidade de começar algo que rompe com o fatídico, o determinado (Hannah Arendt).
Uma Educação centrada na Educação é promessa-incerta, é esperança que pode espantar (no sentido de nos surpreender), é milagre: o inesperado no vaticinado.

IV
Eu confesso, tive muitos alunos que julguei pelo casulo: não chegariam a borboleta, ficariam no meio do caminho. Hoje, os vejo trilhando os céus como colibris, em busca da flor mais desafiadora: o saber.
A educação centrada na Educação acredita nos sujeitos e conduz os sujeitos a acreditarem em si mesmos. Assim, de um casulo pode sair um mundo e não apenas borboletas. O milagre produz girafas em ovos de jacaré. Nesta perspectiva, a Educação não garante operários, médicos, advogados, sacerdotes, políticos; garante sujeitos autônomos, livres, autodeterminando-se.   A Educação é um processo que aguarda o inesperado, o inédito-viável, o novo que se dá no ato e na palavra. Palavra que se diz ao dizer o mundo.

V
Eu nunca estive à altura de professorar numa Educação centrada na Educação.

quarta-feira, outubro 23, 2019

DO DIREITO DE CRITICAR – DO DEVER DE NÃO MENTIR, AO CRITICAR


Paulo Freire*


O direito de criticar e o dever, ao criticar, de não faltar à verdade para apoiar nossa crítica é um imperativo ético da mais alta importância no processo de aprendizagem de nossa democracia.

É preciso aceitar a crítica séria, fundada, que recebemos, de um lado, como essencial ao avanço da prática e da reflexão teórica, de outro, ao crescimento necessário do sujeito criticado. Daí que, ao sermos criticados, por mais que não nos agrade, se a crítica é correta, fundamentada, feita eticamente, não temos como deixar de aceitá-la, retificando assim nossa posição anterior. Assumir a crítica implica, portanto, reconhecer que ela nos convenceu, parcial ou totalmente, de que estávamos incorrendo em equívoco ou erro que merecia ser corrigido ou superado. Isto significa termos de aceitar algo óbvio: que nossas análises dos fatos, das coisas, que nossas reflexões, que nossas propostas, que nossa compreensão do mundo, que nossa maneira de pensar, de fazer política, de sentir a boniteza ou a feiúra, as injustiças, que nada disso é unanimemente aceito ou recusado. Isto significa, fundamentalmente, reconhecer que é impossível estar no mundo, fazendo coisas, influenciando, intervindo, sem ser criticado.

Mas, apesar da obviedade do que acabo de dizer, isto é, de que é impossível agradar a gregos e troianos, quem faz algo tem de exercitar a humildade antes mesmo de começar a aparecer em função do que começou a fazer. Vivida autenticamente, a humildade acalma, pacifica os possíveis ímpetos de intolerância de nossa vaidade em face da crítica, mesmo justa, que recebemos.
Não é possível, por outro lado, exercermos o direito de criticar, em termos construtivos, pretendendo ter no criticar um testemunho educativo, sem encarnar uma posição rigorosamente ética. Assim, o direito à prática de criticar exige de quem o assume o cumprimento à risca de certos deveres que, se não observados, retiram a validade e a eficácia da crítica. Deveres com relação ao autor que criticamos e deveres com relação aos leitores de nosso texto crítico. Deveres, no fundo, com relação a nós mesmos também.

O primeiro deles é não mentir. Não mentir em torno do criticado, não mentir aos leitores nem a nós próprios. Podemos nos equivocar, podemos errar. Mentir, nunca.
Um outro dever é procurarmos, com rigor, conhecer o objeto de nossa crítica. Não é ético nem rigoroso criticar o que não conhecemos. Não posso fundar minha crítica ao pensamento de A ou de B no que ouvi dizer de A e de B, nem sequer no que apenas li sobre A e B, mas no que eu mesmo li, no que pesquisei em torno de seu pensamento. É claro que, para criticar positiva ou negativamente o pensamento de A ou de B, me é importante também saber o que deles dizem outros autores. Isto porém não basta.

A exigência de conhecer o pensamento a ser criticado independe do bem-querer ou do malquerer que tenhamos à pessoa cujo pensamento analisamos. 

Como criticar um texto que nem sequer li, baseado apenas na raiva que tenho do autor ou da autora ou porque José e Maria me disseram que o autor do texto é espontaneísta? Que temos o direito de ter raiva de gentes não há dúvida. É óbvio também. O direito que tenho de ter raiva de Maria ou de José não pode se alongar, porém, ao de mentir em torno dele ou dela. Não posso dizer, por exemplo, sem provar, que José e Maria disseram que pode haver prática educativa sem conteúdos. Em primeiro lugar, esta afirmação é uma inverdade histórica. Nunca houve nem há educação sem conteúdos. Segundo, se digo isto de José e de Maria, sublinhando portanto seu erro, sem provar que eles, na verdade, fizeram tal afirmação, minto com relação a José e Maria, minto com relação a mim mesmo e continuo trabalhando contra a democracia, que não se constrói no falseamento da verdade.
Se minha indisposição por A ou por B provoca em mim um mal-estar que vai mais além dos limites, o que inviabiliza ou, no mínimo, dificulta que os leia, me devo obrigar uma posição de silêncio em face do que escrevem. E devo ainda criticar-me por não ser capaz de superar meus mal-estares pessoais. O que não posso é engrossar a fila dos que falam por falar, por ouvir dizer, e às vezes até sem nenhuma recusa afetiva a quem critica. Pelo contrário, dos que inclusive se dizem amigos do intelectual criticado mas que gravaram, como clichê imutável frases feitas que se repetem com ares de enorme sabedoria. Insisto em que a falha destes não está no fato de criticarem um amigo. Não há pecado nenhum em criticar um amigo desde que o façamos eticamente.

Certa vez li, em um texto crítico de meu trabalho, que sou pouco rigoroso no trato dos temas. Em certo momento, por uma razão de que já não me recordo, o crítico citou um trecho da Pedagogia do oprimido com um erro lamentável que vinha se repetindo em diferentes reimpressões. “A invasão da práxis” em lugar de “A inversão da práxis”. Me impressionou que um intelectual, que surpreende falta de rigor noutro, não perceba quão pouco rigoroso é ao citar semelhante não senso: “a invasão da práxis.” E não como prova de minha falta de rigor.

Faltoso de rigor, esse intelectual sublinha o pouco rigor do outro.

O direito à crítica exige também do crítico um saber que deve ir além do saber em torno do objeto direto da crítica. Saber indispensável à rigorosidade do crítico. Outro dever ético de quem critica é deixar claro a seus leitores que sua crítica abarca um texto apenas do criticado ou sua obra toda, seu pensamento.

Se o autor criticado escreveu vários trabalhos, ao criticarmos um deles, não podemos dizer que a crítica é a seu pensamento como totalidade, a não ser que, conhecendo a totalidade, nos convençamos disto. Reitero: o que não é possível é ler um entre dez textos e estender aos nove restantes a crítica feita a um, antes de analisar rigorosamente os demais.

A eticidade do trabalho intelectual não me permite a irresponsabilidade de ser leviano na apreciação da produção dos outros. Como disse antes, posso errar, posso me equivocar ou me confundir na minha análise mas não posso distorcer o pensamento que estudo e critico. Não posso dizer que o autor que critico disse Y se ele disse M e eu estou certo de que ele disse M. Não posso criticar por pura inveja ou por pura raiva ou para simplesmente aparecer.

É inadmissível que, entre intelectuais de bom nível, escutemos afirmações como esta:
– Você já leu um trabalho recente desse autor que você critica tão duramente?
– Não. E tenho raiva de quem leu.

Este discurso nega totalmente o intelectual que o faz. Pior ainda: este discurso em nada contribui para a formação ético-científica dos alunos ou alunas de tal intelectual.

Recentemente escutei de educanda em tom sofrido, o quanto a decepcionara ter ouvido de professor em quem confiava referências críticas a certo intelectual fundadas quase no “me disseram” ou no “é isso o que se diz”. Os professores não ensinamos apenas os conteúdos. Através do ensino deles, ensinamos também a pensar criticamente, se somos progressistas e ensinar para nós, por isso mesmo, não é depositar pacotes na consciência vazia dos educandos.

O nosso testemunho de seriedade nas citações ou nas referências que fazemos a autores de quem discordamos ou com quem concordamos ou, pelo contrário, a nossa irresponsabilidade no trato dos temas e dos autores, tudo isso pode interferir de maneira negativa ou positiva na formação permanente dos educandos.

De estudante brasileiro fazendo seu doutoramento em Paris ouvi, anos atrás, o seguinte: “Aprendi recentemente a significação profunda das citações. Estava discutindo um pequeno texto com meu orientador em que fazia uma citação de Merleau-Ponty. O professor fez um gesto de pausa e me colocou duas perguntas:
– Você leu, pelo menos, o capítulo inteiro de que você retirou a citação?
– Você está mesmo certo de que precisa fazer esta citação?”

“Na verdade”, disse o amigo, “não havia lido Ponty e, desafiado pelas perguntas do orientador, fui ao texto de Merleau, revi o meu e percebi que a citação era desnecessária”.

Citar, realmente, não pode ser pura exibição intelectual ou remédio para insegurança. Ler um livro, por exemplo, na tradução brasileira, por não dominar suficientemente a língua materna do autor, mas fazer a citação naquela é procedimento pouco ético e nada respeitável. Citar não pode ser, ainda, artifício, através do qual alongamos o nosso texto com retalhos de textos de outros.

Creio ser urgente, entre nós, superar este mau hábito que é, no fundo, um testemunho deformante, de criticar, de minimizar um autor, de imputar-lhe afirmações que jamais fez ou distorcer as que realmente fez. E de fazê-lo com ares de seriedade e de certeza tais que poderiam deixar em dúvida até o autor injustamente criticado. Em certo momento do processo os críticos se apóiam apenas no que ouvem e não no que lêem ou pesquisam.

A crítica fácil, ligeira, se alastra irresponsável e, não raro, se perde no tempo. De repente, se ouve ainda de alguns desses críticos perdidos no tempo, como presenças mal-assombradas, que Freire é idealista. Que a conscientização na sua obra é a melhor prova de sua ilusão subjetivista. Não leram um texto de 1970 em que discuto detidamente este problema, um outro de 1974, ambos publicados pela Editora Paz e Terra em 1975, em Ação cultural para a liberdade e outros escritos.
Não leram uma série de ensaios, de entrevistas, de livros dialógicos aparecidos nos anos 80 e, mais recentemente, a Pedagogia da esperança, um reencontro com a Pedagogia do oprimido, que a Paz e Terra acaba de publicar. Não leram igualmente A educação na cidade publicação da Cortez, de dezembro de 1991.

Não que me pense devendo ser lido por toda gente. Não! Mas por quem, criticando-me, não pode furtar-se à leitura do que critica.

O direito incontestável de criticar exige de quem o exerce o dever de não mentir. 

* In FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez. 1995

terça-feira, outubro 15, 2019

A CARNE DE MENOS VALOR NO MERCADO

Hoje é dia de celebrar o profissional de menor prestígio no mercado (a tecnologia o pode substituir), na sociedade (ele não sabe, é mal formado), nas esferas de poder (seu ensino é ideológico, coloca em risco nossas crianças), mas, ainda, tão necessário: “Sem professor a EDUCAÇÃO não avança”, e sem EDUCAÇÃO vamos ficando a mercê de déspotas e ineptos. Vamos celebrar, mas não vamos esquecer que vereadores, deputados, senadores, ministros de estado que não relacionam sujeito-verbo-objeto, que mentem em seus currículos, que plagiam trabalhos acadêmicos, assumem tribunas das câmaras e parlamentos para atacar-nos, para ditar-nos como devemos cumprir nosso ensino, e nos acusam pelas mazelas da educação, da violência escolar, incentiva alunos a nos cercear. Em todas as esferas há projetos de leis que visam combater “privilégios” e cortar gastos.  Em todos eles nós somos apontados como gastos. Daí se propõe redução de disciplinas, introdução de EAD no curso regular, congelamentos de salários... Hoje vão estar todos batendo palminhas em nossas costas, falando de nossa importância, amanhã podemos acordar sem saber se ano próximo teremos onde lecionar. O É dia do Professor: A CARNE DE MENOS VALOR NO MERCADO.

Estar bem é estar morto

A estética escode a desolação. A poética explicita-a e permite ao pensamento significa-la (Eurípides dos Santos). Sem significações a desolação nos arremete no não mundo, na não existência. (Rodner Lúcio). Se nossas memórias afetivas não dizem respeito às pessoas com quem nos relacionamos, mesmo que nos desestabilize, elas devem ficar em seu lugar: no passado. (Christine Ramos)

Só na morte reside o estar bem, a morte nos livra de nossos tormentos e angústias, de tolices que nos torturam. Estar bem é estar morto. (CDF)

sexta-feira, outubro 04, 2019

O MUNDO SEM DEUS É ABSURDO






Memes deveriam apenas nos divertir, mas me levam a pensar e a formular conjecturas. O livre arbítrio é a possibilidade de escolha entre, ao menos, duas possibilidades de igual medida, em que a necessidade não impera. A sede me impõe beber e não comer. A fome me impõe comer e não beber. Numa situação em que não há fome ou sede, eu me sinto livre para comer e beber, ou só comer, ou só beber. Só há liberdade (livre-arbítrio) onde a necessidade não me impõe. Redundando, onde há imposição, não há livre arbítrio. Depois, onde não há opções, não há livre arbítrio. À "salvação" se opõe a "danação", e nem “salvação” (céu), nem “danação” (inferno) são necessidades: são possibilidades, são propostas. Deus não te impõe a salvação, te a propõe. Em toda escolha está implícito o que se deseja alcançar e o modo, ou meios, para se alcançar o que se deseja. Entre um arroz "soltinho" e bem temperado com um feijão de mãe e um prato de miojo, há exigências de preparo bem diversas. Quem espera em um prato de miojo o gosto de uma refeição materna, há de desapontar-se. Para se tornar campeão em uma competição o atleta sabe que precisa treinar e participar de uma série de disputas. Não se torna campeão apenas escolhendo ser campeão. É preciso seguir as regras da competição. Deus não impõe a salvação, propõe-na. O que está implícito na proposta divina, a salvação, são as condições para alcançá-la. A danação também tem suas regras, uma delas é a de não se arrepender de tê-la escolhido. Como esta possibilidade sempre existe. Sim, escolhas são riscos, e são sempre permeadas de incertezas. Ao longo de um processo, podemos sempre nos arrepender de tê-lo começado. Então, há sempre a possibilidade de nos arrependermos de nossas escolhas. Em tais casos, Deus ai se encontra disposto a nos oferecer sua graça! À pergunta: "se eu fizer algo que você não gosta eu vou pro inferno, que liberdade é essa?", Deus não responderia: "você é livre pra fazer o que eu quiser!". Não, a resposta divina seria outra. Seria: "você sabia que eu não gosto, e sabia das consequências. O sentido da liberdade é este: saber das consequências antes da escolha. Isso eu nunca te escondi!" Esta arenga toda só tem sentido se acreditássemos em Deus, não é o caso. O livre arbítrio só faz sentido se acreditamos em Deus. Sem Deus, o livre arbítrio não faz sentido (redundar, para reforçar). Nossa época é a época do não sentido. Nós estamos condenados a viver circunstancialmente, e as circunstâncias nos impõem infinitas possibilidades. Irremediavelmente sem Deus, estamos escravizados à ilusão de que estamos fazendo escolhas, quando estamos apenas respondendo às necessidades do momento. O mundo nos impõe sermos livre, mas onde há imposição não há liberdade. Pulamos do livre arbítrio ao absurdo.

quinta-feira, setembro 26, 2019

DE ELIZABETH ECKFORD A GRETA TUMBERG: CRIANÇA NÃO MUDA O MUNDO, CRIANÇA RECEBE UM MUNDO A SER MUDADO.




No dia 4 de setembro de 1957, Elizabeth Eckford e outros oito estudantes negros, procurando fazer cumprir uma determinação do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, tentaram entrar na Little Rock Central High School, uma escola, até então, reservada para estudantes brancos. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos havia declarado ilegal a segregação racial e exigia que se efetivasse a integração de alunos negros às escolas. A imagem de Elizabeth Eckford sendo hostilizada por alunos e pais de alunos brancos ganhou as páginas de jornais e revistas norte americanas. E levou Hannah Arendt a redigir um polêmico ensaio, “Reflexões sobre Little Rock”, publicado apenas em 1959 pela revista Dissent, com notas explicativas à abordagem de Arendt sobre temas controversos, como segregação e discriminação. Polêmicas a parte, aqui me interessa destacar a constatação arendtiana de que nós adultos renunciamos à nossa responsabilidade pelo mundo, empurrando-a para as crianças e jovens. Em seu artigo, Arendt critica a exposição e o abandono de crianças e jovens aos holofotes públicos, assumindo a posição que caberia a nós adultos ocupar.  A imagem de Greta Tumberg com mega fone em mãos, e a campanha de ódio, fake news e preconceitos que se dirigem contra ela, reproduzem, em um outro contexto, a imagem de Elizabeth Eckford sendo hostilizada por homens e mulheres resistentes à integração do negro à sociedade. As questões que envolvem a proteção do planeta e a preservação do mundo, espaço das relações humanas, são questões que nós adultos deveríamos estar enfrentando. Mas, parece-me, que a intuição arendtiana, de que nós adultos nos omitimos de nossa responsabilidade apenas se aprofundou. Parece patente que temos delegado às crianças e jovens enfrentarem problemas que nós criamos e que coloca o destino do planeta, do mundo e das novas gerações em risco. Ao invés de ficarmos atacando a pequena Greta, poderíamos nos dar o trabalho de pensar sobre o que estamos fazendo e porque não somos nós a estar ocupando a posição que a pequena Greta ocupa. Crianças não têm que mudar o mundo, elas têm que recebê-lo de nós adultos como espaço que lhes possibilite a emergência do novo. Que mundo estamos legando a nossas crianças? As novas gerações terão um mundo a receber? A Greta e outras crianças até podem dar uma resposta a tais perguntas. Mas é a nós, adultos, que cabe a responsabilidade de garantir a continuidade do mundo.

Para quem quer se inteirar das reflexões de Hannah Arendt sobre Little Rock, seu texto se encontra em sua obra Responsabilidade e julgamento, publicado pela Companhia das Letras.

segunda-feira, setembro 23, 2019

BALA PERDIDA



Toda bala perdida parte da arma de um policial. E toda bala perdida encontra sempre um inocente. Nessa guerra em que só inocentes morrem, quem puxa o gatilho dorme tranquilo? Como alguém que tira a vida de uma criança, mesmo que por “erro” ou “engano”, olha para si e se explica? Basta responder-se: “estava apenas cumprindo meu dever, foi uma fatalidade, uma casualidade”? A bala é perdida, mas quem puxa o gatilho, o que é? Como ele se responde? “Cumpri a ordem de meu comandante!” o faz dormir em paz ou lhe tira o sono? No corpo caído há sempre um inocente. Mas que tipo de homem se encontra atrás de uma bala perdida?  Toda bala perdida parte de um assassino, que se esconde atrás de um comando. Na bala perdida não há erro ou engano, o que ela cumpre é o desejo de quem puxa o gatilho. O desejo de quem atira, antes ou depois, pouco importa, é matar. Tirar a vida de outro é sua sede. Toda bala perdida parte de um assassino, de alguém que sonha em tirar vidas! Toda bala perdida é uma realização para quem atira!

sexta-feira, setembro 20, 2019

Sobre o Ato de Ler

“O livro perde sua razão se fechado”


Nós vivemos rodeados de leitores analfabetos como aponta Leonardo Boff na seguinte passagem: “O pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não tem paciência para ler. Falta-lhe tempo”. Seguindo Boff ressalta: “A leitura nos dá um tempo que nunca teremos. O tempo de ouvir o que de fato pensamos ser e somos ... A leitura não pode ser dinâmica. Deve ser lenta ... Lenta e intensa como uma noite de amor. Lenta e inesquecível como a contemplação de uma cachoeira gigante. Lenta e estimulante como uma oração na catedral da alma... A liberdade de pensar não é um meio com o qual atingimos uma liberdade maior. A liberdade de pensar é um objetivo com o qual atingimos a própria liberdade de existir...” (Leonardo Boff, O despertar da Águia, 209).
Adriano, personagem de Youcernar lembra-nos que: “Um homem que lê,  pensa ou calcula, pertence a espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos ele escapa, inclusive, ao humano” (Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, 70).
Para circunstâncias como a nacional, em O Leitor Criativo, Gabriel Perisse ensina: “... Uma sociedade que deseja recompor-se precisa construir uma linguagem nova em folha, própria dos que redescobrem a pureza do sexo, a ousadia da gratidão, a aventura da gratidão, as exigências do trabalho, a verdadeira função do lucro, o papel da universidade etc... Uma pessoa que deseja expressar-se com mais criatividade e bom senso deve seguir o conselho de Clarice Lispector que, escritora e dona de casa, segredou certa vez: “Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar poeira da palavra amor”. (Gabriel Perisse, O Leitor Criativo, Ômega Editora, São Paulo, 2001, 10, 15-16).
A leitura exige um esforço de conquista, pois “todo livro é como uma fortaleza que não pode ser conquistada por fora. Do contrário, acharíamos ser suficiente a leitura que nos obrigam na escola.” (Boris Gunjevic, Todo Livro é como uma fortaleza: a carne foi feita verbo. In ZIZEK, Slavoj; GUNJEVIC, Boris. O sofrimento de Deus, Invenções do Apocalipse, p 109.) Assim: “Não se pode obter nada de uma leitura feita sob pressão. Se todo livro é uma fortaleza, eles precisam ser conquistados por dentro: é preciso haver o desejo de dominar o texto com uma intenção subjetiva. Somente esse tipo de leitura se torna uma luta de classes, e dizemos isso com uma pitada de anacronismo irônico. Daí a leitura ser primordialmente uma forma múltipla de comunicações e um locus de lutas ideológicas, como sempre foi dito por Roland Barthes... Ler numa época dominada pela “imagem” não é algo que se faz nas horas vagas, ou como privilégio de uma minoria dominante, mas antes como prática diária de resistência aos sistemas interligados de poder e controle. É por esse motivo que estratégias de leitura se tornaram categoria fundamental das estratégias políticas...” 
Neste sentido, Paulo Freire lembra que “a compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado” (Paulo Freire, Considerações em torno do ato de estudar, em Ação Cultural para a liberdade e outros escritos, p. 14). 
Rodner Lúcio explica que “o sentido de um texto não está no texto, não está no autor do texto, está no leitor do texto, munido de seus filtros existenciais.” De tal modo, “é preciso considerar os modos como as pessoas leem o mundo, dão significado às suas práticas e relações, como se explicam e se situam nas teias de relações em que se inserem.” Nesta dinâmica, muitas vezes, “uma coisa é o que o autor escreve, outra coisa é o que o leitor apreende.” Daí que, “nem sempre a leitura “liberta”. A leitura também cega, reforça obscurantismos.” (Euripedes dos Santos).
Uma revolução não se faz sem livros: “Sem leitura promovemos muitas passeatas, mas nenhuma revolução” Rodner Lúcio. Mas uma leitura desencarnada, que não considere “a leitura de mundo do leitor”, apenas domestica. 




quinta-feira, setembro 12, 2019

REFLEXÕES SETEMBRINAS




I

Eu tenho posições muito pouco claras e muito pouco serenas sobre o suicídio. Há, a meu ver, suicídios que são resultados de doenças psíquicas reunidas e resumidas na depressão. Há as pressões sociais, políticas, econômicas que influenciam a prática. Ao fim, é só uma forma de morrer. E como uma forma de morrer, é a que povoa meus pensamentos. As circunstâncias políticas e econômicas são propícias, as estruturas psíquicas também favorecem... No entanto, há, ainda, em mim, a vaga consciência de que nenhuma escolha pessoal produz efeitos apenas sobre quem escolhe: toda escolha pessoal atinge a comunidade afetiva de que um faz parte. E minha comunidade afetiva não está preparada para um gesto individual impactante como o suicídio. É esse frágil elo, essa, às vezes, quase apagada consideração de afeto e de responsabilidade aos afetos da comunidade afetiva que me vai firmando. Mas, há dias que o desejo é de renuncia... Há também o receio do fracasso, algo possível em qualquer empreendimento humano. Este é o fio mais resistente.

II

Quando adoecemos, adoecemos também as pessoas a nosso redor, as tornamos reféns de nosso adoecer. As doenças psíquicas, principalmente, aprisionam as pessoas a nós. Um doente é um incomodo... Não devíamos ser gaiolas para ninguém. Não temos o direito de tolher a existência, o desejo de voar das pessoas que nos cercam. Para elas deveríamos ser trampolins, ser apoio, sustento para que desenvolvam suas potencialidades.  Ao adoecer deveríamos nos afastar, e eu tenho estado com esta ideia na cabeça... Se você some, você cria um desespero nas pessoas, morrer as liberta.

III

A morte é uma transcendência da condição humana. Qualquer que seja a maneira, não se dá quando queremos, como queremos. Mesmo no suicídio morrer não é um ato de vontade; é um acontecer. A morte, seja de que modo for, é um acontecer. O acontecer é um kairós, um tempo oportuno, um tempo de graça. Morrer é doação no tempo. A morte tem o seu momento; o ato de vontade as circunstâncias, o gatilho que o dispara... Às vezes, o ato de vontade e o acontecer se encontram, mas nem sempre. A incerteza nos faz hesitar... Eu projeto-me me passar, o acontecer espreita, mas não se aproxima, aguarda as circunstâncias... Eu a certeza de sucesso...

   

quarta-feira, setembro 11, 2019

SOBRE O BEIJO


O mal não é uma entidade ou um personagem. O mal é fruto das ações humanas. Apresenta-se nos efeitos indesejados de uma escolha ou nos resultados de uma escolha. O mal verdadeiro é o resultado de uma escolha: quando, de antemão, sabemos que ao fim de uma ação alguém sairá prejudicado e este é o nosso intento. Este tipo de mal se alimenta da inveja, do ciúme, da vontade egoística de possuir tudo pra si, do ódio. Ele provoca divisões, desentendimentos, separações, inimizades, sofrimento, doenças. Ele descaracteriza as pessoas, as mutilam, as humilham, tira-lhes a dignidade humana. E, em sua realização mais radical: a morte, apresenta-se soberbo.  As histórias infantis narram sempre as peripécias de um personagem perseguido por um vilão, geralmente ambicioso, invejoso, orgulhoso, reclamando uma posição que não é sua. O herói, enredado nas tramas e tramoias e trapaças do vilão, perde a confiança dos amigos, perde o direito à pátria, o direito a caminhar livremente, a viver plenamente: sem enfeitiçados, envenenados, mortos. Ao fim das narrativas, os vilões sempre vencem. Não, a história não termina com a vitória do vilão que reduz o herói a um algo inerte, adormecido e, por vezes morto. Sempre aparece um príncipe – que tem sua raiz em principium, fundamento, o que sustenta o inicio ou o iniciar de uma ação – que sela o personagem com um beijo e resgata-lhe o direito de ser, de ocupar o seu lugar, de viver. O beijo é o ultimo recurso humano contra as ações maléficas de homens e mulheres investidos de excessos, cegados pela inveja, a cobiça o ódio. O beijo rompe a cadeia de eventos que aprisiona o herói no feitiço, no veneno, na morte. O beijo inaugura a possibilidade do novo, o milagre do inesperado, quando tudo parece ser desespero. Nas histórias infantis o beijo encerra a história, ele não é apresentado como uma conquista, ou o ato de uma sedução, mas como uma doação. O beijo vence as ações más, porque, também ação humana, o beijo, nas histórias infantis é princípio vital, é força restauradora, é milagre que nos convida a uma nova história. Vivemos sob o signo do ódio, e os que odeiam, odeiam a manifestação da vida, a potencialidade do encontro, a emergência do novo. Os que odeiam se apegam ao gasto, ao carcomido, ao esgotado, ao pútrido de nossa história. O que eles chamam tradicional é o embotado, o corrompido, o que nega o tempo novo. Por isso vetam o beijo homoafetivo. Beijar é vida, e os que odeiam, odeiam a vida, mesmo que digam seguir um Deus que beijou-nos com um hálito de vida...

terça-feira, setembro 03, 2019

MARINHO


Se serviu para alguma coisa, o Roda Viva expôs o baixo nível do jornalismo corporativo brasileiro (Kiko Nogueira, Diário do Centro do Mundo)

A bodega de pai era frequentada por um certo Marinho, revisor de redação. Marinho trabalhava num dos jornais mais importante da capital. Passava todo dia bem cedinho, quando pai estava abrindo as portas para receber o padeiro, tomava “uma quentinha” para “enfrentar o cargueiro humano até a Capital”. À noitinha, quando voltava da Capital, se instalava ao pé do balcão e só deixava a bodega com pai baixando as portas. Marinho era proseador que só, tinha sempre consigo um exemplar do jornal em que trabalhava, e comentava com outros frequentadores as manchetes, vez ou outra lia as noticias. Muitos não sabiam ler e tenho pra mim, hoje repensando esta figura, Marinho havia se dado a missão de nos informar sobre o mundo. Foi Marinho que me ensinou a desenhar rostos traçando figuras geométricas, ensinou-me também as poucas noções que tenho de fotografia. Mas me interessa, aqui, as observações de Marinho sobre os jornalistas daquele tempo. “Meus caros, vão por mim”, dizia entre uma golada e outra de cachaça, “não confiem em tudo o que vocês leem ou ouvem: os jornais trazem o ponto de vista do editor, aquilo que a ele interessa”. Outras vezes dizia, “o jornal é a voz da empresa jornalística, isto é de seus donos.” Certa feita, voltando de uma visita ao banco, pediu sua cachaça preferida. Sua voz era irritadiça e cansada. Depois de uma golada desabafou: “tem bancário que defende os interesses do banco mais que o banqueiro”. Para mim, molecote, banqueiro e bancário era a mesma coisa: “Não, não são meu caro: um é o dono da mansão, o outro o cãozinho que ladra garantindo sua porção de ração”. Marinho estava para poucas conversas naquele dia.  Noutra feita ele chegou ao ponto desta arenga toda. “Você sabe”, perguntou-me, enquanto eu o servia, “qual a diferença entre um jornaleiro e um jornalista?” Não, eu não sabia: “O jornaleiro vende jornal, o jornalista trabalha para o jornal”. Depois de petiscar uma fatia de salame, confidenciou: “e trabalhar para o jornal é subjugar-se ao subjugado!” Pra mim, Marinho falava grego. “Quem determina o que publicar ou não, onde e quando publicar, se na primeira pagina, se num caderno especifico, ou numa matéria especial, se no centro ou no canto de página, é o editor. O jornalista é só um trabalhador, subjulgado ao editor. E o editor, meu caro, o editor é o cachorrinho de luxo lambendo as botas do dono do jornal”. Marinho, fez uma pausa para cumprimentar um que chegava, ofereceu-lhe uma fatia de salame, uma cachaça. Depois emendou: “Meu caro, não confunda jornaleiro com dono de Jornal: o primeiro vende o jornal, o segundo pauta os rumos do Brasil”. Marinho estava possesso aquele dia, havia discutido com um na redação. “Eu odeio jornalista que entrega sua matéria sem luta, sem resistência, sem reticências. Pra mim, jornalista que abdica de sua capacidade reflexiva, que não toma posição, não é jornalista: é moleque de recado”. Era década de 70 e, um dia, Marinho sumiu.    

domingo, setembro 01, 2019

OLÁVIO E CARVAIO


Vô tinha um pangaré de nome Olávio. E vô e Olávio eram, como dizia vó: “corda e caçamba”. “se eu morrer, este peste não há de dar conta. Mas Olávio que morra, Olávio que morra...”, murmurava vó enciumada.  Distração de vô era conversar com Olávio à sombra do umbuzeiro. Tardezinha, vô tornava da roça, desaparelhava Olávio, soltava-o no pasto. E depois de se banhar e tomar café com broa de fubá, às vezes bolinho de chuva, principalmente quando vinham os primos da cidade, vô pegava palha, fumo de rolo, o canivete a banqueta e se ajeitava debaixo do umbuzeiro para pitar e prosear. Bastava um dois assovios e Olávio se juntava a vô. E vô falava da lida do dia, da terra arada, da semeadura, da expectativa por chuva, de colheita boa, farta; vô falava das coisas que tio ouvia e trazia da cidade: “Essa gente, Olávio, que estuda muito, como Zito, pra saber das coisas, acaba é por não saber nada. Aprendem de tudo, de tudo sabem, mas o necessário: ser justo, manter compromisso, responder pelo que faz. Isso, Olávio, isso, essa gente não aprende não, Olávio!” E Olávio parecia compreender vô, e vô parecia entender Olávio: “Ocê tem razão, Olávio! Ocê tem razão!”, dizia vô aos relinchos do pangaré. Era uma diversão contemplar vô e Olávio à sombra do umbuzeiro. Um dia vô me segredou: “Fio, é tudo encenação, minha e de Olávio, pras pessoas num achar que sou louco, que não funciono das cacholas. Num é com Olávio que converso não, são com minhas ideias, minhas inquietações, uns compadres e umas comadres que me falam aqui dentro desse couro velho.” Um dia veio de eu perguntar a vô o porquê o nome Olávio para o pangaré. “seu tio Zito”, respondeu.  Depois explicou: “Seu tio Zito tem umas ideias que ele trás da cidade que é de chocar até mesmo o Olávio. E quando eu comprei esse Olávio aí, seu tio tava com ideias que ele trazia da cidade de um tal de Olavo que explicava e sabia e tal. Num pensei duas vezes, batizei Olávio, Olávio”. E vô me dizia: “Sabe, fio, eu não sei muita coisa do mundo não, nunca saí deste nosso chão, sempre na lida, num tive tempo de aprender as letras, não. Sua tia até fez esforço pra me ensinar, mas fio, sou casco duro, só sei lidar com a terra e com os bichos.” Eu me divertia com vô e seu Olávio: “Olávio, cê num sabe da nova, Zito tá com ideia de que a terra é plana”... “Ocê tem razão, Ocê tem razão!” Uma vez eu peguei vó conversando sozinha na cozinha: “é cada uma que a gente fica sabendo, vou-te contar...” “Voinha, tá falando sozinha é?” “Não, fio, falo com a porta. Seu vô fala com o Olávio, eu falo com o Carvaio!” Vó tinha dado nome pra porta.   Quando a gente relembra estas coisas, tia, de tudo, acha graça. “A vida no sitio tinha sua graça. Lá no sitio, seu avô conversava com o Olávio, sua avó com o Carvaio, e a dureza daquela lida se aliviava. Mas na cidade, a coisa é trágica: as pessoas se encantam com uma mistura de burro e porta e leva a sério tudo o que ele fala”. E tia cai na risada: “hora desta, eu compro um burro pra chamar de Capitão...”.

sábado, agosto 31, 2019

BREJEIROS


Dia desses, em nossa pacata região, uma escola foi alvo de manifestações de pais de alunos que exigiam a demissão imediata do professor de matemática. Os pais estavam inconformados, pois o tal professor, ao juízo deles, ao invés de estar ensinando aos pupilos a arte de somar e multiplicar para subtrair dos que não sabem – não que disseram isso explicitamente –, estava doutrinando-os.  É que, explicando o famoso Teorema de Pitágoras, o professor resolveu ampliar os horizontes culturais dos pupilos com algumas informações gerais sobre o matemático grego. Um dos pupilos levou para casa, a seu modo, o novo conhecimento e o expôs durante o jantar. O pai, à beira de uma sincope, engolia a comida transtornado. Sabia pelo filho que Pitágoras era fundador de uma seita que advogava que o ‘1’ era origem de todo o universo e os elementos da natureza regidos por ordens numéricas. O pai levou sua contrariedade ao púlpito e motivou um movimento contra a escola e o professor. Exigiam, os pais enfurecidos, que se queimassem os livros de matemática e que os nomes de Pitágoras e sua esposa, a Hipotenusa, fossem declarados subversivos e perigosos à sã doutrina de que o universo é regido pela grande Consciência Cósmica, que ordena os elementos da natureza e atribui ao gênero humano medir a realidade como lhe parece, declarando ser o que é, e não ser, o que não é... Acatando o manifesto, o dirigente de ensino da região determinou que “se recolha os livros de matemática”, e “suspende o ensino da mesma, até que se revise o Teorema de Pitágoras e o ajuste aos valores da tradicional família brejeira”. (FOLHA DE BANANÓPOLIS, Do correspondente de Brejeiros).