sábado, novembro 02, 2019

NOSSO HOLOCAUSTO COTIDIANO

Por Claudio Domingos Fernandes

Entre nós homens e mulheres em processo de humanização, raça não existe. Existe o racismo, que não é universal, nem de um grupo particular. Nem todo mundo é racista, nem o racismo pertence a um determinado grupo. Deste modo não existe racismo reverso, existe apenas racismo, que atinge a todos nós, se defendemos que uns são melhores ou piores devido suas características étnicas. Assim, o conceito de raça existe, mas a existência de diferentes raças humanas – e daí, a existência de raças inferiores – não. Os privilégios de uns poucos e a escassez de recursos de tantíssimos outros não encontra mais sustentação na biologia. São fatores históricos e aplicações políticas de determinadas teorias que explicam, mas não justificam, a opulência criminosa de uns, a criminalização obscena de tantos outros.
“A origem do pensamento que entende a humanidade a partir de raças diferentes está no século XVI e na formação dos Estados nacionais europeus” (SILVA; SILVA, 2013, p. 346). Foram, porém os iluministas “que cunharam as primeiras doutrinas racialistas”. Assim, durante muito tempo confundiu-se raça com a noção de nação, de povo, de etnia. A noção de raça como ideia da existência de heranças biológicas e físicas permanentes e distintivas de comportamento cognitivo e moral dá-se no século XIX “em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas” (Schwarcz, 1993, p. 48), sobretudo darwinistas. Exemplares são a frenologia e a antropometria, que prometiam “interpretar a capacidade humana tomando em conta o tamanho e a proporção do cérebro dos diferentes povos” (Idem, p. 48).
Essas pseudociências influenciaram teorias eugênicas, que não apenas exaltavam a existência de raças, mas as classificavam em superiores e inferiores, propagando meios de controle da miscigenação, que consideravam degenerar a evolução das “raças superiores”, por fixar “sempre as características mais negativas das raças em cruzamento” (Idem, p. 57). Influenciaram, também, a Antropologia criminal de Lombroso, que defendia que a criminalidade era uma questão biológica e hereditária. A violência e a criminalidade deixava de ter fatores históricos, econômicos e políticos em sua estrutura, e passava a ser determinado pelas características físicas e biológicas dos homens e mulheres e de seus grupos de pertencimento. Assim, quanto mais miscigenado um grupo, mais provavelmente propenso ao atraso social e à criminalidade ele estará fadado.
O racismo é a aplicação prática e política dessas teorias, cujo exemplo mais escandaloso de nossa história recente é o holocausto. Seis milhões de judeus perderam suas vidas em campos de concentração e câmaras de gás por terem sido “reduzidos ao mínimo denominador comum da simples vida biológica” (ARENDT, 2008, p. 227).
A biologia avançou, e hoje, nenhum cientista sério defenderia que a forma de nosso corpo, a cor de nossa pele, de nossos olhos, o nosso cabelo, nossa língua e linguagem, determinam nossas inclinações políticas, religiosas, morais, cognitivas e culturais. No entanto, ainda é comum discriminar as pessoas por conta de suas características físicas e ou identificação a seus grupos de pertencimento.
No Brasil, então, a crença da existência de raças povoa o imaginário popular e enraíza-se nas estruturas de poder e comando, principalmente no preconceito de cor. Diluído nesse preconceito, a crença de raças diferentes sustenta as explicações dos privilégios de alguns poucos diante da escassez de recursos da gritante maioria, explica a pouco representatividade de homens e mulheres de pele escura nas estruturas de poder e de comando.
Em sua aplicação política mais nefasta, explica, mas não justifica, o rigor das estruturas judiciais e a truculência policial contra as camadas populares e empobrecidas (sim, as pessoas são tornadas pobres, a pobreza é uma produção política e não uma condição social) nas periferias de nossas cidades. Esse rigor judiciário e essa truculência policial atingem, principalmente, nossos filhos e filhas, tornando nossas vidas um holocausto permanente e cotidiano.
Sob o titulo de controle social e combate à criminalidade, vamos sendo executados ou encarcerados arbitrariamente, criminosamente. Mesmo negando, estas práticas são implementos políticos com base na diferenciação de raças e na inferiorização de seres humanos. Para o Estado, suas elites e sua polícia somos incontados, descartáveis.
Raças não existem. O racismo, sim. E é mais que um discurso social, e ou um comportamento condenável nas pessoas; é uma prática política: nosso holocausto cotidiano.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e questão Racial no Brasil (1870 - 1930). São Paulo: Companhia das Letras. 1993.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Marciel Henrique. Dicionário de conceitos Históricos. São Paulo: Contexto. 2013.

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