Se serviu para alguma coisa, o Roda Viva expôs o baixo nível do jornalismo corporativo brasileiro (Kiko Nogueira, Diário do Centro do Mundo)
A bodega de pai era frequentada por um certo Marinho, revisor de redação. Marinho trabalhava num dos jornais mais importante da capital. Passava todo dia bem cedinho, quando pai estava abrindo as portas para receber o padeiro, tomava “uma quentinha” para “enfrentar o cargueiro humano até a Capital”. À noitinha, quando voltava da Capital, se instalava ao pé do balcão e só deixava a bodega com pai baixando as portas. Marinho era proseador que só, tinha sempre consigo um exemplar do jornal em que trabalhava, e comentava com outros frequentadores as manchetes, vez ou outra lia as noticias. Muitos não sabiam ler e tenho pra mim, hoje repensando esta figura, Marinho havia se dado a missão de nos informar sobre o mundo. Foi Marinho que me ensinou a desenhar rostos traçando figuras geométricas, ensinou-me também as poucas noções que tenho de fotografia. Mas me interessa, aqui, as observações de Marinho sobre os jornalistas daquele tempo. “Meus caros, vão por mim”, dizia entre uma golada e outra de cachaça, “não confiem em tudo o que vocês leem ou ouvem: os jornais trazem o ponto de vista do editor, aquilo que a ele interessa”. Outras vezes dizia, “o jornal é a voz da empresa jornalística, isto é de seus donos.” Certa feita, voltando de uma visita ao banco, pediu sua cachaça preferida. Sua voz era irritadiça e cansada. Depois de uma golada desabafou: “tem bancário que defende os interesses do banco mais que o banqueiro”. Para mim, molecote, banqueiro e bancário era a mesma coisa: “Não, não são meu caro: um é o dono da mansão, o outro o cãozinho que ladra garantindo sua porção de ração”. Marinho estava para poucas conversas naquele dia. Noutra feita ele chegou ao ponto desta arenga toda. “Você sabe”, perguntou-me, enquanto eu o servia, “qual a diferença entre um jornaleiro e um jornalista?” Não, eu não sabia: “O jornaleiro vende jornal, o jornalista trabalha para o jornal”. Depois de petiscar uma fatia de salame, confidenciou: “e trabalhar para o jornal é subjugar-se ao subjugado!” Pra mim, Marinho falava grego. “Quem determina o que publicar ou não, onde e quando publicar, se na primeira pagina, se num caderno especifico, ou numa matéria especial, se no centro ou no canto de página, é o editor. O jornalista é só um trabalhador, subjulgado ao editor. E o editor, meu caro, o editor é o cachorrinho de luxo lambendo as botas do dono do jornal”. Marinho, fez uma pausa para cumprimentar um que chegava, ofereceu-lhe uma fatia de salame, uma cachaça. Depois emendou: “Meu caro, não confunda jornaleiro com dono de Jornal: o primeiro vende o jornal, o segundo pauta os rumos do Brasil”. Marinho estava possesso aquele dia, havia discutido com um na redação. “Eu odeio jornalista que entrega sua matéria sem luta, sem resistência, sem reticências. Pra mim, jornalista que abdica de sua capacidade reflexiva, que não toma posição, não é jornalista: é moleque de recado”. Era década de 70 e, um dia, Marinho sumiu.
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