sexta-feira, dezembro 29, 2023

TEAMAR

O Manuel Bandeira inventou o verbo “teadorar”. É verdade! Está lá no poema neologismo em que, sem me conhecer, ele me descreve. Diz o Bandeira que teadorar é um verbo intransitivo. Ele só não disse, e não era preciso, que teadorar é um verbo defectível unipessoal, que se conjuga apenas na primeira pessoa singular, do indicativo presente: teadoro. Da mesma natureza é o verbo teamar, que eu conjugo, invariavelmente, seguido do exclamativo: Teamo!

quinta-feira, setembro 28, 2023

OLHOS DE CLARISSA

 


Na beleza desse teu olhar/ Eu quero estar o tempo inteiro. Agepê

 

A litorânea Olhos de Clarissa é destes lugares paradisíacos de cenário encantador. De beleza ímpar, Olhos de Clarissa tem flora e fauna exuberantes. De clima tropical atlântico, suas praias  acolhem o mar, em seu verde cristalino, a descansar maroto em suas areias. Seu entardecer é um convite ao abandono de si, no abraço de céu e mar no horizonte. Em Olhos de Clarissa de mim me esqueço. Oásis de encantos e mistérios, Olhos de Clarissa não me deixa soçobrar ao peso de uma existência desnecessária. Quando meus olhos posam em Olhos de Clarissa, já não penso no risco que me sou. Seu brilho natural seduz, envolve, cativa. Recanto para minhas fantasias é o que se pode dizer de Olhos de Clarissa. Nela  me enleio para não me encontrar comigo e perder-me em desatinos. Em Olhos de Clarissa deambulo em noites insones, e por me perder por seus encantos e mistérios, à  amiga faca e seus sussurros já não dou ouvidos. Em noites vazias, em que a lua se ausenta, contra as desrazões que me alucinam, Olhos de Clarissa brilham-me e me guiam. Então, em suas praias me enleio, escapando ao incerto pulo no absurdo. Olhos de Clarissa são me faróis no mundo.


terça-feira, setembro 12, 2023

O TEMPO NÃO PARA

 

Cazuza tem uma canção que, de tanto em tanto, me descreve: O tempo não para. Da canção falta-me uma metralhadora e falta-me magoas. Desconheço também os que me detestam. Se não tenho arranhões é porque não me arrisco a andar na contramão, que dirá correr na direção contraria. Aqui estou mais para uma canção do Zeca Pagodinho: Deixo a vida me levar. Nos dias sim, eu cultivo flores e alimento pássaros. Nos dias não, e nas noites frias, em que eu não devia nascer, eu tenho os beijos de Ione. Então, sem matar, nem morrer, eu vou ficando; remoendo passados, já que não me vejo num futuro. Não faço questão de que minhas ideias correspondam aos fatos: fatos são gatilhos. Pelo beijo de quem eu amo, pela expectativa de um café, num fim de tarde com quem quero bem, me recolho com meus fantasmas. As poucas pessoas com quem me relaciono acreditam que a piscina, ora cheia de ratos – até quando? –, pode ser restituída às crianças. De suas ilusões  eu vou sobrevivendo, fazendo de uma outra canção do Chico Cesar minha prece: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa”, principalmente: “Da bondade da pessoa ruim.

quinta-feira, setembro 07, 2023

ANABHELLE


Não sei dizer não/ Pra quem gosta de mim (Rita Lee, Benzadeusa)

 

Todas as manhãs indo para o trabalho, passo por uma casa. Tem sempre ali uma que está a varrer a calçada em frente ao portão. Geralmente ela veste um roupão de banho, ou um penhor florido de abotoar. Algumas vezes, em dias de verão, é possível encontrá-la numa regata larga e um short de malha justo ao corpo. É difícil conter o olhar, que, por um instante fugaz, se espicha a esquadrilhar os contornos de seus seios soltos e de sua vulva delineada. Neste atrevimento escópico, certa feita, fui flagrado, por seu olhar. Ao meu rubor de vergonha, ela respondeu com um sorriso inquietante.  Nos dias que se seguiram, não mais a vi. Conjecturei estar passando fora de horário; tê-la agredido com um olhar mais atrevido, mudando sua rotina. Fui encontrá-la, certo sábado, na feira. Eu estava a escolher laranjas: “parecem boas!”, disse, dirigindo-me a palavra. “O preço, está convidativo”, redargui, oferecendo-lhe um tímido sorriso. Na segunda que se seguiu, eu passando para o trabalho, a encontrei a limpar a calçada, como de costume. Quando me viu, acenou: “Bom dia!” Respondi, com um breve aceno, e segui em frente. Passou a ser comum, estes gestos matinais. Na noite de ontem, eu estava na academia, quando: “posso revezar contigo, no aparelho?”.  “Claro!”, respondi no automático, sem dar-me conta, pois estava de costa, de que era ela. E surpreendi-me, ao virar-me. Ela sorria-me gentil, num conjunto de malha cropped e short saia, cinzas, o corpo suado. Revezando os aparelhos, acompanhava seus movimentos. Seus olhos sorriam-me, os meus a comia. Entabulamos alguns comentários sobre a sequência de exercícios, a dificuldade de um ou outro, a pouca atenção do instrutor. Ela quis saber onde eu morava. Disse-lhe que algumas quadras de sua casa. Saindo da academia, ofereceu-me carona. Aceitei. No trajeto falou-me de sua rotina, perguntou sobre a minha. E, então, explicou-me que se matriculara na academia para poder aproximar-se de mim. A certa altura, ela parou o carro, pousou sua mão à minha perna, ofereceu-me seus lábios: “Anabhelle, eu tenho namorado!”, disse-lhe... Anabhelle está lá fora limpando a calçada. Eu me preparo para sair para o trabalho. À porta da geladeira, deixo-lhe um bilhete transliterando versos de Rita Lee: “Mergulhastes na menina dos olhos meus, me fizestes bandida!”


quarta-feira, setembro 06, 2023

Vida Lúbrica

 



 

"Aqui lânguido à noite debati-me/ Em vãos delírios anelando um beijo..." ( Álvares de Azevedo, Lira dos vinte anos)

 

Vai, poeta,

Rir em teus versos tortos

Da presunção

Dos que acham bobagem

Entregar-se  a uma clarividência

Por sua clara ausência

De evidências

Vai, poeta,

De teus sonhos ou delírios,

Sem negar a ciência

Produzir-te um sentido

Seja química

Seja Cupido

Canta, poeta,

O amor correspondido

Brinca, por brincar, poeta,

Em teus versos lúdicos

Com estas querelas

Pois a vida, poeta, é mais

E requer lubricidade

Ante os critérios de realidade

sábado, setembro 02, 2023

NAQUELE SETEMBRO

 

Nossa razão é um Davi frente ao que nos desarrazoa! (Eurípedes dos Santos)

 

Era um setembro. Saí nauseado da empresa. Remoendo insignificâncias, arrastava os passos para a estação, não via por que chegar em casa. Arrastava-me para a estação conjecturando um salto. Uma fraca razoabilidade lutava em mim: “Pedir demissão, era o mais sensato a ser feito.” A desrazão sussurrava recalcadas insidias.  Era um setembro, arrastava-me por um beco escuro, cheirando a urina e  fezes. Um casal copulando, trouxe-me à mente “Bicho”, do Bandeira. Que readequei ao momento: “Vi ontem um casal de bicho/ Na imundície de um beco/ copulando entre os detritos...” Veio-me de vomitar. “O mundo é este deprimente absurdo!”, sorria-me o desejo de não ser. Alcancei a Almirante Afonso, a estação fica à esquerda, tomei à direita. Deixava-me me conduzir por meu pouco apetite de vida. Fui dar na passarela da Algustina Freire. Amparado ao parapeito da passarela, contemplava a fila de carros lá embaixo em ritmo lento. Conjecturava o melhor momento. De algum canto uma canção  invadiu-me:   “Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno...”. Veio-me o dia que teus olhos brilharam ao meu olhar e teus lábios sorriram-me, e, em teu gozo encontrei-me, por algum instante. Naquela noite, era uma outra a canção do Belchior que tocava na jukebox, num bar da Aguiar Coutinho: “Eu estou muito cansado do peso da minha cabeça...” No fim da noite, foi meu corpo a ficar todo marcado de batom, num pulgueiro da Alameda Comendador Eurípides. Mergulhava-me nestas lembranças, fios tênues me mantendo. Olhares ressabiados passavam por mim. E neles eu via a luz do teu olhar, o sabor de teus lábios. À lembrança de teu riso, do teu gemido estremecido, estremecendo-me, do teu cheiro depois do gozo, recobrei a promessa que a ti fiz: “só por hoje não morro!”. Corri a perder o fôlego, para chegar o quanto antes a teus braços e aninhar-me em teus sonhos... “Só por hoje insisto de ser-te motivo de existir. Não te demores: te amo perdendo-te em mim!”, leio num bilhete, marcado de batom, à porta da geladeira. Tomo meu café e saio para vencer o “leão do dia”, com aquele setembro espreitando-me. Saio com a promessa que te fiz: “só por hoje, eu não morro!”

segunda-feira, agosto 28, 2023

NO NINHO DE SERPENTE NÃO SE COLOCA CORUJA (elucubrações ilógicas)

 

 

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Paulo Freire

 

A epígrafe que moldura esta elucubração é repetida ad nauseam em alguns segmentos da luta social. E estes segmentos estão decepcionados com o “advogado do Lula” lá no Supremo. Parece não darem conta que o “advogado do Lula” nunca esteve na pele dos oprimidos, nunca nutriu sonhos de ser opressor. Pessoas do naipe do “advogado do Lula” não sonham, têm pesadelos. Receiam tornarem-se oprimidas. Enquanto advogado do Lula, o agora ministro do STF, cumpriu com primor o que se espera de um advogado: defendeu com todos os recursos possíveis seu cliente. Mas o advogado de Lula não se tornou advogado de Lula por ter saído das lutas populares. Não, o “advogado do Lula” teve as melhores condições de formação que alguém das elites poderia ter. É aceitável o oprimido sonhar em ser opressor, mas não passa pela cabeça de qualquer pessoa próxima ao poder se tornar oprimido. E determinadas esferas de poder são estruturadas para garantir um sono tranquilo ao opressor e não o sonho do oprimido, mesmo que seja o sonho de não ser criminalizado pela cor de pele, condição econômica ou endereço. Lula deve indicar em breve um novo membro para o STF. E se espera que ele indique alguém que represente as minorias. Vamos nós, novamente, nutrir ilusões. Em ninho de cobras não se coloca escorpiões. Não importa a etnia, a religião, a opção sexual, o gênero do próximo ou próxima indicada por Lula, não será um oprimido com sonhos de tornar-se opressor, será alguém que circula nos ambientes de opressão, que até tem um olhar comiserado ao oprimido, mas atua nas estruturas que garantem o sono do opressor. Nossas cortes estão sempre prontas a defender os interesses das elites, quando nos concedem alguma migalha de direito é por controle social, não por respeito às lutas sociais. O próximo indicado ou a próxima indicada por Lula, por estar nesta posição, de poder postular a Alta Corte, não foi educado nos sonhos do oprimido,  foi formado com os pesadelos do opressor: é esta formação que o habilita, a habilita a uma possível indicação do Lula. Os candidatos, as candidatas ao Supremo Tribunal Federal, mesmo que tenham algum viés progressista, são formados nos ninhos de cobras, não nas lutas populares, não espere deles a não ser, vez ou outra, alguma concessão. Não era esperado, mas não me surpreende os primeiros votos do “advogado  do Lula”. “Fii, o coronel não nos dá a sobra porque é bom, nos dá as sobras para nos manter produzindo sua fartura”, dizia vó. As estruturas de poder, os que nelas atuam, estão aí para garantir o sono do coronel.

sexta-feira, agosto 25, 2023

SORRISO DE ALINE

 


Que cidade fantástica é Sorriso de Aline. Se procuras um refúgio dos estresses cotidianos, com certeza, em Sorriso de Aline encontrarás o lugar ideal. Há em Sorriso de Aline uma atmosfera acolhedora que contrasta com a indiferença que experimentamos nas metrópoles. Seu amanhecer não é cinzento e frio, não, é acalorado, aromado de café fresco, iluminado e colorido de flores variadas e cantos de pássaros. Acordar em Sorriso de Aline é um convite a viver. Sempre que me vem de não ser, é em Sorriso de Aline que me socorro. Passear por suas estradas sinuosas, admirando as faixadas de suas casas, aventurar-me em seus morros, de onde contemplo o sol se pôr, e embrenhar-me em suas matas, para ouvir os pássaros e o sons do riachinho Doce Recanto, faz-me esquecer uma existência burocrática e formal. Gosto mesmo das noites em Sorriso de Aline, em redor de fogueiras, ouvindo histórias de infância, beliscando quitutes de vó, desejando o beijo de prima. Sorriso de Aline é um recanto em que me escondo em noites insones.       

quinta-feira, agosto 24, 2023

DO QUE SE APRESENTA COMO NOVIDADE NO CENÁRIO POLÍTICO

 

A singularidade de cada ser humano faz com que a todo nascimento surja algo totalmente novo e, potencialmente, capaz de realizar algo inédito (Hannah Arendt, A Condição humana).

 

Segundo Hannah Arendt, filósofa alemã, de nacionalidade norte americana, é da política a potência do inédito. Mas ela, em algum ponto de suas reflexões, lembra que nem sempre o que se apresenta como novo, produz, de fato, a novidade que se espera ou, numa  expressão freireana, nem sempre o ator social que se apresenta como novidade, produz o “inédito viável” que esperamos da política. E temos visto, com frequência, atores sociais apresentarem-se para agentes políticos, anunciando-se como novidade, aproveitando-se de nosso descrédito, ou suspeita, com os políticos de rotina. O problema é que, geralmente, temos descoberto que o que se apresenta como novo, quando no poder revela-se reacionário. Como “a identidade inalterável da pessoa” e seu caráter só pode ser conhecido depois que a ação política chega a seu fim, mantenho minhas suspeitas por atores sociais colocando-se a disposição do embate político, mantendo, ao mesmo tempo, a crença arendtiana de que, “quando pessoas plurais se ajuntam para se comprometerem em relação ao futuro, os pactos criados entre elas podem lançar ‘ilhas de previsibilidade’ no ‘oceano de incerteza’, criando um novo tipo de confiança e permitindo a elas exercer o poder coletivamente” (Hannah Arendt, A condição humana). Minha utopia, minha ‘ilha de previsibilidade’, é restrita: Eu quero apenas acreditar que nossa cidade possa ser melhor administrada, tendo um olhar de cuidado e assistência aos nossos munícipes em condições de vulnerabilidade. A minha limitada confiança é com o coletivo.

segunda-feira, agosto 14, 2023

ESSA BOBAGEM

 


"A vida sem bobagem não vale a pena ser vivida" (Christine Ramos)

 

No lugar de bobagem, Sócrates disse: "A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida." Mas, para alguns, refletir, principalmente sobre si, é uma grande bobagem. Assim, dedicam-se a saberes mais graves.

Entre os saberes mais graves há os que nos conduzem a dominar o átomo, a manipular vírus e bactérias, a entender nosso funcionamento bio-neuro-orgânico. São saberes, de fato, de tão certos, formidáveis e necessários. Mas saberes que carregam o potencial de produzirem tragédias e catástrofes. Se nos dão conforto, também nos ameaçam. Os saberes-bobagens estão aí, então, a nos dizer: “Atenção: há saberes científicos que, se aplicados, nos conduzem à solução final.” Depois os saberes-bobagens nos alertam do perigo  dos saberes graves em mãos de quem não se analisa. Eu li, em algum lugar, que “na mão de uma pessoa de caráter duvidoso o conhecimento é um perigo”. A ciência é capaz, com seu rigor, com seus métodos, de explicar nosso funcionamento bio-neuro-orgânico, mas são os saberes-bobagens que se dedicam a colocar à prova nosso caráter e entender sua formação. É a eles que me dedico sem desconsiderar a importância dos saberes capazes de nos dar vacinas. “Meu interesse não está no que sabes, meu interesse está no que pretendes fazer com o que sabes”, esta bobagem eu li numa porta de banheiro, no Instituto de Biociências da USP. Ela respondia a uma outra bobagem escrita na mesma porta: “pelo que cagas, eu sei o que comes.” Os saberes bobagens nos ensinam a ter cautela com os saberes científicos. É com eles que eu brinco. Uma vida sem saberes-bobagem, sem uma análise de si mesmo, seria como uma ficção de Aldous Leonard Huxley.

  

sexta-feira, julho 14, 2023

SÁ SEVERINA

 

Para Hélio Rosa de Miranda

 

Vó com voz lamentosa puxava a reza. As Marias, assim chamávamos as rezadeiras, seguiam-na arrastando tristes ave-marias e crendos-padres. No quintal os homens fumavam e bebiam o defunto. Era preciso tia, de tanto em tanto, pedir moderação, inda mais quando os homens explodiam em gargalhadas. Quem havia passado era Sá Severina de Dona Doca. E de Sá Severina, muitas eram as memórias da gente do pequeno arraial. Sá Severina fora a primeira professora e, também, cuidadora de muitos ali. E todos tinham histórias para contar de Sá Severina. “Dinha”, um contava, “me pegou de certa volta, com o olho nas frestas, eu espiava o banho de Gesuelma. Lembra Gesuelma? Pois Dinha pegou que eu espichava olhos pelas frestas e espiava Gesuaelma. Quando lembro a tapa que levei, os ouvidos chegam a zunir: “fio de cão, eu conto pra comadre de tua safadeza! Não quero saber de homem sem brio, não! Se emenda, se emenda! E outra tapa! Depois fez bolo e nos explicou o que não convém a homens descentes.” “Cê lembra da vez que ela pegou nós tudo e levou pra vê televisão? Fez todo mundo tomar banho e calçar sandália. Depois fez nós tudo caminhar até Coronel Fabricio, que recebeu nós com um arregalo nos olhos: “Comadre Severina, que novidade é esta, a comadre por estas bandas? E estes empestiados?” “Combinei, compadre, com Sá Deodora de estes meus filhos e estas minhas filhas de verem a novidade!” “Que novidade,   comadre?” “A tal da caixa que mostra as coisas  e as pessoas do mundo dentro dela” “Sei, agora entendo toda aquela labuta de Deodora em estar a preparar um tanto de quitutes.” “Foi mesmo”, disse um, “um dia de não se esquecer. Só fui ver televisão de novo quando mudei pra cidade.” “Eu gostava”, começou outro, “quando ela nos ensinava as letras e os números. Cês lembram que ela dizia: “o mundo entra por nossos olhos, e o tomamos por nossas mãos como bicho bravo, com nossas mãos o amansamos e tiramos dele o que precisamos para viver. Sem palavras o amansamos para que outros o monte.  Dominando as palavras, dominamos o mundo e ninguém nos monta.” Um silêncio profundo, reverencial tomou o quintal por algum tempo. “Viva Dinha!”, rompeu daquele momentâneo silêncio: “Viva! Viva!” Eu, ali, entendia: não se deixar montar, é o que um professor, uma professora ensina.

quarta-feira, julho 12, 2023

SOU, SIM, TRAFICANTE!

 


“Se meu inimigo fala bem de mim, eu perco o sono. Se fala mal, eu durmo bem” (Zózimo de Ítaca)

 

A palavra tráfico tem o sentido de comércio, negócio e se correlaciona a tráfego ou fluxo nas vias de transporte e de informação. Traficar é fazer algo partir de um lugar e chegar a outro. Em tom negativo, a palavra tráfico é usada para tratar de negócios escusos. Daí que traficante é quem usa de negócios fraudulentos, indecorosos, criminosos. É o tráfego, ou transporte de mercadorias clandestinas, de pessoas para a exploração destas, de substâncias ilegais, de informações infundadas ou falsas com o propósito de obter vantagem escusa que dá à palavra tráfico e sua derivação, traficante, conotações negativas. Mas há tráfego de pessoas, de alimentos, de mercadorias que não são ilegais. Há tráfego de informações, de conhecimentos, de saberes necessários ao nosso desenvolvimento como pessoas e como sociedade. Então, quando um boçal, para defender seu projeto de sociedade fundada em ódio, me compara a traficantes, para dizer que sou nocivo, fico, a princípio ofendido.  Mas, passado o calor da indignação, reflito: aquele que me considera nocivo, que diz que sou pior que um traficante, fala de mim para justificar seu projeto de sociedade. Então eu preciso entender que projeto de sociedade o boçal e os seus defendem implementar. Entendendo que o boçal e os seus defendem uma sociedade do ódio, do rancor, da mesquinharia, uma sociedade de homens vis, entendo que para ele e os seus, eu sendo contrário a tal modelo de sociedade, devo ser mesmo um perigo. As ideias, os saberes, os valores que tráfego em meu ensino são, de fato, nocivos ao que o boçal e os seus entendem por bem comum, por liberdade, por autonomia, por cooperação, por solidariedade e por outros valores que nos humanizam. Nos valores que o boçal se estrutura para me atacar, eu não me vejo e abomino. Por isso durmo bem, por ele dizer que em seu projeto eu não conto. Depois, quando comparamos duas realidades ou circunstâncias e dizemos: esta é pior que aquela, significa que temos conhecimento suficiente das duas. “Melhor comparamos se melhor conhecemos”, dizia um freguês de meu pai. Este mesmo freguês dizia: “O juízo do ignorante desabona o ignorante, não o ajuizado.” Por ter a família envolvida com milícias, talvez, de tráfico e traficantes o boçal saiba muito. Mas de magistério, não é a primeira vez que o tipo demonstra convicta ignorância. Então, ao comparar o que parece conhecer bem a algo que desconhece, o boçal não me desabona, apenas revela a si mesmo. O que o tipo falou de mim e de minha profissão poderia cair na insignificância, mas ele fala do lugar de parlamentar, e faz uso dessa condição para expor sua pequenez moral. Sua fala não me agride, me anima a continuar a ensinar o que ensino, pois combate o ódio, a ignorância, a mesquinhez que o boçal e os seus pretendem implementar entre nós. Sua fala é uma nódoa dentro do parlamento, macula não a mim, mas aquela casa. Não sei se sou pior que os traficantes que frequentam o parlamentar e seus familiares, mas sei que o que trafico, meus parcos conhecimentos, são nocivos aos valores que ele e os seus nos vomitam.

 

sexta-feira, junho 30, 2023

NÃO É SÓ ESTUPIDEZ E CRIME: É ESTRATÉGIA!

 

Um jênio (com “j” mesmo) resolveu explicar num boteco virtual o porquê Lula foi eleito. Segundo o boçal, a eleição de Lula deve-se a nosso QI médio estar abaixo do QI médio mundial. É, segundo o desavisado, Lula foi eleito devido à nossa “pouca inteligência”. A mesma régua poderia ser usada para explicar a sua própria eleição a deputado federal por Goiás.  Mas não vamos cair nessa preguiça cognitiva não. A escolha de uma pessoa a qualquer cargo eletivo envolve uma série de questões, algumas conscientes, outras nem tanto. A inteligência não é o fator determinante na escolha de um candidato. Não podemos dizer que os duzentos mil e mais eleitores do jênio de Goiás sejam tão boçais quanto ele. Há de ter, pois, por afinidade, depositaram confiança nele. Mas o QI médio do povo goiano, que desconheço qual seja, não explica sua eleição. O fato é que expor a própria cretinice tornou-se estratégia política. Esta estratégia deu certo com o Jair (hoje inelegível), que com toda sua estultice chegou à presidência. Então o jênio de Goiás não se incomoda em defecar pela boca, ele busca engajamento. Assim, quanto mais coliformes termotolerantes destila na fala, maior evidência alcança, projeta seu nome para além de Goiás. Vó dizia: “fio, o que um homem faz, outro faz melhor ou pior”. O sonho desse e outros boçais é atingir o êxito do Inepto sendo dele uma versão pior. Ele, como outros tais, se alimenta de homofobia, misoginia, aporofobia, racismo. Tempera tudo isto em uma religiosidade nefasta, que se diz cristã. Cérebro solto, a língua defeca suas idiossincrasias fétidas  sem pudor algum. O cheiro incomodo lhe apraz. Uma das alegrias da quinta série é soltar pum! Deu certo (em termos) com o mito. O parlamentar goiano acredita que dará certo com ele.

terça-feira, maio 30, 2023

UIRAPURUS

 

Minha carne não vem do esperma de um branco. Sou filho dos habitantes das terras altas da floresta e caí no solo da vagina de uma mulher yanomami. Sou filho da gente à qual Omama deu a existência no primeiro tempo. Nasci nessa floresta e sempre vivi nela. (Davi Kopenawa: A queda do céu)

 

Às primeiras horas do dia, o sol já se anunciava às fretas da cabana, prometendo uma jornada de calor intenso. O aroma de café apenas coado e o de toucinho fritando vindos do refeitório de campanha convidava-nos a pôr-nos de pé.  Servi-me em uma caneca com meu nome do café, em uma combuca acrescentei uma espécie de cuscuz, com farinha de milho e mel de uruçu-amarela, banana da terra cozida. Deixei o refeitório para sentar-me embaixo de um cajueiro da  mata. Beberiquei do café. Mastiguei um punhado do cuscuz. Observava os passaros ciscando o chão, saltando às arvores, cantando. Acompanhava a algazza dos papagaios, dentro da mata. Um  vento manhoso singrava sussurrante entre as copas das árvores.

Koty’ara veio sentar-se junto a mim. Trazia tapioca com carne de peixe desfiado e caldo de banana: “Tae-ëty”! (bom dia!)

– Bom  dia, Koty’ara!

Um pássaro pequeno de plumagens avermelhada pousou em seu colo, depois voou para um galho acima de nossas cabeças, de lá, em meu ombro. Olhando para mim, Koty’ara, sorrindo, disse: “tua jornada está em benção, kop’wa abre-te as trilhas!”

Kop’wa é uma espécie de espírito das matas. “Ele dança no canto dos yu’ë (uirapuru)”, explicou-me Koty’ara. “Os yu’ë são ariscos, mas viram em você graça. É kop’wa deitando-te benção!”

Kop’wa é o canto de Uyr’ka para Wari, por ela lhe ter dado muitos filhos e muitas filhas. Wari guardou o espírito de Kop’wa no yu’ë. Ao despertar do sol, quando Uyr’ka faz tudo o que vemos e o que só os xamãs enxergam, Kop’wa acorda os habitantes da floresta e os abençoa. Todas essas coisas, explicava-me Koty’ara. Eu as ia anotando, conforme ela me explicava.

Koty’ara é uma nativa e está nos guiando em nossa expedição. Devemos adentrar a floresta em sua região mais densa para alcançar um grupo de nativos que vive isolado e do qual temos poucas informações. Koty’ara é uma das poucas pessoas a ter a confiança deles. Através dela tentaremos nos aproximar deste povo. Na noite anterior, ao redor de um fogo, Koty’ara nos contou da criação de seu povo:

 

“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 

quinta-feira, maio 25, 2023

DA NÃO-VIOLÊNCIA NO COMBATE AO FASCISMO

  

A ofensa desvela as fraquezas do ofensor. Zózimo de Ítaca

Pessoas desesperançadas viram bons fascistas. Myles Horton

 

Vó era [é] uma negra sábia. Ela dizia que, numa disputa, quem parte para a agressão verbal ou física, demonstra não ter razão: “Como sua conversa é palavra fiada, faz uso da ofensa.” Um seu cliente de pai, Zózimo de Ítaca, ensinava que “a ofensa é uma forma de descredibilizar o outro, procurando preservar de si uma autoimagem superior, “imaculada”. Segundo Zózimo, a ofensa é uma espécie de avesso do argumentum ab auctoritate (argumento de autoridade), que apenas expressa a falta de argumentos do agressor. Eu tratava com vó da ofensa continuada e gratuita que eu e meus irmãos sofríamos na escola, não tinha a que ver com debates e discussões. Simplesmente, gratuitamente, éramos xingados. “Fio”, dizia vó, “aprenda a rir de si mesmo e sofrerás menos”. Um dia, cheguei com um par de dentes na mão, era de um metido a besta. Eu e meus irmãos levamos uma coça de pai: “se filho meu não puder ser doutor, não os quero assemelhado a feitor.”  Segundo pai, nós não iriamos resolver as coisas com violência: “É o que eles esperam de nós, que os respondamos com violência, que nos rebaixemos ao nível deles”, dizia. Zózimo corroborava: “Não se responde uma ofensa com outra ofensa ou agressão. Lançar mão da violência, mesmo em justa defesa, não produz reparação, dá razão ao agressor.”  Por não entender e não aceitar tal filosofia, me indispunha com pai. O meu lema era: “um murro bem dado, às vezes, é necessário.” “Quando é autodefesa, não é violência, é inteligência”, dizia um amigo, citando Malcolm X. “Inteligente, fio”, dizia vó, “é saber ri do agressor.” Eu não aprendi a rir, fui aprendendo, e estou neste processo, a ironia. A ofensa é a resposta do ignorante quando lhe falta argumento; a ironia é a atitude do sábio ante um argumento ignorante.

A ironia confronta o agressor com sua própria ignorância, revela uma existência miserável. Geralmente o agressor vive frustrado consigo mesmo. Se diante dos outros parece soberbo, presunçoso, vaidoso, em seu íntimo encontra um ser medíocre, carente de personalidade. O agressor “gratuito”, amarrado a mil preconceitos, que entorpecem seus sentidos, seus sentimentos, sua inteligência, acolhe com benevolência qualquer falsa informação que lhe mascare a frustração consigo mesmo.  Contra o agressor “gratuito”, o riso desdenhoso de vó, a rendição de pai e Zózimo, a arte da ironia, evitam que o agressor passe a ser o agredido, e revela sua miséria existencial.

“Mas quando o agressor se arrebanha, ele se torna perigoso. A força do número supre a debilidade individual” (José Ingenieros). O fascismo é o reduto em que o ser sem personalidade se sente seguro para ofender e agredir. Protegido no grupo, sua hostilidade à diversidade e à pluralidade se potencializa, e da ofensa se passa à defesa de banimento e mesmo extermínio dos “estrangeiros”. O fascismo se alimenta de preconceitos que desemboca no eugenismo, defesa de uma “purificação” da sociedade, constrangendo ou eliminando os elementos que supostamente a corrompe. Para agregar os seus e os manter em guarda prontos a assumirem o poder e tornar viável o seu mundo sombrio, os dirigentes fascistas alimentam o ser despersonalizado de falsas notícias e discursos de ódio. Sua propaganda difunde um nacionalismo obliquo sustentado em uma religiosidade nefasta. Contra tal situação o riso de vó, o “pacifismo” de pai e Zózimo, a ironia são ineficazes. A única arma capaz de combater o fascismo que agrega o ser despersonalizado é a ação política. Esta ação deve agregar todo aqueles que tenham profundo respeito pelas diferenças, pelas diversidades, pela pluralidade e se inconformam com a violência econômica, religiosa, política, cultural a que as minorias são submetidas, seja através do discurso de ódio, da agressão física, do extermínio, seja através de práticas dissimuladas de restrição de direitos.

Só o exercício político sistemático, persistente e coerente que aproxime todas as vozes contra a escalada fascista no mundo irá abrir possibilidades de um mundo menos ofensivo e mais acolhedor e inclusivo. Contra as hordas fascistas é preciso ações políticas de caráter cooperativo entre os numerosos grupos sociais e suas lutas distintas.

Eu já somei opinião com um amigo que costumava me citar Malcon X: “Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério”.  Mas tenho feito leituras acerca da não-violência como prática política. A não-violência é uma ação consciente e estratégica de defesa da dignidade da pessoa humana; é uma intervenção concreta na realidade sociopolítica, visando a transformação da sociedade e a superação das estruturas que a torna expropriadora das capacidades humanas de se humanizar. Tenho, então, compreendido que não é com punhos e porretes que vamos barrar os seres despersonalizados das hordas fascistas. As agressões que sofremos não são casos de polícia apenas, são, sobretudo de política. O fascismo é um movimento político agregador de boçais. Só pode ser combatido com a política. Esta política deve privilegiar a não-violência. A luta política de não-violência contra o fascismo não corresponde a posições apaziguadoras diante de agressões sofridas pelas minorias. Ela atua com e fortalece as manifestações coletivas de resistência contra instituições, regimes, empresas, coletividades que procuram legitimar o status quo do agressor e vitimar o agredido. Esta política se assenta, sobretudo, no esforço de transformação das estruturas de poder, empoderando indivíduos e coletividades na luta por seus direitos. Mobilizando-se contra as estruturas de poder, a não-violência permite que vejamos os adversários como pessoas, mesmo que alienadas e compondo as fileiras das forças que combatemos. A não-violência não combate pessoas, combate sistemas, organizações, formas de poder que se sustentam da degradação das relações humanas, potencializando conflitos que impossibilitam a coexistência solidaria, plural, diversa, isonômica  entre indivíduos e coletividades singulares. A não-violência acredita poder administrar  os conflitos inerentes às relações humanas de maneira pacífica, disciplinada e criativa, respeitando e exaltando os valores que dignificam a pessoa humana.

 “A não-violência é, paradoxalmente, a violência dos violentados” (Zózimo de Ítaca). Eu tenho me aproximado desta ideia. Como ação política, cogito ser  o único caminho de combate ao fascismo.  Não obstante: um soco bem dado na fuça de fascistóide de bairro é como surra de mãe. Reprimenda, não configura violência.

 

sábado, maio 20, 2023

PIADA NÃO É CRIME

 

Eu passei minha infância ouvindo certas piadas que não me permito contá-las a meus filhos. Ouvia-as no comercio de pai, nas festas de família, em velórios. Eram piadas machistas, sexistas, homofóbicas, racistas, pedófilas, zoofilias. Naquela época, os piadistas papagaiavam Costinha, Ari Toledo, Juca Chaves. E em todos eles tinha a piada do papagaio, tinha a piada do português, do japonês, da Raimunda, tinha piada de corno, piada de gago, piada de loira. Sei delas uma centena. Depois tinham os programas humorísticos: Os Trapalhões, Viva o Gordo, Chico Anysio, etc., seguindo a mesma toada: machismo, sexismo, racismo, homofobia. Este combo, não é, no entanto, um padrão do humor. Ele estrutura todo o padrão televisivo: da programação infantil aos tele jornais, dos programas de auditório aos femininos, no período da tarde, dos policialescos às telenovelas, findando com Sala Especial, em toda a grade, o negro, a mulher, o homossexual eram subalternos, marginais, risíveis. Há quem tenha saudades deste tempo, eu não tenho. Mesmo rindo, não me sentia confortável com a piada do cachorro e do negro que entram numa igreja, da mulher que não sabe diferenciar um micro-ondas de uma televisão ou da “bichona” colocada no seu devido lugar. O riso é uma construção social, e não rimos só de satisfação. Não rimos só do que gostamos. Há aquele riso de canto de boca, manifestação de desconforto. Geralmente meu riso é de desconforto.

Avançamos no tempo. Hoje Ari Toledo, Costinha, Juca Chaves não contariam mais a piada da menina “apalermada” que se oferece ao amigo do pai, para fazer algo com a língua e com as mãos por cinco contos. Chico Anysio reveria o seu tão celebrado Professor Raimundo, Jó Soares o seu Dr. Turíbio (o dentista tarado).   Não, contar piada não se tornou crime, não é crime, continua sendo uma das expressões humanas: “O humano é um animal que ri de si”. O que se tornou crime, porque de crime se trata, é o racismo, a transfobia, a pedofilia, o assédio sexual, moral, psicológico etc. O negro não é mais motivo de piada. O homossexual (nem sei se ainda se usa este termo), a pessoa trans não são motivos de piada, as pessoas com limitações psíquicas, físicas, motoras etc., não são motivo de piada. A mulher, geralmente responsabilizada pela violência que sofre, não é motivo de piada. Daí que o piadista, hoje, como ontem, é de habitat circunscrito: festa de família, roda de boteco, churrascos da empresa, velórios (ao menos quando eu era criança se contava piadas em velório). Como entretenimento de massa, o que está em cena é o stand-up. E o profissional deste humor se ofende se o tratamos por piadista.  “Não, eu sou autoral! Eu elaboro meu espetáculo. Eu não conto piada, eu produzo humor”, ouvi um deles dizendo. Sendo assim, ele tem uma responsabilidade que escapa à responsabilidade do tio chato já embriagado.

Em uma canção, Belchior nos lembra: “Sons, palavras, são navalhas”. Vó, também nos ensinava: “Fio, palavra é faca, parte o pão, mas também mata!”. É preciso, então, responsabilidade com este instrumento: a palavra.  Quem trabalha com a palavra  precisa ter claro que palavras matam, que discursos matam. Escrever não é crime, mas o conteúdo do que escrevo pode tornar-me criminoso. Isto serve para jornalistas, para romancistas, para cronistas. E se o standapeiro trabalha com o texto, é preciso que tenha esta clareza: palavras são faca, cortam o pão, mas, também, matam. Assim, diferente da piada, numa roda de boteco, ao escrever o texto do meu espetáculo a pessoa escolhe a palavra, a expressão, a entonação, o momento de  a usar, porque há uma intenção, ele quer dizer algo, quer tomar posição num debate através do humor.  Então ele tem que ter claro as consequências de seu ato. A escrita é ato. Todo ato produz um efeito desejado ou não. E eu sou responsável seja pelo efeito desejado de um ato, seja pelo efeito não esperado de minhas ações. Então, mesmo que eu não queira cometer crime, se minha escrita configura crime, eu respondo por ela. Piada não é crime! Mas, em nome do humor não posso, não devo, reforçar crimes e preconceitos.

Há um tipo de humor que desperta o senso crítico, ajuda a compreendermos a realidade, a questionar-nos, a questionar as estruturas de poder que regem nossas vidas. Há humor que nos faz repensar comportamentos, valores, pensamentos, que coloca em questão o que pensamos saber. Rir pensando e pensar rindo nos melhora em humanidade. Mas é preciso ter a estatura de um François-Marie Arouet para produzir um humor assim. Há, porém, o humor medíocre, rasteiro, preguiçoso. Um humor fundado em pré-conceitos, na ignorância, na insensibilidade, um humor que acha que tudo é motivo de riso, mas só ri de minorias e facilmente se associa a crimes. Para este tipo de humor não se requer muito, basta seguir uma determinada cartilha, muito utilizada por certos opinadores. A quem interessa produzir humor raso associado a crime, eu indico, então, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Sucesso nos tribunais!   

sexta-feira, maio 19, 2023

DESCULPEM-ME SE AINDA ESTOU PRESENTE

 

Ter nascido me estragou a saúde.1

 

 

A minha mística, uma voz ancestral que me visita com muita frequência, me ensina que em vida não deveríamos ser parabenizados por nada. Segunda ela, não temos mérito algum em nascer, e manter-nos vivo é um dever que cumprimos penosamente, “usufruindo do labor alheio”. “Acumular anos de vida é tão desnecessário e inútil quanto acumular bens dos quais não desfrutamos.” Observando um jardim Giacomo Leopardi2 observa que mesmo que queiramos nos sentir bem, mesmo na estação mais amena do ano não podemos olhar para qualquer lugar e não perceber, um estado de souffrance, (sofrimento):

 

La’ quella rosa e’ offesa dal sole, che gli ha dato la vita; si corruga, langue, appassisce. La’ quel giglio e’ succhiato crudelmente da un’ape, nelle sue parti piu’ sensibili, piu’ vitali. Il dolce mele non si fabbrica dalle industriose, pazienti, buone, virtuose api senza indicibili tormenti di quelle fibre delicatissime, senza strage spietata di teneri fiorellini.

 

Lá, aquela rosa é ferida pelo sol, que lhe deu vida; se enruga, definha, murcha. Lá, aquele lírio é cruelmente sugado por uma abelha, em suas partes mais sensíveis, mais vitais. O doce mel não é fabricado por industriosos, pacientes, boas, virtuosas abelhas, sem indizíveis tormentos daquelas fibras delicadíssimas, sem o abate implacável de tenras florezinhas.

 

Leopardi conclui sua observação dizendo que o que parece ser um lugar de alegria, observando bem é um lugar de sofrimento. O jardim para Leopardi, “è quasi un vasto ospitale ( luogo ben più deplorabile che un cemeterio” – é quase um vasto hospital (lugar bem mais deplorável que um cemitério) –. Assim é a vida um lugar que mantemos, usufruindo da vitalidade de outros. Manter-se vivo, passar de um ano a outro, não é possível sem dor ou sofrimento: E fazemos, dando conta ou não, muita gente sofrer. Se estou ainda vivo, e me pesa saber disto, é porque muita gente está. Sou como a abelha que para produzir um parco mel, sugo a vitalidade de uma flor. Manter-me vivo é um exercício de expropriação de afetos, de sentimentos, de vitalidade dos que me rodeiam. O mel que produzo é sempre fel.

Parabéns!, é uma expressão que me dói aos ouvidos e que me sai engasgada. As coisas que faço se atingem algum valor, algum sentido, algum proveito a outros, outras, nunca são méritos apenas meus. Se não há quem me empurre ou puxe, não me levanto da cama. Tudo que faço só é possível sustentado por outros, outras. Não realizo nada só. Nem a iniciativa de viver a tomo por mim mesmo. Se vivo é porque pessoas outras me firmam as mãos e me amarram às suas vidas. Não entendo ser parabenizado por estar vivo mais um ano. Se coloco na conta as dores e os sofrimentos, próximos e distantes, que produzi e produzo por este feito, vem-me de desculpar-me. Saber que não termino, em especial, o dia de hoje, e que amanhã devo continuar me valendo da miséria que produzo me dá de tomar a iniciativa de não acordar para um novo dia. O dia de meus parabéns será o dia desta coragem. Por hoje resta lamentar não a ter e desculpar-me por ainda estar presente.

Ter nascido, é um infortúnio aos que me amam. Deixem os parabéns, se eu os merecer, e acho que não os merecerei, para quando eu morrer.

Se ter nascido estragou a saúde da Clarice, manter-me vivo limita o pleno viver de muita gente.

 

 

1.     Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999

2.    Giacomo Leopardi:  Zibaldone di pensieri. Nuova edizione condotta sugli Indici leopardiani. A cura di Fabiana Cacciapuoti. Roma: Donzelli. 2014

 

quarta-feira, maio 10, 2023

NOSSA LÍNGUA É SINFÔNICA TECIDA DE VIDAS

                                                                                                           Para Lilian Rodrigues

 

Dia desses se celebrou o dia da Língua Portuguesa e entre os muitos comentários celebrativos um desabono chamou-me a atenção: “Lamentavelmente não há muito o que comemorar por aqui, pois temos visto frequentemente pessoas que não sabem ler, escrever e interpretar textos na sua língua pátria, e isto é vergonhoso.” Há muitas questões sócio-políticas que envolvem este fato. Mas o interesse de quem faz o desabono não é entender as razões do fato. E eu não vou dar-me ao trabalho. Mas sempre que me deparo com este tipo de desabono lanço o olhar a mim mesmo e me cobro usar melhor a gramática, pois faço da escrita meu ofício. E, por mais vigilante que eu me proponho a ser, sempre escorrego em seu uso, principalmente depois da reforma. Eu, confesso, já não sei mais onde vão os acentos gramaticais, como se usa o hífen. Minha dificuldade com o “l” e o “r” na fala sempre me trai na escrita. E a virgula, se não vigio, se posta como lhe apraz. Eu me esforço por escrever bem, e por dominar a gramática, mas como disse, é por ofício que assumo tal empenho. Mas a língua não se resume ao uso da gramática, não se expressa apenas na escrita. Ela é viva, é dinâmica, é rica. Fico observando meu pai conversando com os vizinhos. Imagina um mineiro, um maranhense, um gaúcho, todos com formação escolar precária, conversando e dando-se a entender. A sonoridade, a entonação, o ritmo, a cadência, a expressão específica do lugar que cada um emprega na fabulação compõem a nossa sinfônica língua portuguesa. Sim, nossa língua é musical. Sua sonoridade cambiante de uma região a outra, sua oralidade carregada de expressões próprias de um canto a outro a tornam uma sinfonia viva. É preciso desentupir os ouvidos da gramática para saboreá-la em sua riqueza de tons. Minha avó, analfabeta que era, dizia: “Nois veve”, “tauba”, “canhela” no lugar de “cadela”. Nunca me envergonhei de vó, nunca me envergonhei de pai e seu mineres. Não, eu não tenho vergonha das pessoas que tornam a língua portuguesa maior que  sua gramática. Eu que faço do ensino e da escrita meus ofícios procuro dominá-la como convém a um escritor-professor, e me cobro saber usá-la ante meus alunos e leitores em seus muitos modos: não escrevo bilhetes de amor como se escreve uma petição, não deixo recado na porta da geladeira como de estivesse me dirigindo ao papa. Embora me empenhe com a gramática, eu amo o uso popular de nossa língua, suas oralidades, suas expressões, seus desacertos com a oficialidade. Voltando a vó, ela dizia: “bicho prenhe, fio, num si domina!” Dizia-me, também: “fio, num importa que ocê há di ser, faça por ser o mió, memo num alcançando ser o mió.” Vó não lia, não escrevia, não interpretava texto, falava o melhor português possível. Não consigo ser o professor-escritor que gostaria de ser, mas não deixo de ter sempre em mente seu ensino. Ser “mió” é algo que nunca se atinge, principalmente quando se trabalha com algo tecido de vidas: Não há gramática que domine uma língua viva.

terça-feira, maio 09, 2023

SUA MARCA FICA


 

MENTA E CANELA

 


Trazendo um sorriso franco

No rostinho encantador

Minha linda normalista

Rapidamente conquista

Meu coração sem amor

Nelson Gonçalves

 

Quando meu irmão foi para a cidade, para continuar os estudos, coube a mim dormir com vó, para lhe prestar alguma assistência durante a noite. Eu tinha por volta de 9 anos. O quartinho de vó não era integrado à nossa casa, era apartado. Era um cômodo simples de pau-a-pique, telhado de  sapé e chão batido. Um giral servia-lhe de mesa, um outro conservava o filtro de barro, o bule e alguns copos e talheres. Em um caixote de madeira, vó guardava uns poucos trapos. Não havia cama. Vó se recusava a dormir em cama, preferia a rede. Eu dormia numa esteira de bananeira.  Completava o quartinho de vó dois troncos baixos de copaíba, que serviam de “sentadouro”, como dizia vó, e um oratório de carnaúba que sustentava Nossa Senhora do Desterro. Tapetes de sisal e cortinas de fuxico decoravam o ambiente. Embora tivesse luz elétrica, vó preferia as lamparinas. Dormir com vó fez-me herdar seus fantasmas. É, vó passava a noite confabulando com seus fantasmas. E eu os herdei. Confesso que as primeiras vezes eu me encolhia todo debaixo dos panos de dormir e cheguei a urinar nas calças com Dom Sebastião, um fantasma de vozeirão rude, que aparecia pouco, e era breve. Surgia, ditava ordens, ameaçava castigos, sumia, deixando apenas o cheiro do charuto e da cachaça. Mesmo sobressaltando-me com sua manifestação, fui me acostumando. Sá Maria era mais frequente. Era uma senhora de uns aproximados 70 anos que cheirava alecrim, que, como vó, vestia chitas floridas e turbante, colares e pulseiras de sementes, brincos de tucum. Conversava com vó coisas de criação dos bichos, de ervas, chás e unguentos. Vó e Sá Maria trocavam confidências e receitas. Às vezes, visitava vó Januário, um preto desdentado, fumando corda. Contador de causos, galanteava vó, cantando-lhe modas. Tinha também, Ritinha de Sá Doca. Vestia-se como as normalistas do Pedro II. Tinha os cabelos pretos escorridos que vó lhe os trançava, enquanto ela cantarolava Beijinho doce, das Galvão. Chamava vó de Dindinha. O quarto se enchia do aroma de menta e canela quando Ritinha se manifestava. Certa feita eu brincava no riachinho. Dei com Ritinha banhando-se em suas águas. Estabaquei de susto. Seu vulto nu socorreu-me de eu me afogar: “Que vozinha não fique sabendo. Ela nos arrepia de reio!”, sussurrou-me.  Ritinha foi minha primeira paixão. Num fim de domingo, vó partiu para ter com seus fantasmas em outro plano. Em seu velório os vi uma última vez. Quando falo dessas coisas com mãe e tia elas mangam de mim. Dizem que eu sempre fui de fantasiar. Dias desses, porém, eu estava a folhear um livro de culinária em um sebo no centro. Ao habitual cheiro de mofo do lugar, misturou-se o perfume alecrim de Sá Maria: “As melhores receitas estão no caderninho de Nhá Carmo!”, sussurrou-me ao ouvido. Nhá Carmo é tia, que, de fato, tem um carcomido caderninho de receitas. Não esperando Sá Maria, sobressaltei. O livro que folheava estabacou no chão, atraindo olhares para mim. “Disacustumou, fio, com os parentes? ”, era vó sorrindo-me. Agora, quando não, quando sim, vó e seus fantasmas me visitam. “Que vozinha não fique sabendo. Ela nos arrepia de reio!”, sussurra-me Ritinha, perfumando-me de menta e canela debaixo do chuveiro.

segunda-feira, maio 01, 2023

HÁ UMA LITERATURA DO ALTO TIETÊ?

 

“A literatura utiliza da palavra, como o pintor das tintas, para criar arte” Christine Ramos

 

A pergunta no título deste texto foi lançada por Ademiro Alves de Sousa (Sacolinha) durante o EducaShow, que ocorreu entre 25 e 30 de abril, no Parque Max Feffer, Suzano. Participei da conversa com meu compadre Marco Maida e o poeta e dramaturgo Matheus Borges. Entre os presentes destaco a presença do poeta Vandei Oliveira, o Poeta Zé, e acompanhado da esposa Cristina Domingos, o filósofo Elvis Almeida, sempre com uma pergunta provocativa. O que segue é um exercício de pura divagação a partir do que lá foi dito.

A linguagem humana é variadíssima, além de complexa. De um galho de árvore quebrado intencionalmente à uma pedra cinzelada, de entalhes em um tronco de árvores a nós em um cipó, de um aceno de mão a um dedo em riste ou sobrepondo os lábios, o ser humano comunica saberes, sentidos, sentimentos, emoções. A palavra, das muitas formas de o ser humano se dizer e dizer o mundo, é a mais complexa porque a mais sofisticada. E ela se presta a muitos usos. Ela acessa, organiza, fixa, conserva, disponibiliza, compartilha o particular de cada indivíduo ou coletividade. Jogando com a memória, o imaginário, a intuição, a criatividade, resgata o passado, descreve o momento presente, prospecta o futuro. O uso da palavra torna o humano acessível, mas, ao mesmo tempo, com a palavra “o  homem mata mais que com faca”, dizia minha avó. O ser humano não é só linguagem, mas sem a linguagem, não seria este ser sendo.

A literatura é uma forma de uso da palavra, não da língua. A língua é como a pedra para o cinzel: a palavra; é algo bruto clamando o entalhe, o polimento. Da língua faz uso as ciências, as religiões, a política, cada uma dessas manifestações e outras tem a língua como árvore a ser talhada pela palavra a seu modo. A língua pede beleza, não apenas precisão lógica, rigor gramatical ou reverencial.

O literato, como um construtor de mosaicos, toma a palavra como a cacos cerâmicos, alinhava-os em sentimentos, em emoções, em sensações, em pensamentos, e dá à língua um lugar-oásis entre os desertos que permeiam nosso cotidiano de falas rudes e perversas.

Não é o lugar que define a literatura. É o escritor, no seu talhar a palavra, dando à língua nuances de sons, sabores, ritmos, cores de seu lugar, que o eleva e o universaliza. Não há literatura deste ou daquele lugar. Há o escritor, que tornando bela a língua de seu lugar, eleva o lugar de onde escreve. O Além Tejo do Pessoa, a Itabira do Andrade, não seriam, não fossem o Pessoa e o Andrade. Não há literatura do Alto Tietê, a quem faça deste cinzel instrumento para ornar a língua do lugar e tornar a realidade menos bruta. No Alto Tietê há escritores de muita excelência, alguns já brilham para além de suas fronteiras. Em suas conquistas pessoais, nossos escritores tornam o alto Tietê mais altivo, e, ao revelar-nos ao mundo, estimulam novos escritores.     

terça-feira, abril 18, 2023

OMBO’M’GO

Estela é um monumento monolítico feito em pedra em que os antigos faziam inscrições de caráter sepulcral. Em um monumento destes, datado entre 1210  e 1205 encontra-se registrado as conquistas do faraó Merneptá. É um monumento de granito, medindo cerca de 3m de altura por 1, 60m de largura e espessura de 31cm. Nele se relata as vitórias do faraó contra os povos da região entre os quais os israelitas. A maioria dos povos citados na estela de Merneptá tem sua existência comprovada em outros registros históricos e se pode traçar deles um perfil cultural. Uma informação nesta estela sempre chamou a atenção dos arqueólogos, a citação de uma tribo sem registros em outros documentos históricos: os Ombo’m’gos. Diz-se na estela que: “Merneptá deteve os Ombo’m’gos, que “que subiram da Núbia”. Tirada está citação os Ombo’m’go, inexistem, é um povo fantasma, nada dele se sabe. Melhor, se sabia. Acaba de vir à luz, leio em uma publicação francesa, o Journal d’étymographie, um conjunto de cerâmica com traços arqueológicos significativos. Encontrado em escavações no Benin, o conjunto é composto de  vasos cerâmicos e entalhes em madeira, um dos vasos é ornado com o desenho de um toro sobre um trono e uma inscrição não identificável, em um outro vê-se um touro sobre um trono, rodeado por personagens em oração, em outros vasos figuram girafas, elefantes, antílopes, leões, bovídeos e símbolos fálicos. Para o antropólogo Jean Jacques d’ Senna, “as iconografias apontam para uma divindade venerada sob a forma de um touro” e “uma região verdejante, cheio de vida animal e humana”. As inscrições encontram-se em duas tabuas de ébano, um caso único. “Das inscrições” relata, d’ Senna, “ainda não podemos dizer muito. É uma escrita pré-meroítica que ainda estamos em processo de identificação e tradução”. Um fato curioso chama a atenção do estudioso, diz ele: “ Mas o que mais nos chama a atenção é o conjunto cerâmico. É um tipo de cerâmica que será encontrada na região do Sinai, onde também se encontram muitos locais de culto a uma divindade sob a forma de um touro. O curioso, no entanto, é que o conjunto cerâmico que nos vem à luz parece ser mais antigo que a cerâmica do Sinai.”

Narro estas coisas para falar de Leopoldo, um fantasma de família, que diz ter sido mordomo na corte de Dom Pedro II. Ele é cheio de me pregar peças e costuma aparecer-me em situações inapropriadas. E desta volta, não foi diferente. Eu deslizava minha língua pelas dobras de Maria Izhabel, quando ela me deu um chute no rosto, antecedido de um grito de susto. Atordoado, percebi-a pálida. Entre nós, Leopoldo com um riso galhofo: “Olá, fogoso mestre, trago-vos novidades”. Estendia-me à mão, sustentando o riso de zoeira: “Eis-te, em primeira mão, a tradução das estelas do Benin, um remoto espírito Ombo’m’ go, me as traduziu.” E, sem mais nem menos, do mesmo modo que apareceu, Leopoldo desapareceu. Maria Izhabel, primeiro, desnorteada, depois avexada, praguejava um rosário de impropérios. Depois de acudir, acalmar e me desculpar com Maria Izhabel, amaldiçoando Leopoldo, mas tomado pela curiosidade, resolvi ler a tradução que me deixara.

“YHW e sua consorte  ASH corriam o deserto e os montes como crianças, e como crianças misturavam suas salivas à terra árida e criava de seus barros toda espécie de estatuetas: pássaros, gnus, girafas, leões... e bonecos sem vida. YHW criava seus Yha (machos) e suas Yhe. ASH criava seus Yha e suas Yhe. E YHW e ASH jogavam com seus Yha e Yhe. E jogavam uns contra os outros, e jogavam como irmãos uns dos outros, e deitavam uns nos outros. YHW deitava seus Yha e suas Yhe sobre os Yha e as Yhe de ASH sem critério, e os colocavam em disputa uns contra outros, ora como irmãs e irmãos, ora como rivais. ASH deitava seus Yha e suas Yhe sobre os Yha e as Yhe de YHW. E em seus brinquedos, toda espécie que YHW e ASH modelava para brincar eram barro. Mas, então, as criações de YHW e ASH, não tinha ainda movimento próprio, não trabalhavam o campo, não caçavam, não geravam. Caindo a noite, YHW encheu o céu de estrelas para enfeitar ASH. ASH encheu a taça de YHW. YHW e ASH, deitando um no outro, tornaram um só e jorraram como rio, e suas águas inundaram seus Yha, suas Yhe e toda espécie de criação suas. As terras revestiram-se de flores e frutos. Desde então, Yha e Yhe  correm as terras de aqui e de além de aqui, e trabalham a terra e caçam e geram yhayha e geram yheyhe. Ora se rivalizam, ora jogam como irmãos, e deitam uns nos outros. Ombo’m’go, é YHW e ASH correndo o deserto, modelando barro, deitando Yha e Yhe, deitando uns nos outros, sem critério. YHW e ASH os abençoa a todos”.

Leopoldo é cheio de graça, é bem possível que tenha sido ele a compor este texto. Maria Izhabel, passado o susto e o aborrecimento, até gostou do texto de Leopoldo. “Que YHW e ASH, nos abençoe!”, exclamou-me em um riso trigueiro, beijando-me os lábios. Contemplando as estrelas, deitamos nossos corpos um no outro.

domingo, abril 16, 2023

AMADA


 

Brincando com fogo


 

AMANHÃ

 


“A vida é como ela é”

 

Antes de começar este texto, devo confessar que meu desejo é chorar.

A vida não pode ser isto, e não é. A vida deveria ser  desafio a quem nela chega. Desafio de produzir algo próprio, original, único.  Algo capaz de evidenciar a grandeza que pode ter o ser humano. Não, a vida não é como ela é. A vida é o que fazemos dela, o como a colocamos em prática em nossas práticas. A vida é como um barro a espera de um artesão que há de moldá-la. Não é possível que a vida seja esta monstruosidade que ceifa a golpes de machado  quem está ainda aprendendo dar os passos, articular as palavras, reconhecer os laços de afeto que há de carregar consigo no desafio que é moldar-se, dar-se um sentido. A vida é! O como, a forma que assume, somos nós que lhe empregamos.  Não é possível que vamos continuar esta trilha de monstruosidades que estamos tecendo em nossa vida, quando podemos produzir humanidade. Não é possível aceitar esta ferida rasgando-nos na alma, roubando-nos o desejo de vida. Eu não quero viver em um mundo que ante nossa monstruosidade nos responde: “é a vida!” Eu só não queria ter acordado hoje! Eu me recuso a viver em um mundo que se conforma à barbárie. Amanhã, talvez, eu não seja!