Trazendo um sorriso
franco
No rostinho encantador
Minha linda normalista
Rapidamente conquista
Meu coração sem amor
Nelson Gonçalves
Quando
meu irmão foi para a cidade, para continuar os estudos, coube a mim dormir com
vó, para lhe prestar alguma assistência durante a noite. Eu tinha por volta de
9 anos. O quartinho de vó não era integrado à nossa casa, era apartado. Era um
cômodo simples de pau-a-pique, telhado de
sapé e chão batido. Um giral servia-lhe de mesa, um outro conservava o
filtro de barro, o bule e alguns copos e talheres. Em um caixote de madeira, vó
guardava uns poucos trapos. Não havia cama. Vó se recusava a dormir em cama,
preferia a rede. Eu dormia numa esteira de bananeira. Completava o quartinho de vó dois troncos
baixos de copaíba, que serviam de “sentadouro”, como dizia vó, e um oratório de
carnaúba que sustentava Nossa Senhora do Desterro. Tapetes de sisal e cortinas
de fuxico decoravam o ambiente. Embora tivesse luz elétrica, vó preferia as
lamparinas. Dormir com vó fez-me herdar seus fantasmas. É, vó passava a noite
confabulando com seus fantasmas. E eu os herdei. Confesso que as primeiras
vezes eu me encolhia todo debaixo dos panos de dormir e cheguei a urinar nas
calças com Dom Sebastião, um fantasma de vozeirão rude, que aparecia pouco, e
era breve. Surgia, ditava ordens, ameaçava castigos, sumia, deixando apenas o
cheiro do charuto e da cachaça. Mesmo sobressaltando-me com sua manifestação, fui
me acostumando. Sá Maria era mais frequente. Era uma senhora de uns aproximados
70 anos que cheirava alecrim, que, como vó, vestia chitas floridas e turbante, colares
e pulseiras de sementes, brincos de tucum. Conversava com vó coisas de criação
dos bichos, de ervas, chás e unguentos. Vó e Sá Maria trocavam confidências e
receitas. Às vezes, visitava vó Januário, um preto desdentado, fumando corda.
Contador de causos, galanteava vó, cantando-lhe modas. Tinha também, Ritinha de
Sá Doca. Vestia-se como as normalistas do Pedro II. Tinha os cabelos pretos
escorridos que vó lhe os trançava, enquanto ela cantarolava Beijinho doce, das
Galvão. Chamava vó de Dindinha. O quarto se enchia do aroma de menta e canela
quando Ritinha se manifestava. Certa feita eu brincava no riachinho. Dei com
Ritinha banhando-se em suas águas. Estabaquei de susto. Seu vulto nu
socorreu-me de eu me afogar: “Que vozinha não fique sabendo. Ela nos arrepia de
reio!”, sussurrou-me. Ritinha foi minha
primeira paixão. Num fim de domingo, vó partiu para ter com seus fantasmas em
outro plano. Em seu velório os vi uma última vez. Quando falo dessas coisas com
mãe e tia elas mangam de mim. Dizem que eu sempre fui de fantasiar. Dias
desses, porém, eu estava a folhear um livro de culinária em um sebo no centro. Ao
habitual cheiro de mofo do lugar, misturou-se o perfume alecrim de Sá Maria: “As
melhores receitas estão no caderninho de Nhá Carmo!”, sussurrou-me ao ouvido.
Nhá Carmo é tia, que, de fato, tem um carcomido caderninho de receitas. Não
esperando Sá Maria, sobressaltei. O livro que folheava estabacou no chão,
atraindo olhares para mim. “Disacustumou, fio, com os parentes? ”, era vó sorrindo-me.
Agora, quando não, quando sim, vó e seus fantasmas me visitam. “Que vozinha não
fique sabendo. Ela nos arrepia de reio!”, sussurra-me Ritinha, perfumando-me de
menta e canela debaixo do chuveiro.
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