Eu passei minha infância ouvindo certas piadas que não me permito contá-las a meus filhos. Ouvia-as no comercio de pai, nas festas de família, em velórios. Eram piadas machistas, sexistas, homofóbicas, racistas, pedófilas, zoofilias. Naquela época, os piadistas papagaiavam Costinha, Ari Toledo, Juca Chaves. E em todos eles tinha a piada do papagaio, tinha a piada do português, do japonês, da Raimunda, tinha piada de corno, piada de gago, piada de loira. Sei delas uma centena. Depois tinham os programas humorísticos: Os Trapalhões, Viva o Gordo, Chico Anysio, etc., seguindo a mesma toada: machismo, sexismo, racismo, homofobia. Este combo, não é, no entanto, um padrão do humor. Ele estrutura todo o padrão televisivo: da programação infantil aos tele jornais, dos programas de auditório aos femininos, no período da tarde, dos policialescos às telenovelas, findando com Sala Especial, em toda a grade, o negro, a mulher, o homossexual eram subalternos, marginais, risíveis. Há quem tenha saudades deste tempo, eu não tenho. Mesmo rindo, não me sentia confortável com a piada do cachorro e do negro que entram numa igreja, da mulher que não sabe diferenciar um micro-ondas de uma televisão ou da “bichona” colocada no seu devido lugar. O riso é uma construção social, e não rimos só de satisfação. Não rimos só do que gostamos. Há aquele riso de canto de boca, manifestação de desconforto. Geralmente meu riso é de desconforto.
Avançamos
no tempo. Hoje Ari Toledo, Costinha, Juca Chaves não contariam mais a piada da
menina “apalermada” que se oferece ao amigo do pai, para fazer algo com a
língua e com as mãos por cinco contos. Chico Anysio reveria o seu tão celebrado
Professor Raimundo, Jó Soares o seu Dr. Turíbio (o dentista tarado). Não, contar piada não se tornou crime, não é
crime, continua sendo uma das expressões humanas: “O humano é um animal que ri
de si”. O que se tornou crime, porque de crime se trata, é o racismo, a
transfobia, a pedofilia, o assédio sexual, moral, psicológico etc. O negro não
é mais motivo de piada. O homossexual (nem sei se ainda se usa este termo), a
pessoa trans não são motivos de piada, as pessoas com limitações psíquicas,
físicas, motoras etc., não são motivo de piada. A mulher, geralmente responsabilizada
pela violência que sofre, não é motivo de piada. Daí que o piadista, hoje, como
ontem, é de habitat circunscrito: festa de família, roda de boteco, churrascos
da empresa, velórios (ao menos quando eu era criança se contava piadas em
velório). Como entretenimento de massa, o que está em cena é o stand-up. E o profissional
deste humor se ofende se o tratamos por piadista. “Não, eu sou autoral! Eu elaboro meu
espetáculo. Eu não conto piada, eu produzo humor”, ouvi um deles dizendo. Sendo
assim, ele tem uma responsabilidade que escapa à responsabilidade do tio chato
já embriagado.
Em
uma canção, Belchior nos lembra: “Sons, palavras, são navalhas”. Vó, também nos
ensinava: “Fio, palavra é faca, parte o pão, mas também mata!”. É preciso,
então, responsabilidade com este instrumento: a palavra. Quem
trabalha com a palavra precisa ter claro
que palavras matam, que discursos matam. Escrever não é crime, mas o conteúdo do
que escrevo pode tornar-me criminoso. Isto serve para jornalistas, para
romancistas, para cronistas. E se o standapeiro trabalha com o texto, é preciso
que tenha esta clareza: palavras são faca, cortam o pão, mas, também, matam.
Assim, diferente da piada, numa roda de boteco, ao escrever o texto do meu espetáculo
a pessoa escolhe a palavra, a expressão, a entonação, o momento de a usar, porque há uma intenção, ele quer
dizer algo, quer tomar posição num debate através do humor. Então ele tem que ter claro as consequências
de seu ato. A escrita é ato. Todo ato produz um efeito desejado ou não. E eu
sou responsável seja pelo efeito desejado de um ato, seja pelo efeito não
esperado de minhas ações. Então, mesmo que eu não queira cometer crime, se
minha escrita configura crime, eu respondo por ela. Piada não é crime! Mas, em
nome do humor não posso, não devo, reforçar crimes e preconceitos.
Há
um tipo de humor que desperta o senso crítico, ajuda a compreendermos a
realidade, a questionar-nos, a questionar as estruturas de poder que regem
nossas vidas. Há humor que nos faz repensar comportamentos, valores,
pensamentos, que coloca em questão o que pensamos saber. Rir pensando e pensar
rindo nos melhora em humanidade. Mas é preciso ter a estatura de um
François-Marie Arouet para produzir um humor assim. Há, porém, o humor
medíocre, rasteiro, preguiçoso. Um humor fundado em pré-conceitos, na
ignorância, na insensibilidade, um humor que acha que tudo é motivo de riso,
mas só ri de minorias e facilmente
se associa a crimes. Para este tipo de humor não se requer muito, basta seguir
uma determinada cartilha, muito utilizada por certos opinadores. A quem
interessa produzir humor raso associado a crime, eu indico, então, “O mínimo
que você precisa saber para não ser um idiota”. Sucesso nos tribunais!
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