Para Lilian Rodrigues
Dia
desses se celebrou o dia da Língua Portuguesa e entre os muitos comentários celebrativos
um desabono chamou-me a atenção: “Lamentavelmente não há muito o que comemorar
por aqui, pois temos visto frequentemente pessoas que não sabem ler, escrever e
interpretar textos na sua língua pátria, e isto é vergonhoso.” Há muitas
questões sócio-políticas que envolvem este fato. Mas o interesse de quem faz o desabono
não é entender as razões do fato. E eu não vou dar-me ao trabalho. Mas sempre
que me deparo com este tipo de desabono lanço o olhar a mim mesmo e me cobro
usar melhor a gramática, pois faço da escrita meu ofício. E, por mais vigilante
que eu me proponho a ser, sempre escorrego em seu uso, principalmente depois da
reforma. Eu, confesso, já não sei mais onde vão os acentos gramaticais, como se
usa o hífen. Minha dificuldade com o “l” e o “r” na fala sempre me trai na
escrita. E a virgula, se não vigio, se posta como lhe apraz. Eu me esforço por
escrever bem, e por dominar a gramática, mas como disse, é por ofício que
assumo tal empenho. Mas a língua não se resume ao uso da gramática, não se
expressa apenas na escrita. Ela é viva, é dinâmica, é rica. Fico observando meu
pai conversando com os vizinhos. Imagina um mineiro, um maranhense, um gaúcho,
todos com formação escolar precária, conversando e dando-se a entender. A sonoridade,
a entonação, o ritmo, a cadência, a expressão específica do lugar que cada um
emprega na fabulação compõem a nossa sinfônica língua portuguesa. Sim, nossa língua
é musical. Sua sonoridade cambiante de uma região a outra, sua oralidade carregada
de expressões próprias de um canto a outro a tornam uma sinfonia viva. É preciso
desentupir os ouvidos da gramática para saboreá-la em sua riqueza de tons. Minha
avó, analfabeta que era, dizia: “Nois veve”, “tauba”, “canhela” no lugar de “cadela”.
Nunca me envergonhei de vó, nunca me envergonhei de pai e seu mineres. Não, eu
não tenho vergonha das pessoas que tornam a língua portuguesa maior que sua gramática. Eu que faço do ensino e da
escrita meus ofícios procuro dominá-la como convém a um escritor-professor, e
me cobro saber usá-la ante meus alunos e leitores em seus muitos modos: não
escrevo bilhetes de amor como se escreve uma petição, não deixo recado na porta
da geladeira como de estivesse me dirigindo ao papa. Embora me empenhe com a gramática,
eu amo o uso popular de nossa língua, suas oralidades, suas expressões, seus
desacertos com a oficialidade. Voltando a vó, ela dizia: “bicho prenhe, fio,
num si domina!” Dizia-me, também: “fio, num importa que ocê há di ser, faça por
ser o mió, memo num alcançando ser o mió.” Vó não lia, não escrevia, não
interpretava texto, falava o melhor português possível. Não consigo ser o
professor-escritor que gostaria de ser, mas não deixo de ter sempre em mente
seu ensino. Ser “mió” é algo que nunca se atinge, principalmente quando se
trabalha com algo tecido de vidas: Não há gramática que domine uma língua viva.
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