sexta-feira, maio 19, 2023

DESCULPEM-ME SE AINDA ESTOU PRESENTE

 

Ter nascido me estragou a saúde.1

 

 

A minha mística, uma voz ancestral que me visita com muita frequência, me ensina que em vida não deveríamos ser parabenizados por nada. Segunda ela, não temos mérito algum em nascer, e manter-nos vivo é um dever que cumprimos penosamente, “usufruindo do labor alheio”. “Acumular anos de vida é tão desnecessário e inútil quanto acumular bens dos quais não desfrutamos.” Observando um jardim Giacomo Leopardi2 observa que mesmo que queiramos nos sentir bem, mesmo na estação mais amena do ano não podemos olhar para qualquer lugar e não perceber, um estado de souffrance, (sofrimento):

 

La’ quella rosa e’ offesa dal sole, che gli ha dato la vita; si corruga, langue, appassisce. La’ quel giglio e’ succhiato crudelmente da un’ape, nelle sue parti piu’ sensibili, piu’ vitali. Il dolce mele non si fabbrica dalle industriose, pazienti, buone, virtuose api senza indicibili tormenti di quelle fibre delicatissime, senza strage spietata di teneri fiorellini.

 

Lá, aquela rosa é ferida pelo sol, que lhe deu vida; se enruga, definha, murcha. Lá, aquele lírio é cruelmente sugado por uma abelha, em suas partes mais sensíveis, mais vitais. O doce mel não é fabricado por industriosos, pacientes, boas, virtuosas abelhas, sem indizíveis tormentos daquelas fibras delicadíssimas, sem o abate implacável de tenras florezinhas.

 

Leopardi conclui sua observação dizendo que o que parece ser um lugar de alegria, observando bem é um lugar de sofrimento. O jardim para Leopardi, “è quasi un vasto ospitale ( luogo ben più deplorabile che un cemeterio” – é quase um vasto hospital (lugar bem mais deplorável que um cemitério) –. Assim é a vida um lugar que mantemos, usufruindo da vitalidade de outros. Manter-se vivo, passar de um ano a outro, não é possível sem dor ou sofrimento: E fazemos, dando conta ou não, muita gente sofrer. Se estou ainda vivo, e me pesa saber disto, é porque muita gente está. Sou como a abelha que para produzir um parco mel, sugo a vitalidade de uma flor. Manter-me vivo é um exercício de expropriação de afetos, de sentimentos, de vitalidade dos que me rodeiam. O mel que produzo é sempre fel.

Parabéns!, é uma expressão que me dói aos ouvidos e que me sai engasgada. As coisas que faço se atingem algum valor, algum sentido, algum proveito a outros, outras, nunca são méritos apenas meus. Se não há quem me empurre ou puxe, não me levanto da cama. Tudo que faço só é possível sustentado por outros, outras. Não realizo nada só. Nem a iniciativa de viver a tomo por mim mesmo. Se vivo é porque pessoas outras me firmam as mãos e me amarram às suas vidas. Não entendo ser parabenizado por estar vivo mais um ano. Se coloco na conta as dores e os sofrimentos, próximos e distantes, que produzi e produzo por este feito, vem-me de desculpar-me. Saber que não termino, em especial, o dia de hoje, e que amanhã devo continuar me valendo da miséria que produzo me dá de tomar a iniciativa de não acordar para um novo dia. O dia de meus parabéns será o dia desta coragem. Por hoje resta lamentar não a ter e desculpar-me por ainda estar presente.

Ter nascido, é um infortúnio aos que me amam. Deixem os parabéns, se eu os merecer, e acho que não os merecerei, para quando eu morrer.

Se ter nascido estragou a saúde da Clarice, manter-me vivo limita o pleno viver de muita gente.

 

 

1.     Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999

2.    Giacomo Leopardi:  Zibaldone di pensieri. Nuova edizione condotta sugli Indici leopardiani. A cura di Fabiana Cacciapuoti. Roma: Donzelli. 2014

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário