Ter nascido me estragou
a saúde.1
A
minha mística, uma voz ancestral que me visita com muita frequência, me ensina
que em vida não deveríamos ser parabenizados por nada. Segunda ela, não temos
mérito algum em nascer, e manter-nos vivo é um dever que cumprimos penosamente,
“usufruindo do labor alheio”. “Acumular anos de vida é tão desnecessário e
inútil quanto acumular bens dos quais não desfrutamos.” Observando um jardim
Giacomo Leopardi2 observa que mesmo que queiramos nos sentir bem,
mesmo na estação mais amena do ano não podemos olhar para qualquer lugar e não perceber,
um estado de souffrance, (sofrimento):
La’ quella rosa e’
offesa dal sole, che gli ha dato la vita; si corruga, langue, appassisce. La’
quel giglio e’ succhiato crudelmente da un’ape, nelle sue parti piu’ sensibili,
piu’ vitali. Il dolce mele non si fabbrica dalle industriose, pazienti, buone,
virtuose api senza indicibili tormenti di quelle fibre delicatissime, senza
strage spietata di teneri fiorellini.
Lá, aquela rosa é ferida
pelo sol, que lhe deu vida; se enruga, definha, murcha. Lá, aquele lírio é
cruelmente sugado por uma abelha, em suas partes mais sensíveis, mais vitais. O
doce mel não é fabricado por industriosos, pacientes, boas, virtuosas abelhas,
sem indizíveis tormentos daquelas fibras delicadíssimas, sem o abate implacável
de tenras florezinhas.
Leopardi
conclui sua observação dizendo que o que parece ser um lugar de alegria,
observando bem é um lugar de sofrimento. O jardim para Leopardi, “è quasi un vasto ospitale ( luogo ben più deplorabile che
un cemeterio” – é quase um vasto hospital (lugar bem mais deplorável que um
cemitério) –. Assim é a vida um lugar que mantemos, usufruindo da vitalidade de
outros. Manter-se vivo, passar de um ano a outro, não é possível sem dor
ou sofrimento: E fazemos, dando conta ou não, muita gente sofrer. Se estou
ainda vivo, e me pesa saber disto, é porque muita gente está. Sou como a abelha
que para produzir um parco mel, sugo a vitalidade de uma flor. Manter-me vivo é
um exercício de expropriação de afetos, de sentimentos, de vitalidade dos que
me rodeiam. O mel que produzo é sempre fel.
Parabéns!,
é uma expressão que me dói aos ouvidos e que me sai engasgada. As coisas que
faço se atingem algum valor, algum sentido, algum proveito a outros, outras, nunca
são méritos apenas meus. Se não há quem me empurre ou puxe, não me levanto da
cama. Tudo que faço só é possível sustentado por outros, outras. Não realizo
nada só. Nem a iniciativa de viver a tomo por mim mesmo. Se vivo é porque
pessoas outras me firmam as mãos e me amarram às suas vidas. Não entendo ser
parabenizado por estar vivo mais um ano. Se coloco na conta as dores e os
sofrimentos, próximos e distantes, que produzi e produzo por este feito, vem-me
de desculpar-me. Saber que não termino, em especial, o dia de hoje, e que
amanhã devo continuar me valendo da miséria que produzo me dá de tomar a
iniciativa de não acordar para um novo dia. O dia de meus parabéns será o dia
desta coragem. Por hoje resta lamentar não a ter e desculpar-me por ainda estar
presente.
Ter
nascido, é um infortúnio aos que me amam. Deixem os parabéns, se eu os merecer,
e acho que não os merecerei, para quando eu morrer.
Se
ter nascido estragou a saúde da Clarice, manter-me vivo limita o pleno viver de
muita gente.
1.
Clarice
Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999
2.
Giacomo Leopardi: Zibaldone
di pensieri. Nuova edizione condotta sugli Indici leopardiani. A cura di
Fabiana Cacciapuoti. Roma: Donzelli. 2014
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