terça-feira, maio 30, 2023

UIRAPURUS

 

Minha carne não vem do esperma de um branco. Sou filho dos habitantes das terras altas da floresta e caí no solo da vagina de uma mulher yanomami. Sou filho da gente à qual Omama deu a existência no primeiro tempo. Nasci nessa floresta e sempre vivi nela. (Davi Kopenawa: A queda do céu)

 

Às primeiras horas do dia, o sol já se anunciava às fretas da cabana, prometendo uma jornada de calor intenso. O aroma de café apenas coado e o de toucinho fritando vindos do refeitório de campanha convidava-nos a pôr-nos de pé.  Servi-me em uma caneca com meu nome do café, em uma combuca acrescentei uma espécie de cuscuz, com farinha de milho e mel de uruçu-amarela, banana da terra cozida. Deixei o refeitório para sentar-me embaixo de um cajueiro da  mata. Beberiquei do café. Mastiguei um punhado do cuscuz. Observava os passaros ciscando o chão, saltando às arvores, cantando. Acompanhava a algazza dos papagaios, dentro da mata. Um  vento manhoso singrava sussurrante entre as copas das árvores.

Koty’ara veio sentar-se junto a mim. Trazia tapioca com carne de peixe desfiado e caldo de banana: “Tae-ëty”! (bom dia!)

– Bom  dia, Koty’ara!

Um pássaro pequeno de plumagens avermelhada pousou em seu colo, depois voou para um galho acima de nossas cabeças, de lá, em meu ombro. Olhando para mim, Koty’ara, sorrindo, disse: “tua jornada está em benção, kop’wa abre-te as trilhas!”

Kop’wa é uma espécie de espírito das matas. “Ele dança no canto dos yu’ë (uirapuru)”, explicou-me Koty’ara. “Os yu’ë são ariscos, mas viram em você graça. É kop’wa deitando-te benção!”

Kop’wa é o canto de Uyr’ka para Wari, por ela lhe ter dado muitos filhos e muitas filhas. Wari guardou o espírito de Kop’wa no yu’ë. Ao despertar do sol, quando Uyr’ka faz tudo o que vemos e o que só os xamãs enxergam, Kop’wa acorda os habitantes da floresta e os abençoa. Todas essas coisas, explicava-me Koty’ara. Eu as ia anotando, conforme ela me explicava.

Koty’ara é uma nativa e está nos guiando em nossa expedição. Devemos adentrar a floresta em sua região mais densa para alcançar um grupo de nativos que vive isolado e do qual temos poucas informações. Koty’ara é uma das poucas pessoas a ter a confiança deles. Através dela tentaremos nos aproximar deste povo. Na noite anterior, ao redor de um fogo, Koty’ara nos contou da criação de seu povo:

 

“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 

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