sexta-feira, julho 14, 2023

SÁ SEVERINA

 

Para Hélio Rosa de Miranda

 

Vó com voz lamentosa puxava a reza. As Marias, assim chamávamos as rezadeiras, seguiam-na arrastando tristes ave-marias e crendos-padres. No quintal os homens fumavam e bebiam o defunto. Era preciso tia, de tanto em tanto, pedir moderação, inda mais quando os homens explodiam em gargalhadas. Quem havia passado era Sá Severina de Dona Doca. E de Sá Severina, muitas eram as memórias da gente do pequeno arraial. Sá Severina fora a primeira professora e, também, cuidadora de muitos ali. E todos tinham histórias para contar de Sá Severina. “Dinha”, um contava, “me pegou de certa volta, com o olho nas frestas, eu espiava o banho de Gesuelma. Lembra Gesuelma? Pois Dinha pegou que eu espichava olhos pelas frestas e espiava Gesuaelma. Quando lembro a tapa que levei, os ouvidos chegam a zunir: “fio de cão, eu conto pra comadre de tua safadeza! Não quero saber de homem sem brio, não! Se emenda, se emenda! E outra tapa! Depois fez bolo e nos explicou o que não convém a homens descentes.” “Cê lembra da vez que ela pegou nós tudo e levou pra vê televisão? Fez todo mundo tomar banho e calçar sandália. Depois fez nós tudo caminhar até Coronel Fabricio, que recebeu nós com um arregalo nos olhos: “Comadre Severina, que novidade é esta, a comadre por estas bandas? E estes empestiados?” “Combinei, compadre, com Sá Deodora de estes meus filhos e estas minhas filhas de verem a novidade!” “Que novidade,   comadre?” “A tal da caixa que mostra as coisas  e as pessoas do mundo dentro dela” “Sei, agora entendo toda aquela labuta de Deodora em estar a preparar um tanto de quitutes.” “Foi mesmo”, disse um, “um dia de não se esquecer. Só fui ver televisão de novo quando mudei pra cidade.” “Eu gostava”, começou outro, “quando ela nos ensinava as letras e os números. Cês lembram que ela dizia: “o mundo entra por nossos olhos, e o tomamos por nossas mãos como bicho bravo, com nossas mãos o amansamos e tiramos dele o que precisamos para viver. Sem palavras o amansamos para que outros o monte.  Dominando as palavras, dominamos o mundo e ninguém nos monta.” Um silêncio profundo, reverencial tomou o quintal por algum tempo. “Viva Dinha!”, rompeu daquele momentâneo silêncio: “Viva! Viva!” Eu, ali, entendia: não se deixar montar, é o que um professor, uma professora ensina.

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