A ofensa desvela as fraquezas do
ofensor. Zózimo de Ítaca
Pessoas desesperançadas viram bons
fascistas. Myles Horton
Vó
era [é] uma negra sábia. Ela dizia que, numa disputa, quem parte para a
agressão verbal ou física, demonstra não ter razão: “Como sua conversa é
palavra fiada, faz uso da ofensa.” Um seu cliente de pai, Zózimo de Ítaca,
ensinava que “a ofensa é uma forma de descredibilizar o outro, procurando
preservar de si uma autoimagem superior, “imaculada”. Segundo Zózimo, a ofensa
é uma espécie de avesso do argumentum ab auctoritate (argumento de autoridade), que
apenas expressa a falta de argumentos do agressor. Eu tratava com vó da ofensa
continuada e gratuita que eu e meus irmãos sofríamos na escola, não tinha a que
ver com debates e discussões. Simplesmente, gratuitamente, éramos xingados. “Fio”,
dizia vó, “aprenda a rir de si mesmo e sofrerás menos”. Um dia, cheguei com um
par de dentes na mão, era de um metido a besta. Eu e meus irmãos levamos uma
coça de pai: “se filho meu não puder ser doutor, não os quero assemelhado a
feitor.” Segundo pai, nós não iriamos
resolver as coisas com violência: “É o que eles esperam de nós, que os respondamos
com violência, que nos rebaixemos ao nível deles”, dizia. Zózimo corroborava:
“Não se responde uma ofensa com outra ofensa ou agressão. Lançar mão da
violência, mesmo em justa defesa, não produz reparação, dá razão ao
agressor.” Por não entender e não
aceitar tal filosofia, me indispunha com pai. O meu lema era: “um murro bem
dado, às vezes, é necessário.” “Quando é autodefesa, não é violência, é
inteligência”, dizia um amigo, citando Malcolm X. “Inteligente, fio”, dizia vó,
“é saber ri do agressor.” Eu não aprendi a rir, fui aprendendo, e estou neste
processo, a ironia. A ofensa é a resposta do ignorante quando lhe falta
argumento; a ironia é a atitude do sábio ante um argumento ignorante.
A ironia confronta o
agressor com sua própria ignorância, revela uma existência miserável.
Geralmente o agressor vive frustrado consigo mesmo. Se diante dos outros parece
soberbo, presunçoso, vaidoso, em seu íntimo encontra um ser medíocre, carente
de personalidade. O agressor “gratuito”, amarrado a mil preconceitos, que
entorpecem seus sentidos, seus sentimentos, sua inteligência, acolhe com benevolência
qualquer falsa informação que lhe mascare a frustração consigo mesmo. Contra o agressor “gratuito”, o riso
desdenhoso de vó, a rendição de pai e Zózimo, a arte da ironia, evitam que o
agressor passe a ser o agredido, e revela sua miséria existencial.
“Mas quando o agressor se
arrebanha, ele se torna perigoso. A força do número supre a debilidade
individual” (José Ingenieros). O fascismo é o reduto em que o ser sem
personalidade se sente seguro para ofender e agredir. Protegido no grupo, sua
hostilidade à diversidade e à pluralidade se potencializa, e da ofensa se passa
à defesa de banimento e mesmo extermínio dos “estrangeiros”. O fascismo se
alimenta de preconceitos que desemboca no eugenismo, defesa de uma
“purificação” da sociedade, constrangendo ou eliminando os elementos que
supostamente a corrompe. Para agregar os seus e os manter em guarda prontos a
assumirem o poder e tornar viável o seu mundo sombrio, os dirigentes fascistas
alimentam o ser despersonalizado de falsas notícias e discursos de ódio. Sua
propaganda difunde um nacionalismo obliquo sustentado em uma religiosidade
nefasta. Contra tal situação o riso de vó, o “pacifismo” de pai e Zózimo, a
ironia são ineficazes. A única arma capaz de combater o fascismo que
agrega o ser despersonalizado é a ação política. Esta ação deve agregar todo
aqueles que tenham profundo respeito pelas diferenças, pelas diversidades, pela
pluralidade e se inconformam com a violência econômica, religiosa, política,
cultural a que as minorias são submetidas, seja através do discurso de ódio, da
agressão física, do extermínio, seja através de práticas dissimuladas de
restrição de direitos.
Só
o exercício político sistemático, persistente e coerente que aproxime todas as
vozes contra a escalada fascista no mundo irá abrir possibilidades de um mundo
menos ofensivo e mais acolhedor e inclusivo. Contra as hordas fascistas é
preciso ações políticas de caráter cooperativo entre os numerosos grupos sociais
e suas lutas distintas.
Eu
já somei opinião com um amigo que costumava me citar Malcon X: “Seja pacífico,
seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos
em você, mande-o para o cemitério”. Mas
tenho feito leituras acerca da não-violência como prática política. A
não-violência é uma ação consciente e estratégica de defesa da dignidade da
pessoa humana; é uma intervenção concreta na realidade sociopolítica, visando a
transformação da sociedade e a superação das estruturas que a torna
expropriadora das capacidades humanas de se humanizar. Tenho, então,
compreendido que não é com punhos e porretes que vamos barrar os seres
despersonalizados das hordas fascistas. As agressões que sofremos não são casos
de polícia apenas, são, sobretudo de política. O fascismo é um movimento
político agregador de boçais. Só pode ser combatido com a política. Esta
política deve privilegiar a não-violência. A luta política de não-violência contra
o fascismo não corresponde a posições apaziguadoras diante de agressões
sofridas pelas minorias. Ela atua com e fortalece as manifestações coletivas de
resistência contra instituições, regimes, empresas, coletividades que procuram
legitimar o status quo do agressor e vitimar o agredido. Esta política
se assenta, sobretudo, no esforço de transformação das estruturas de poder, empoderando
indivíduos e coletividades na luta por seus direitos. Mobilizando-se contra as
estruturas de poder, a não-violência permite que vejamos os adversários como
pessoas, mesmo que alienadas e compondo as fileiras das forças que combatemos. A
não-violência não combate pessoas, combate sistemas, organizações, formas de
poder que se sustentam da degradação das relações humanas, potencializando
conflitos que impossibilitam a coexistência solidaria, plural, diversa, isonômica
entre indivíduos e coletividades singulares.
A não-violência acredita poder administrar os conflitos inerentes às relações humanas de
maneira pacífica, disciplinada e criativa, respeitando e exaltando os valores
que dignificam a pessoa humana.
“A não-violência é, paradoxalmente, a
violência dos violentados” (Zózimo de Ítaca). Eu tenho me aproximado desta
ideia. Como ação política, cogito ser o
único caminho de combate ao fascismo. Não
obstante: um soco bem dado na fuça de fascistóide de bairro é como surra de
mãe. Reprimenda, não configura violência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário