quinta-feira, maio 25, 2023

DA NÃO-VIOLÊNCIA NO COMBATE AO FASCISMO

  

A ofensa desvela as fraquezas do ofensor. Zózimo de Ítaca

Pessoas desesperançadas viram bons fascistas. Myles Horton

 

Vó era [é] uma negra sábia. Ela dizia que, numa disputa, quem parte para a agressão verbal ou física, demonstra não ter razão: “Como sua conversa é palavra fiada, faz uso da ofensa.” Um seu cliente de pai, Zózimo de Ítaca, ensinava que “a ofensa é uma forma de descredibilizar o outro, procurando preservar de si uma autoimagem superior, “imaculada”. Segundo Zózimo, a ofensa é uma espécie de avesso do argumentum ab auctoritate (argumento de autoridade), que apenas expressa a falta de argumentos do agressor. Eu tratava com vó da ofensa continuada e gratuita que eu e meus irmãos sofríamos na escola, não tinha a que ver com debates e discussões. Simplesmente, gratuitamente, éramos xingados. “Fio”, dizia vó, “aprenda a rir de si mesmo e sofrerás menos”. Um dia, cheguei com um par de dentes na mão, era de um metido a besta. Eu e meus irmãos levamos uma coça de pai: “se filho meu não puder ser doutor, não os quero assemelhado a feitor.”  Segundo pai, nós não iriamos resolver as coisas com violência: “É o que eles esperam de nós, que os respondamos com violência, que nos rebaixemos ao nível deles”, dizia. Zózimo corroborava: “Não se responde uma ofensa com outra ofensa ou agressão. Lançar mão da violência, mesmo em justa defesa, não produz reparação, dá razão ao agressor.”  Por não entender e não aceitar tal filosofia, me indispunha com pai. O meu lema era: “um murro bem dado, às vezes, é necessário.” “Quando é autodefesa, não é violência, é inteligência”, dizia um amigo, citando Malcolm X. “Inteligente, fio”, dizia vó, “é saber ri do agressor.” Eu não aprendi a rir, fui aprendendo, e estou neste processo, a ironia. A ofensa é a resposta do ignorante quando lhe falta argumento; a ironia é a atitude do sábio ante um argumento ignorante.

A ironia confronta o agressor com sua própria ignorância, revela uma existência miserável. Geralmente o agressor vive frustrado consigo mesmo. Se diante dos outros parece soberbo, presunçoso, vaidoso, em seu íntimo encontra um ser medíocre, carente de personalidade. O agressor “gratuito”, amarrado a mil preconceitos, que entorpecem seus sentidos, seus sentimentos, sua inteligência, acolhe com benevolência qualquer falsa informação que lhe mascare a frustração consigo mesmo.  Contra o agressor “gratuito”, o riso desdenhoso de vó, a rendição de pai e Zózimo, a arte da ironia, evitam que o agressor passe a ser o agredido, e revela sua miséria existencial.

“Mas quando o agressor se arrebanha, ele se torna perigoso. A força do número supre a debilidade individual” (José Ingenieros). O fascismo é o reduto em que o ser sem personalidade se sente seguro para ofender e agredir. Protegido no grupo, sua hostilidade à diversidade e à pluralidade se potencializa, e da ofensa se passa à defesa de banimento e mesmo extermínio dos “estrangeiros”. O fascismo se alimenta de preconceitos que desemboca no eugenismo, defesa de uma “purificação” da sociedade, constrangendo ou eliminando os elementos que supostamente a corrompe. Para agregar os seus e os manter em guarda prontos a assumirem o poder e tornar viável o seu mundo sombrio, os dirigentes fascistas alimentam o ser despersonalizado de falsas notícias e discursos de ódio. Sua propaganda difunde um nacionalismo obliquo sustentado em uma religiosidade nefasta. Contra tal situação o riso de vó, o “pacifismo” de pai e Zózimo, a ironia são ineficazes. A única arma capaz de combater o fascismo que agrega o ser despersonalizado é a ação política. Esta ação deve agregar todo aqueles que tenham profundo respeito pelas diferenças, pelas diversidades, pela pluralidade e se inconformam com a violência econômica, religiosa, política, cultural a que as minorias são submetidas, seja através do discurso de ódio, da agressão física, do extermínio, seja através de práticas dissimuladas de restrição de direitos.

Só o exercício político sistemático, persistente e coerente que aproxime todas as vozes contra a escalada fascista no mundo irá abrir possibilidades de um mundo menos ofensivo e mais acolhedor e inclusivo. Contra as hordas fascistas é preciso ações políticas de caráter cooperativo entre os numerosos grupos sociais e suas lutas distintas.

Eu já somei opinião com um amigo que costumava me citar Malcon X: “Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério”.  Mas tenho feito leituras acerca da não-violência como prática política. A não-violência é uma ação consciente e estratégica de defesa da dignidade da pessoa humana; é uma intervenção concreta na realidade sociopolítica, visando a transformação da sociedade e a superação das estruturas que a torna expropriadora das capacidades humanas de se humanizar. Tenho, então, compreendido que não é com punhos e porretes que vamos barrar os seres despersonalizados das hordas fascistas. As agressões que sofremos não são casos de polícia apenas, são, sobretudo de política. O fascismo é um movimento político agregador de boçais. Só pode ser combatido com a política. Esta política deve privilegiar a não-violência. A luta política de não-violência contra o fascismo não corresponde a posições apaziguadoras diante de agressões sofridas pelas minorias. Ela atua com e fortalece as manifestações coletivas de resistência contra instituições, regimes, empresas, coletividades que procuram legitimar o status quo do agressor e vitimar o agredido. Esta política se assenta, sobretudo, no esforço de transformação das estruturas de poder, empoderando indivíduos e coletividades na luta por seus direitos. Mobilizando-se contra as estruturas de poder, a não-violência permite que vejamos os adversários como pessoas, mesmo que alienadas e compondo as fileiras das forças que combatemos. A não-violência não combate pessoas, combate sistemas, organizações, formas de poder que se sustentam da degradação das relações humanas, potencializando conflitos que impossibilitam a coexistência solidaria, plural, diversa, isonômica  entre indivíduos e coletividades singulares. A não-violência acredita poder administrar  os conflitos inerentes às relações humanas de maneira pacífica, disciplinada e criativa, respeitando e exaltando os valores que dignificam a pessoa humana.

 “A não-violência é, paradoxalmente, a violência dos violentados” (Zózimo de Ítaca). Eu tenho me aproximado desta ideia. Como ação política, cogito ser  o único caminho de combate ao fascismo.  Não obstante: um soco bem dado na fuça de fascistóide de bairro é como surra de mãe. Reprimenda, não configura violência.

 

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