sexta-feira, dezembro 31, 2021

QUE VENHA 2022

 

Meu avô, homem do campo, costumava contar a história de um tipo que ficava olhando para a terra e contando o tanto de milho, feijão, mandioca que iria colher. A esposa, que acompanhava a contagem se alegrava com a futura fartura. De repente, ela deu com a realidade e lascou a pergunta: “Ozório, ocê tá aí colhendo esta fartura toda, mas quem tá plantando?” Lembro que certa feita eu desenhava uma casa em papel de pão. Meu pai, mestre de obras, guardava os papéis de pão para minha irmã nos ensinar – eu, meu irmão e ele próprio –, os rudimentos da matemática. Ele acompanhava meus traços. “Menino, no papel, uma casa até se começa pelo telhado, nos sonhos se pode começar pela sala ampla arejada ensolarada animada pela família e pelos amigos, no dia-a-dia, uma casa se constrói tijolo a tijolo, mas, antes, é preciso por fundamentos sólidos”, ensinou-me meu pai. Embora eu olhe para o dia de amanhã abrindo um novo ano e deseje que o ano que inicia seja um ano melhor, no fundo eu não vejo motivos para acreditar que será. As sementes que lançamos nos últimos quatro anos não nos permitem esperar boa colheita. Continuamos esperando que o bem social se dê da exploração do trabalho e da expropriação dos direitos trabalhistas, continuamos acreditando que podemos exaurir um pouco mais os recursos naturais, desmatar um pouco mais nossas florestas, restringir um tanto mais as necessidades básicas das camadas populares. Como esperar um ano melhor com o crescente número de pedintes, de moradores de rua, de crianças abandonando a escola para “se virar”? Que ano bom teremos com as redes de ódio se preparando para conquistar nossos corações em nossas redes sociais, difundindo fake news e negacionismos pela disputa do poder político? No papel, o mundo que desenho é uma bela ilustração destas que me apresenta um testemunha de Jeova. No dia-a-dia, andando pelas ruas de minha cidade, entrando no mercado, tomando o transporte público, acompanhando o noticiário, sinto que falta-nos fundamentos sólidos para sonhar um ano melhor. Mesmo assim, desejar não custa nada. Então, sabendo que pássaro só não apaga incêndio em gaiola, quiçá em floresta, e mesmo não sabendo por onde começar, eu desejo algo que não serve a nada: que em 2022 eu não desista de ser! É só um desejo, nada prometo.

terça-feira, dezembro 21, 2021

PEDIOFOBIA

 

Havíamos acabado de esculachar uns pretinhos cheios de “meus direitos pra cá”, “meus direito prá lá”, e o Saldanha foi logo dando a letra: “Ohh cidadão, teu direito é um fato isolado de bala perdida, estamos entendido?”, seguiu-se o “plaft” do safanão. Estávamos, então, ali na padoca da Florentino, degustando tradicional iguaria, quando recebemos um chamado de ocorrência em andamento. Era por volta das 22h e tratava-se de violência doméstica. Chinelamos ao endereço indicado, a mansão do honorífico pastor Abderaldo. Aqui era preciso seguir o manual e manter cortesia no trato e evitar esculacho e ou vexamento do pastor e familiares. À entrada da residência, em pijama, encontramos a Senhora Abderaldo armada de arma branca: uma faca de carne, gritando impropérios, fazendo ameaças. Com esmerada delicadeza e paciência, fomos contornando a situação. Aos poucos, a digníssima senhora amainou os ânimos e pôs-nos a par da situação: “Este desgraçado, filho da puta, disse-me que trabalharia até mais tarde no escritório, que tinha sermão para preparar, e precisava estudar as Escrituras. Eu querendo, fazer um agrado, preparei um drink e levei para ele. Qual não foi minha surpresa: o desgraçado estava fazendo sexo com um boneco inflável. Não, vocês não ouviram errado não, o desgraçado com um boneco inflável. Fosse, ao menos, a Juelmira, nossa colaboradora, mas um boneco? Fosse a Taizinha, minha filha, mas um boneco?. ” Nisto a digníssima senhora inflamou-se novamente de ira e lançando o impropério: “seu desgraçado, destruidor de lares!”, avançou contra o pacífico boneco, retalhando-o todo, recitando trechos da Escritura. A mesma foi conduzida à 14º DP e atuada por pediofobia. Lavrado o boletim de ocorrência, chinelamos de volta à padoca da Florentino, para mais uma rodada de coxinhas.  

sexta-feira, dezembro 17, 2021

MINHA INFÂNCIA FOI UM PARAÍSO

 

As crianças hoje não sabem brincar, vivem conectadas a celulares. Eu não, eu tive uma infância rica, criativa. Brincava a valer. Eu subia em árvores, tomava banho em rio, nadava em lagoa, armava arapuca, corria descalço. Minha infância era divertida. Só dona Marta e sua régua de alfaiate macula a memória de minha infância. Dona Marta não perdoava eu não decolar a tabuada, não aceitava eu não saber conjugar o verbo vir na terceira pessoa do singular no pretérito. Dona Marta descia-me a régua por eu trocar o “r” por “l”. Ainda acordo com a profecia de dona Marta ressoando em minha cabeça: “Não serás ninguém! Não serás ninguém!” Não obstante dona Marta, brinquei a valer: esconde- esconde, pega- pega, mãe da mula, mãe da rua, pique, pião, carrinho de rolimã. Tornei-me cidadão de bem. Em minha infância eu não ficava enfurnado na escola em período integral, meus pais não inventavam ballet, judô, esgrima, grego, pintura a dedo, coisa e tal, para ocupar o meu tempo, tirar-me da rua.  Feita a lição de casa: cópias e mais cópias de livros para folhas de almaço, minhas tardes eram livres e eu ganhava as ruas em estripulias. Minha infância era um paraíso. Brincando, não dava conta que o Pedro Henrique vivia com braços e pernas enfaixadas. Não, ele não tinha ossos frágeis, mas pai alcoólatra e violento. Minha infância era um paraíso, não percebia que as manchas no pescoço de Maria Rita não eram de alergia, mas chupões do tio abusivo. Eu me esbaldava de brincar, o Jorge Luiz não. Não que não quisesse, que não gostasse. Ele tinha que levar dinheiro para casa, empurrando carrinho de sorvete. E o esquizito do Tonzé, qual era mesmo o nome do Tonzé Lelé? Eu não dava conta que ele não era esquizito, era autista. Eu nadei muito em rio e lagoas, mas, na boa, não permito a meus filhos tal aventura, esfolei muitas vezes o dedão chutando pedra no lugar da bola, meus filhos nem dentro de casa ficam descalços. As crianças de hoje não sabem brincar! É sério isso? Tiramos-lhe as árvores, tiramos-lhes os rios, tiramos-lhes as ruas para congestioná-las de carros e enche-las de lombadas, tiramos-lhes o tempo, enfurnando-as em escolas sem atrativo algum e em cursos e mais cursos apenas para lhes ocupar o tempo. Crianças não nasceram com celulares, celulares não brotam nelas.  Não obstante, elas brincam, brincam com o que tem, com aquilo que lhes oferecemos. É da criança brincar. Mas não lhes cobremos subir em árvores, construímos arranha-céus em seus lugares;  não exijamos  brincar de mãe da rua, as ruas não mais seguras são; não lhes permitamos das águas de nossos rios saírem outras, pois não ousamos nelas nos banhar. Minha infância foi um paraíso, mas eu não consigo olhar para minha infância no paraíso sem ser visitado pela sombra de dona Marta, sua régua de alfaiate, seu vaticínio me assombrando: “Não serás ninguém!” Eu não consigo olhar para minha infância no paraíso sem me recordar das fraturas do Pedro Henrique, dos chupões no pescoço de Maria Rita, da vida de labuta precoce do Jorge Luiz, do como maltratávamos o Tonzé. Eu brinquei a valer, mas muitos dos meus coetâneos viveram o inferno. E, hoje, parece-me, se o modo de brincar mudou, o inferno para muitas crianças ainda é o mesmo.   No Brasil de hoje, a infância de muitas crianças é de abandono e fome, mesmo conectadas a celulares. E é isto o que me preocupa, não como elas brincam.

DESESPERAÇÃO

 


Como nuvens carregadas

Cobrindo o céu de incertezas

Minha estupidez escondeu-me teu sorriso

Naufrago à deriva

Procuro o brilho de teus olhos –

Faróis de minhas noites sombrias –  

Que apenas me cospem desencanto

E, merecidamente, me condenam.

Palavras são facas que ferem

Ditas com raiva

Delas fiz o veneno que nos separa

E me mata

Tênue os fios que nos uniam

Os rompi dando asas à teimosia de me achar em razão

Quando era apenas arrogância e decepção.

Porto em que me encontrava e me reestabelecia

Fechaste-me tua acolhida hospitaleira e festiva

Já não encontro mais o calor de teu colo

Teus afagos nas noites que me angustiam

O amor não pode tudo, não se sujeita à estupidez

Das palavras que desencantam

Que querem fazer valer, ao tom mais alto,

Nossas mentiras.

O amor tem sua kryptonita, o orgulho

Que o expulsa do coração, consome-nos a razão

E nos impede pedir perdão

E neste mar revolto vou me afogando

No orgulho que me empurra ao abismo

Da desesperação.

  

quinta-feira, dezembro 16, 2021

NO TEMPO EM QUE TUDO ERA MELHOR

  

Firmeza total, mais um ano se passando

Graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô?

Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso

Sem miséria, e é nóis

Vamos brindar o dia de hoje

Que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka

(RACIONAIS MC’S)

 

Não obstante o esgoto correndo a céu aberto, as ruas de terra lamacentas, as casas, quando de alvenaria, construídas sem qualquer planta e sem acabamento, as crianças maltrapilhas, descalças, subnutridas, os homens sonolentos às portas de botecos, o  clima das festas de ano se aproximando se assistia nas conversas de comadres e nos botecos. As rezadeiras desfilavam pelas vielas da quebrada, de barraco em barraco, com seus padenossos e avemarias, visitando presépios, distribuindo doces para a criançada.  O time da comunidade promovia campanha para arrecadar e distribuir brinquedos, anunciava a abertura de uma rifa na rivalidade de casados e solteiros. À noite, quando se acendiam as pequeninas luzes de natal, a favela, vista de longe, das coberturas, enchiam os olhos: “era como cartão postal”, sugeria uma madama. “Nem parece um antro de vagabundos e parasitas”, comentava o marido, abrindo um Stag´s Leap: “Paris ou Rhodes?”, pergunta à madama.  O clima era de festa, a chuva dera uma trégua, as luzes piscantes de natal iluminavam as vielas. O grupo, em algazarra, voltava da escola. Combinavam um churrasco de encerramento do ano letivo, quem levava a carne, quem a cerveja, o amigo secreto, quem falava com a diretora... Ainda tinha a semana de provas, depois: “Era só alegria!” Entrando num beco, para tomar a Ladeira do Sacrifício, deram com a polícia. “Seis jovens morrem em confronto com a polícia”, deu no plantão, interrompendo a partida de futebol.  “Estamos colhendo informações, mas posso afirmar ser um caso isolado. Já tomamos todas as providências. Exigi apuração imediata. É uma fatalidade”, respondia o Governador no jornal da noite, arrotando o Stag´s Leap. Aos repórteres disse o comandante que “os polícias, surpreendidos, sentiram-se ameaçados, abriram fogo”. A cena do crime foi adulterada. A imprensa fez o seu papel de levantar suspeitas contra os jovens assassinados, relembrou históricos de violência na comunidade, a passagem de um pela Fundação Casa, o envolvimento do pai de outro com a criminalidade. Minou-se a indignação. No entanto, tudo apurado, a única arma encontrada foi uma inscrição para a FUVESTE, na mochila de um dos assassinados. Algo lido num pé de página. Era época de natal.  Quando os primeiros fogos pipocaram no céu, quatro mães lamentavam não ter mais o que celebrar ao ano que nascia. Eram tempos melhores aqueles.

sexta-feira, dezembro 10, 2021

DESEJAMOS UM BOM DIA

 

“Hoje eu tomo coragem”, ia pensando no busão, no trânsito lento da Marginal: “vou convidá-lo para sair.”  Consulta o relógio: “Se continua assim, chego atrasado. Logo hoje, com um tanto de relatório para entregar!” “Ele fica jogando umas indiretas, não toma coragem. Vou investir!” Acompanha, pelo celular, as notícias que reporta um acidente grave pouco antes de seu destino. “Vou convidá-lo para o show da Glória Groove.” Envia um zap, informando o possível atraso. “Depois, se rolar rolou. Se não rolar, é amizade que continua , ou não.” Já vislumbra o romance, as trocas de carícias, o estender da noite num motel. Sente um brivido, suspira, transpira, se abana. O teatro atrai olhares. Ruboriza de vergonha...   Não encontra o cartão no ponto, se dirige ao RH. “Senhor Jhonatham, agradecemos tua contribuição, mas já não contamos mais com tua colaboração.”  “Eu poderia me despedir da equipe, dar um alô pro Maurício?” “Infelizmente, senhor Jhonatham, a política da empresa não permite. Tenha a gentileza, queira esperar naquela sala: um colaborador trará teus pertences. Desejamos um bom dia!”

quinta-feira, dezembro 09, 2021

UM OUTRO DIA

 

Era para se chamar General. General Lopes. O pai tivera a ideia num boteco, aguardando seu nascimento.  “General não podia”, informou o funcionário do cartório. Ficou João, para descontentamento do pai. Abriu a bojudinha de corote, já para abaixo da metade, quase a esvazia em uma só golada. Limpa os beiços inchados, fruto da confusão em que se metera. Arrumou seu leito sob a marquise do banco. Fora por três anos consecutivos o funcionário do ano. Veio a crise, o banco precisou passar por reformulação. Com o desemprego, a decisão de empreender, o hábito de investir em pirâmides, foi se arruinando. Mudou da região central, para o subúrbio. Veio a separação. Foi morar no morro, num cômodo de madeira. Voltou para o centro numa invasão. Agora está alojado ali, na marquise do banco em que trabalhara por duas décadas. Por três anos seguidos fora o funcionário do ano. Recebeu muitos tapinhas nas costas e nenhuma promoção. Na primeira oportunidade: “já não atendia às novas exigências do mercado”. Dia desses, viu um dos filhos. Eram três, dois rapazes, uma moça. Este passou por ele, sem o reconhecer. “Pudera, com o rosto inchado, cheio de cicatrizes, a barba toda desgrenhada”, não condenava o filho. Sabia-se “miserável”. Se tivesse se chamado General, como o pai quisera, talvez a sorte fosse outra. “Quem sabe ainda teria o sorriso, o colo, os lábios de Mariuza, o carinho e o respeito dos filhos, uma cama confortável...” Tomou outra golada de corote. Enrolou-se em seu carcomido cobertor, recostou a cabeça num embolado de papelões. Desejou sonhar um outro mundo e não ter que acordar um outro dia.  

terça-feira, dezembro 07, 2021

A QUE SERVE FALAR EM LÍNGUAS?

 

Para Tomás Amorim Isabel

Ἐὰν ταῖς γλώσσαις τῶν ἀνθρώπων λαλῶ καὶ τῶν ἀγγέλων ἀγάπην δὲ μὴ ἔχω γέγονα χαλκὸς ἠχῶν ἢ κύμβαλον ἀλαλάζον. (Προς Κορινθιοuς A’ 13,1)
A epígrafe que abre este texto não é uma língua estranha, é grego. Mas se você não tem intimidade com o grego, ela não faz sentido algum, não te diz nada, mesmo que seja um versículo bíblico central do ensinamento paulino. Quem sabe numa outra língua estranha você a compreenda, tentemos: “Pat ja es runātu valodās, cilvēku un eņģeļu valodās, ja man nebūtu žēlsirdības, es būtu kā bronza, kas skan kā šķiņķojošs cimbāls”. Não, né! Letão – isto segundo um amigo – não é mesmo uma língua de fácil entendimento para nós.
Paulo Apostolo reconheceu o dom de línguas, mas observou que: “aquele que profetiza é maior do que aquele que fala em línguas’’. (1 Cor 14, 5). Segundo Paulo: ‘’se oro em línguas, o meu espírito está em oração, mas a minha inteligência nenhum fruto colhe” (1Cor 14, 14). Para mim, a oração em línguas é de uma relação de intimidade com Deus, onde cabe um ensinamento de Cristo: “E quando orardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de fazer oração pondo-se em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo; e o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará.” (Mat, 6, 5-6).
No segredo de teu quarto até mesmo o silêncio é dom do Espírito, pois, segundo um profeta legítimo, “Deus ouve-te em teu silêncio e fala-te ao coração.” Este profeta ensina que “Deus é sutil, não espalhafatoso. Ele não está no troar dos relâmpagos, mas no sibilar dos ventos, no murmurar das águas. Mesmo quando faz milagres, Deus não dá espetáculo. Ele escapa a aplausos. Daí o Cristo ter ensinado: “não saiba tua mão esquerda o que faz a direita”” (Altamirando Boaventura). Este mesmo profeta observa: “O Espírito Santo sopra onde quer, mas não frequenta cortes e palácios, é do Espírito circular entre os necessitados, o clamor de Deus não está na boca de Reis e autoridades, está no maltrapilho, no esfomeado”
Assim, certas manifestações, ainda mais quando filmadas e viralizadas nos grupos de zap e nas redes sociais, se não é hipocrisia, é instrumentalização da religiosidade popular. E reconhecer isto não caracteriza perseguição aos evangélicos, apenas pede-lhes para estarem atentos: entre os cristãos, de todas as matizes, há lobos em pele de cordeiro. É preciso reconhecer, como o Cristo, que há entre os cristãos gente hipócrita, que faz da oração instrumento de autopromoção e de manipulação política. Suas falas incompreensíveis é puro ilusionismo e não manifestação do Espírito.
Seguindo o Apostolo Paulo, “numa assembleia, prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência, para instruir também os outros, a dizer mil palavras em línguas (1Cor 14, 19). E como ele tinha mais apreço à profecia que ao dom de línguas, termino com nosso profeta, Altamarindo Boaventura: ‘’Não espere uma boa política de um governo que mistura interesses privados e terrenos à religiosidade de seu povo. Seu governo será um desastre e arrastará seu povo à fome, ao desemprego, à morte e será motivo de risos entre as nações.
Para quem chegou até aqui, a tradução da epígrafe que abre este texto é a seguinte: “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse caridade, seria como bronze que soa como címbalo que tine (1 Cor 13, 1 - Bíblia de Jerusalém)”. E eu não vejo caridade alguma na familícia Bolsonaro.

quinta-feira, dezembro 02, 2021

[...] Tudo o que falamos de qualquer coisa, falamos de nós mesmos. Tudo que falamos da política, da sociedade, das religiões, de Deus, do amor, do outro que nem conhecemos, de tudo, é de nós que falamos. Se em qualquer coisa vemos cinismo, hipocrisia, interesses não revelados, somos nós se pronunciando no que vemos. O mundo, tudo o que há nele, nós mesmos, é produto nosso, é o que somos. [...]

 

O QUE FAZES COM TUA PALAVRA?

 

É muita treta, mano, e o corre não para, dia sim, o outro também, se vende o almoço por uma janta minguada.

Sem fogo a água não esquenta, sem consciência, mano, os grilhões não arrebentam, faz o seu corre, mas não abandone o conhecimento.

O bagulho é louco, a pegada é zika, é muita treta, o verbo é pouco pra quem tem poucas ideias.

Sem sal a comida é insossa, muito salgada é intragável. 

Quem cala não consente, suporta. 

Silêncio de mais sufoca. Mas quem muito fala não ajuda, perturba.

É preciso o tempero justo, nem ativismo, nem só reflexão. Pensar na ação, agir com o pensamento.

Quem pensa em dizer o que pensa, precisa pensar se deve dizer o que pensa para não falar bobagem e se desdizer com outras bobagens.

Dizer o que bem entende é demonstração de nada entender. Quem bem entende, entende que nem tudo se diz.

Na quebrada, o verbo é curto, mas certo! Ele não faz curva, o papo é reto, é atitude.

Ideia em movimento, palavra é faca. E a faca, mano, divide o pão, mas também mata.

Não diga apenas o que pensa, pensa no que diz. Se divide, se exclui, se ofende, se não acrescenta: engole o pensamento.

Ser livre não é dizer o que penso, eu penso muita bobagem. Ser livre é me tornar responsável pelas escolhas que faço.

O mundo não gira em torno do que sabemos. O que move o mundo é o que, podendo, ignoramos saber.

Se a temperatura não baixa, a água não vira gelo, sem estudo, sem conhecimento, o corre, mano, não muda, estarás sempre no vermelho. Sem luta não se sai do perrengue.

Os grilhões se quebram com consciência. Mas não é o que sei que muda o mundo, são minhas atitudes, o compromisso, a coerência com os com quem luto.

É muita treta, o bagulho é louco, a vida tá zika, o almoço se foi, a janta falta. Faz teu corre mano, mas não abandone os estudos. Talento conta, mas atitude, disciplina, é tudo. A palavra é faca, divide o pão e mata.

Mano, o que fazes com tua palavra? Ela acrescenta ou espalha?


sábado, novembro 27, 2021

CARAMINHOLAS

 

Há alguns anos foi inaugurado em nossa cidade um caraminholal.  Um lugar amplo, bonito, acolhedor, mas com pouco uso. Faltava clareza de sua utilidade. Então, formou-se uma comissão e esta deu-se o papel de estabelecer os regimentos de uso do equipamento – vou usar este termo porque caraminholal é usual cá entre nós. E, dia desses, eis que me dou com um manifesto de convocação de audiência pública para apreciação da minuta do regulamento do equipamento. Eu cá com minhas caraminholas achei interessante e me dei de ir participar da dita audiência pública. A audiência foi assaz interessante, os presentes eram concordes quanto à importância do equipamento: “contribuía com a pujança turística da cidade”. Eram concordes também quanto aos usuários: “era um equipamento de todos os munícipes e para todos os munícipes, sem distinção alguma.” Um impasse, no entanto se estabeleceu:  “Era do equipamento a função de produzir caraminholas”, algo em que também não havia discordância, mas o entendimento sobre o que vinha a ser caraminholas dividiu a assembleia. Uns defendiam que caraminholas é uma espécie de pensamento em que vamos nos perdendo ou nos deixando perder, outros diziam que caraminholas eram também certas fantasias, certas histórias enganosas. Aqui a questão: “que tipo de caraminholas se queria estabelecer como própria do equipamento?” Uns defendiam que apenas os pensamentos em que nos perdemos deveriam ser permitidos.   Outros defendiam que o equipamento comportava também toda espécie de história enganosa, pois também em história enganosas nos perdemos. Embora dividida a assembleia, não houve acaloramento das discussões e se jogou a questão para instâncias superiores esclarecer. O que me chamou a atenção foi um tipo que chegou quase nos finalmentes, tomou da palavra, disse de sua importância na cidade, do respeito que merecia, tomou lá sua posição, e como chegou saiu, sem acompanhar o que se discutiu e se discutia na audiência. Fez-me lembrar algo que vó me dizia: “Fio quem não se dispõe a ouvir, por mais que tenha a falar, não é ouvido, é falado.” Deste “falado”, vó me explicou num outro momento. “Fio, ser muito falado não significa ser levado a sério, ou respeitado”. Estou me perdendo nesta caraminhola. Vó era artista em fazer-me perder em pensamentos.

sexta-feira, novembro 26, 2021

MEUS VERSOS

 

Eu queria cantar outros versos,

Que não lembrasse o Bandeira

E seu homem bicho

E o pretinho,

daquela canção dos Racionais.

Meus versos

Não os queria tomados de fome,

Subemprego gumertizado

De mulheres culpabilizadas

Da violência sofrida,

Por gente canalha,

Passando-se por crente

Em meus versos queria

Os sonhos de meus filhos

O beijo da companheira

A conversa com os amigos

Numa roda de cervejas

O brilho nos olhos de quem

Está aprendendo a se lançar na vida

Dos que se aventuram

Nos meandros da Academia

Meus versos,

de esperança e alegria, os queria

Mas o sangue preto,

De chacinas, ainda escorre

Enquanto a meninada se vira no corre

E a mãe, por um pacote de miojo,

É jogada numa cela fria

E, por um prato de comida,

A mana se vende na esquina

Eu queria cantar outros versos

Mas o juiz ladrão se postura presidente

Com o apoio dos que o ajudaram eleger

A familícia.

Era para ser de esperança e alegria

Estes meus versos de suicida

Esperando sua bala perdida.

 

 

sábado, novembro 20, 2021

NEGRISMO E NEGRITUDE

 A Consciência Negra é uma mentalidade e um modo de vida, o apelo mais que positivo já emanou do mundo dos negros. (Steve BIKO)

 

O ser negro não existe, não deveria existir. O ser negro é um, uma, que não conta, na relação com o outro; é um algo, uma coisa, um objeto de uso na relação com o outro. Ser negro é não ser reconhecido pessoa. O ser negro não se nasce. O ser negro se é tornado nas relações de expropriação da dignidade e humanidade do outro.

Ao ato de reduzir pessoas a coisa, a moeda, a mercadoria, chamamos negrismo. Em sua economia impera relações de dominação, submissão, subalternização, do outro, mediante a concentração de recursos naturais, técnicos, culturais, econômicos, em que pessoas são reduzidas a força de produção de tais bens e vetados de os usufruírem, pois acumulados e concentrados entre poucos. O negrismo se dá desde a aurora do humano. Se hoje, “raça”, “racismo”, assume os contornos próprios do negrismo, o negrismo sempre sombreou as relações políticas, especialmente quando se trata de justificar guerras de conquista e dominação de povos estrangeiros: bárbaros, selvagens, ímpios...

No Brasil, devido sua história colonial, escravista, patriarcalista, patrimonialista, elitista, o negrismo é percebido como conflito de raças. A concentração de renda e bens nas mãos de poucos, a carência indigente de milhares, demarcam os mandos e desmandos de uns e a subalternização dos demais. E quanto  mais escura a pele da pessoa, mais ela está sujeita a ser negro, a ser tornada negro. No entanto, mulheres e homens de peles claras não escapam ao negrismo. É característica do negrismo o desemprego, o subemprego, o emprego precarizado, a carência alimentar, a ausência de recursos e equipamentos de Estado, a não ser na intervenção truculenta e, por vezes, homicida das polícias. Onde impera o negrismo, a cor da pele pouco importa, a não ser para manter as pessoas divididas. No Brasil contemporâneo, brancos e pretos são descartáveis. A oposição de raças só se mantém por propósitos políticos. Manter a desconfiança, a suspeita, entre os que não contam, mantém o controle da economia, a concentração dos recursos naturais, dos bens materiais e a fruição dos bens culturais entre poucos. Entre nós, o racismo não é apenas estrutural, ele se mantém como estratégia do negrismo, do descarte de pessoas das decisões políticas e de acesso e fruição aos bens materiais e culturais produzidos.

Contra o negrismo, dá-se a Negritude. Negritude é oposição ao negrismo. É um ato de consciência, de resistência, de luta, de proposição de um outro modelo de co-vivência entre as pessoas: comunitária, solidaria, inclusiva, de partilha. A consciência negra assume que nossa sociedade tende a despersonalizar, a desumanizar, a coisificar o outro em nome do “mercado”, fundado numa economia predatória e políticas que não visam apenas o desmonte do Estado, mas, sobretudo, a manutenção do mandonismo, da subalternização, da despolitização das camadas populares, mantendo-as privadas dos bens econômicos, materiais e culturais que elas produzem, dividindo-as por polêmicas e conflitos genéricos e alienantes.

Instrumento da negritude, a consciência negra estende seu olhar e percebe que não apenas as pretas e os pretos são desqualificados, destratados, tornados inumanos. O negrismo não é uma questão de raça ou de cor de pele, é de quem consome os bens materiais e cultuais produzidos, e de quem, deles, recebe apenas migalhas ou nada recebe.

Se a negretização, o tornar menos as pessoas, se dá numa relação de desigualdade em que a pessoa é precarizada ao ponto de submeter-se às imposições dos operadores do “mercado” e aos interesses dos “senhores” do mundo, essa forma de evadir a pessoa de sua humanidade plena encontra na Negritude seu contraponto e resistência.

As mulheres pretas, os homens pretos, ainda são os que mais sentem na pele os efeitos do ser tornado menos, na sociedade de consumo, que lhes consome também a vida pouco usufruída. Mas não são mais apenas os mais pretos, as mais pretas que sofrem o ser tornado um que não conta. Todo brasileiro, toda brasileira em condições de precariedade e carência do necessário à própria existência é negro, é negra; a sombra do negrismo as atinge.

O mundo dos negros é o mundo dos que não contam. Assumir tal realidade, se insurgir contra ela, é Negritude. Não basta saber-se negro, é preciso combater o negrismo, os mecanismos e as estruturas de desumanização. É este o papel da Consciência Negra.

domingo, outubro 31, 2021

PAREMOS DE COMER MANGA

 “Eu estou te dizendo: os alienígenas já estão entre nós. Eles nos confundem, nos dividem, para nos dominar. A polarização em que vivemos, é estratégia de dominação alienígena.” (Antônio Carlos, motorista de taxi)

 

O ano é 1968, o mês, maio, o dia, 19, a hora, 15, a localidade, a sui generis Bananópolis. Na data, hora e local especificado, um fato extraordinário aconteceu, sem que os habitantes dessem conta até o dia de hoje: uma invasão alienígena. Era, como dito, 15h, do dia 19 de maio do ano de 1968, um domingo chuvoso e frio. Na madrugada daquele dia nasceu um sujeito torto e destinado a ser breve. Por volta das 15 h, as preocupações estavam todas voltadas para ele que desatara a chorar, não era choro de fome, havia sugado a mãe minutos antes. O fato é que seu berreiro concentrava os cuidados das mulheres, os homens acompanhavam a radio na expectativa de Palmeiras e Santos, e a invasão alienígena passou desapercebida. Não era mesmo dos invasores chamar atenção. Na verdade não poderiam, minúsculo que eram. Alguém poderia dizer tratar-se de uma pequena semente de dente de leão que espalhamos ao ar com um sopro. De fato, a espaçonave alienígena era com uma microscópica haste presa a um tufo de 1000 filamentos. Assim: “Cala a boca Rex!”, foi a única coisa que se ouviu vindo do casebre, além do choro lancinante do recém-nascido.  Tranquilamente instalados, os alienígenas puderam exploraram o entorno. Analisaram as couves e os tomates na horta, uma joaninha e uma vespa, uma possa d’água próximo da mangueira, Rex, que focinhava o entorno da mangueira. Depois de coletar dados e processar análises criteriosas, os alienígenas tomaram uma decisão, instalaram-se na mangueira. Perfuraram seu tronco, acessaram um veio de seiva e ali se instalaram. Dalí, esses alienígenas tem se espalhado por Bananópolis. Através da seiva da mangueira eles atingem os frutos. Quando um Bananópelense consome o fruto, consome junto comunidades de alienígenas, que passam a colonizar seu cérebro.  Ontem, durante um debate, um bananopolense se saiu com essa: “Opinião não mata, o que mata são ações, não opinião!”. Alguém tentou lhe explicar que a palavra também é ato, e que opiniões motivam ações, mas o tipo era impedernido: “Não há crime em defender algo que seja crime, sendo opinião!” Desconsolado, o seu debatedor se saiu com esta: “Mano, para de tomar suco de manga, tá te fazendo passar vergonha! Você não percebe o prejuízo que te causa tuas opiniões estapafúrdias, quando não criminosas. O que você coloca no seu suco de manga?” Foi aí que atentei-me: nós estamos sendo colonizado. Nosso abobamento é dominação alienígena. Assim, faço um alerta: paremos de comer manga!

sexta-feira, outubro 29, 2021

EDILEUZA

 

O domingo começa seu vesperal, os últimos turistas preparavam o retorno à enfadonha rotina dos dias cinzas da capital, recolhendo guarda-sóis, isopores, pranchas. Gibi, HQ e Almanaque, bolavam um ultimo naco de mariguana e acompanhavam, pela radio de pilha, Corinthians e Flamengo. Gibi falava de seus encantos por Edileuza, os amigos faziam gracejo: “É muito peixe, pra pouca barca, parceiro!”, ria, um riso bolado, HQ. “Edileuza, compadre, é sereia de arrastar pescador experiente pro mar!”, observava Almanaque: “Num é pra pescador de maré baixa, como nóis, não!”, completou.  “Pescador de maré baixa, parceiro, é só se for ocê. Eu, por Edileuza, varo este marzão, esgoto suas águas”. “Edileuza não se deixa escolher, parça. Ela é quem escolhe!”, retomou, com gravidade bolada, HQ. “O escolhido sente o presente, parça! Eu me sei presenteado!” disse Gibi, também bolado. O jogo ia dois a um para o Corinthians, o céu vestia-se de lilás e dourado para seu encontro com as águas azuladas e mansas do mar. A subida da serra se congestiona. Zenon, aos 35 do segundo tempo, assinalava o terceiro gol alvinegro, “um tiraço de fora da área”, o grito de gol de Osmar Santos preenchia a já quase deserta praia. Os amigos celebram o tento. Quando deram conta, Edileuza, seios nus, dança entre as ondas, mergulha, emerge senhora de si, mergulha novamente, balança a cauda reluzente, desaparece entre as águas. O jogo termina 4 a 1 para o Corinthians. Agora na radio Ritchie domina com seu sotaque estrangeiro. Gibi, tomado pela maresia, segue a canção: “Você vem não sei de onde, eu sei, vem me amar...” e suspira: “Um dia eu serie em ti, mar adentro, minha sereia!” No céu, a lua domina rodeada de estrelas.

domingo, outubro 24, 2021

DEUSA DE UM INSTANTE

 


Saio da padoca do Galego e caminho para o ponto do ônibus, aquele da praça Garibaldi. Dele acompanho o movimento matutino. Crianças uniformizadas, acompanhadas de suas mães, avós, babas, atravessam, ainda sonolentas, a praça rumo à escola que a contorna. Também, já em algazarras, adolescentes e jovens atravessam ruas e a praça, sem muita atenção, em todos os sentidos. Uns tomam a direção do Politécnico, outros do Cientifico, outros do Professor Coutinho.  Trabalhadores também circulam a praça de um lado a outro. Um ou outro se firma para um café, um cigarro, um drops, ou tudo isso e outra coisa qualquer, nas banquinhas improvisadas, ou nas barraquinhas em seu entorno. A maioria se dirige para a estação. Pela madrugada e até certa hora da manhã, o ponto é mais de desembarque que de embarque. Ônibus vindos das localidades mais distantes despejam a turba amarrotada e descomposta, que, já alquebradas, descem e tomam, quase em bloco, o mesmo destino: a estação. Do ponto é, então, possível acompanhar o cortejo cotidiano de crianças, jovens, adultos seguindo autômatos o que lhes parece ser destino. Atraído pelos badalos do sino, avisando da missa a começar, olho para a igreja, suas escadarias, as imponentes torres, a imagem de Nossa Senhora da Piedade, figurando a faixada. Não há almas em sua direção. Retorno ao vai e vem das pessoas, tomando a praça, cruzando-as em todas as direções. De tanta e variada gente, passa muita gente de atrair o olhar: uma cor de paletó ou calça diferente, um salto alto mais alto que os demais, um cabelo melhor ou menos arrumado, qualquer coisa: tem sempre, na turba, um tipo que se destaca e que o olhar acompanha. Era assim a garota que vinha caminhando da Igreja, para o centro da praça. Descia as escadarias como que desfilando. Não era da missa, por certo que vinha, pois vinha num molejo de passista abrindo ala. De chinelinha de dedo, bermuda legging preta, destas que destacam bem o playground, um top cavado, verde claro, realçando os bustos arredondados, os cabelos molhados, os lábios abatonados. Parecia não ir a lugar nenhum, apenas se desfilava. E atravessava, indiferente aos olhares e suspiros dos homens e de algumas mulheres, a praça. Teve um que tropeçou. Teve outro que levou um safanão da companheira. Um que armava a barraca, colocou a lona do avesso, outro deixou a mercadoria esparramar-se toda. Teve uma que lhe soltou: “que bife!”. Indiferente, ela vinha em direção ao ponto e preenchia meus olhos, que já se alojavam entre os catetos e a hipotenusa, evidenciados por sua bermuda. Ao meu lado, uma, toda executiva, tomou do celular, teclou um número lá: “Olha, eu vou ter que ir ao médico! Amanhã levo o atestado!” Levantou-se e foi em direção à minha miragem: “primeiro vamos ao remédio!”, disse a mim, como em confidência, num sorriso sacana. E insensível ao arrebatar de meus olhos, foi abordar a deusa daquele instante, furtando-a de mim. Quando o ônibus chegou, eu era largado em fantasias de como estariam se amando.  

quarta-feira, outubro 20, 2021

ESTA INÚTIL ESPERANÇA É A NOSSA ÚNICA FORÇA

 

Embora o capitalismo tenha a propriedade de tudo transformar em mercadoria, que, uma vez consumida, torna-se descartável: e a vida tornou-se descartável. Embora o capitalismo deteriore as relações de trabalho em mando e obediência, em ganho de uns e perdas para tantos: tão poucos com tudo, tanto e tantos sem nada. E embora o acúmulo e não a partilha seja a mola do capitalismo e seu produto a indiferença, a mesquinhez, a pior das misérias humanas: a ganância. Não obstante a miséria humana, a terra arrasada que o capitalismo desenha em seu avanço, há algo que lhe escapa: o humano é esperança. É contra a esperança que o capitalismo avança. E só a esperança o ameaça. Contra o capitalismo não nos faltam discursos. Contra o capitalismo a esperança é a ação que nos falta. Sem esperança não há mudança, há apenas resignação e cantinelas amarguradas contra o que compete a nós mudarmos. Esta inútil esperança, sobre a qual o capitalismo avança, em sua náusea sufocante, é a nossa única força.

terça-feira, outubro 19, 2021

Discurso de Classe

 

Que a classe trabalhadora isto
Que a classe trabalhadora aquilo
Mas de qual classe trabalhadora
Eles falam?
Quando vão se dar conta que
O trabalho está automatizado
Que o robô substitui o operário
A inteligência artificial a atendente
Os aplicativos os vendedores
Quando vão se dar conta que o capital
Já não conta
Com o trabalho humano
E nem com a produção de produtos de consumo
Não existe mais classe
Só empreendedores
Naquilo em que o capital
Não tem mais interesse.

domingo, outubro 17, 2021

DIA DE MISSA

 

Era domingo tardinha. Os tios acompanhavam Corinthians e Palmeiras, jogando carta. O primo e alguns amigos ouviam vitrola e bolavam um baseado. As primas se arrumavam para acompanhar vó e tia à missa. Maria Rita escolhia o vestido e perguntava à tia o seu juízo: “Este florido, com o arranjo de cabelo combinará bem.” Clarinha corria para o banheiro. Desceu o vestido, tolheu o sutiã, tirou a calcinha... A água corria seu corpo ensaboado: “sinto por dentro uma força, vibrando uma luz. A energia que emana de todo prazer.” “Onde anda Tunico?”, era vó. “Tuniiico, Tuniiico, diacho de menino, onde você se meteu?” Eu era, entre frestas, perdido nos segredos de Clarinha. Se vó me pegasse era castigo certo. Escorreguei gatuno para o quintal. “Meu bem você me dá agua na boca...”, o primo e os amigos, bolando, curtiam vitrola. O tio gritava: Gooool. “Tunico, vem se aprontar, menino!”. Vó me chamava para irmos à missa.

quinta-feira, outubro 14, 2021

NAÇÕES NÃO SE PRODUZEM COM ARMAS

 

Em um dia, o ministro da economia da Republiqueta de Bananas chega a ganhar 14mil dólares em especulação financeira. Neste mesmo período, milhares de pessoas passam o dia sem uma refeição sequer. Não é por disciplina religiosa ou estética que estas pessoas deixam de comer, é por privação econômica. A fome dessas pessoas não é dieta, é descaso político. O ministro da economia, ganhando seus 14mil dólares, diz que tudo está bem e o Assombroso que governa a republiqueta deita uma solução: “mais bala, menos feijão.” Acredita o inominável, o execrável, o abominável, que armas garantem o alimento, o gás, a água, a luz, o emprego. E cita do Evangelho o que lhe convém. Esquece o Genocida o que diz o profeta: “Eis o que diz o Senhor: Praticai o direito e a justiça, e livrai o oprimido das mãos do opressor. Não deixeis o estrangeiro sofrer vexames e violência, nem o órfão e a viúva, nem derrameis neste lugar sangue inocente” (Jeremias, 22,3), ou “Vós que engolis o pobre, e fazeis perecer os humildes da terra... converterei vossas festas em luto, e vossos cânticos em elegias fúnebres...” (Amós 5, 7-15). Mas se o Cristo sugeriu aos seus comprarem espadas, foi mais incisivo aqui: “Tendes ouvido o que foi dito: “Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo.” Eu, porém, vos digo: “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem.” (Mateus 5, 43-44). Ante a massa faminta, Jesus não lhes sugere tomar em armas, e recomenda aos discípulos: “dai-lhe vós mesmos de comer.” Ao jovem rico, Jesus não lhe sugere comprar armas. Não, Jesus apenas lhe ensina que sua riqueza é fruto da exploração e expropriação das centenas de pobres que o rodeiam. Mas Jesus, para não ser indelicado, não lhe diz claramente: “a tua riqueza é fruto de roubo, de exploração”. Jesus é sutil, apenas sugere: “vende tudo o que tem e dá aos pobres” (Mateus 19, 16-22). Na minha versão Jesus diria: “Como queres ser bom, se explora e expropria e se sacia da fome, do desemprego, da especulação financeira?  Toma tudo o que roubastes e devolves aos expropriados. Deixes de produzir commodities e alimentes o povo.” Não Abominável, armas não produzem liberdade, armas não constituem pátria soberana, armas apenas mantém o fosso entre os que ganham 14mil dólares por dia especulando a alta do dólar e as milhares de pessoas que passam fome. Uma hora, e não vejo a hora, estas pessoas deixam de apelar a Deus e tomam das armas. Disto não surgirá uma nação. Nações se produzem com justiça, com distribuição de renda, com escolas e livros.   

terça-feira, outubro 12, 2021

AOS PÉ DE MARIA

 

Era um doze de outubro, mãe, desesperada, se apegava à Nossa Senhora. O Bernardo pelava em febre. Pai fizera o turno da noite, já era para estar chegando. Mãe rezava e arrumava as coisas de Bernardo numa bolsa: documentos, fraldas, mamadeira. “Aguenta Bernardo, assim que seu pai entrar por aquele portão, eu corro contigo!” Mas pai não entrava pelo portão. “Rodrigo, presta a atenção”, disse-me mãe apressada, angustiada, “não dá mais para esperar teu pai chegar. Fica quetinho, não mexe em nada. Vou levar o Bernardo no médico. Vou passar na Quitéria, para ela vir te olhar. Só abre a porta para a Quitéria, entendeu? Fica deitadinho no teu canto. Só abre a porta para a Quitéria.” E mãe ganhou mundo com Bernardo nos braços. Não demorou, Quitéria apareceu.  Preparou-me café, me deixou assistir televisão. Pai só apareceu por volta das dez, já bêbado. Como chegou deitou, dormiu, sem dar atenção a que Quitéria lhe informava de mãe e Bernardo. No hospital não havia pediatra, o plantonista não fora, mãe precisava aguardar. E, aguardando mãe se apegava a Nossa Senhora.  Tardezinha, vieram avisar: “Bernardo partira, a mãe, a sedaram. Era preciso providenciar os documentos para o enterro!” Todos os anos mãe visita a Basílica, um dia lhe perguntei como conseguia manter a fé: “dando a Deus o que é de Deus, ao homem o que é do homem”. E me explicou: “Nós nascemos e nós morremos, não sabemos como, não sabemos quando. Mas, não ter hospitais, não ter médicos, perder nossos filhos não é problema de fé, é de política. No morrer não há querência de Deus, não se morre porque Deus quer, se morre porque é dos homens morrerem. É o morrer desassistido, quando não falta conhecimento e instrumentos que é um problema. Mas este não é um problema de Deus, é político. Na fé encontro razões para crer que meu filho é e eu serei, um dia novamente com ele.” Quando me tornei professor, minha mãe orgulhou-se: “não ensine teus alunos a duvidar de Deus, os ensinem a acreditar que podem, com conhecimento e com os instrumentos de sua criação, produzirem um mundo justo em que as pessoas vivam dignamente.” De mãe, de sua fortaleza, ainda aprendi: “Tem mais valor aos olhos de Deus quem nele não crê e produz justiça, que um devoto fervoroso, mas incapaz de caridade.” Mãe é hoje com Bernardo. Pai e eu mantemos o hábito de vir à Basílica. E aos teus pés , Maria, agradeço o que com ela vivi e aprendi: “Deus faz nascer o sol sobre justos e injustos, porque quem decide ser um ou outro é cada homem, é cada mulher.”

segunda-feira, outubro 11, 2021

MYSTERIUM VITAE

 

Venceslau Candido é um tipo “olha sapatos” e “voz para dentro”, como o definira Rigoberta Saraiva e Silva. “Muito prestativo, educado, faz as coisas com zelo e presteza”, informava Rigoberta aos “doutores”.  Os “doutores” eram o delegado e o escrivão. “As pessoas o dão por apalermado. Vivem bulindo com o coitado. E ele, nem sal, nem açúcar, caladão, cumprindo o que o chefe pede. ” “Ele vinha aqui todas as quintas e sábados”, explica o balconista. “Sentava ali no canto, naquela mesa. Se a mesa estava já ocupada, ficava encostado lá no canto, aguardando desocupar. Mas não era de se demorar muito. Acho que o negócio dele é com a Brighitte, depois da apresentação dela, ele pagava a conta, geralmente uma dose de vodka e uma latinha de Coca, uma porção de amendoim ou pururuca, a consumação de uma ou outra menina.” “A Brighitte”, explica o gerente, “apenas faz show, ela não faz programa. Ela se apresenta às quintas e sábados. Nestes dias, a casa ferve. “A vida é uma incógnita”, começou o Antunes, “há nela uma ordem oculta, conduzindo as pessoas, sem que se deem conta. Na vida, cada pessoa cumpre um papel determinado.  Venceslau cumpriu o seu.” “Não seu doutor”, explica Rigoberta, “o Venci, é assim que o chamamos por aqui, o Venci nunca faltou, chega sempre dez, quinze minuto antes, cumpre o horário de almoço rigorosamente, não é como uns e outros – olha para o Claudemiro – que começam quinze minutos antes e terminam meia hora depois. Não, o Venci, em tudo, é muito certo, muito correto. Em tudo, ele é muito organizado.” “Uma única vez, que me lembre”, relatou o garçom “ele foi pro quarto com uma garota, a Bia, se não me engano. Mas faz anos isto! A Bia, tadinha, já nem está mais entre nós. Ela morreu há uns dois anos, num acidente de carro. Era irmã da Brighitte, e uma das melhores garotas da casa, Deus a tenha”. “Ele era na dele”, conta o gerente, “sentava naquela mesa, ordenava uma vodka, uma Coca, uma porção qualquer, geralmente aceitava a companhia de uma das garotas, pagava o seu consumo, mas recusava qualquer proposta de programa, eu acho que ele era brocha. “No armário dele, ele guarda um foto dele ao lado de uma garota. Estão abraçados, ele parece feliz”, informa Rigoberta. “Eu sei porque foi algo excepcional. Ele, como disse, é muito organizado em suas coisas e cioso também, mas aquele dia, ele deixou a porta aberta, deixou a porta aberta. Então eu vi a foto dele com a garota Muito bonita, alias.” “Cada um de nós”, retoma o discurso Antunes, “está obrigado, sem se dar conta, a usar certo tipo de traje; a estar preso a certos rituais, a determinados comportamentos. Nosso modo de ser é regrado pelas circunstancias, as estruturas em que nascemos e vamos nos desenvolvendo nos enredam.” “Como de costume, ele chegou, tomou a mesa lá do canto, pediu uma vodka e uma Coca.” Explica o garçom. “A Brighitte teve um contratempo, não pode vir. Então, a substituímos. Quem se apresentou foi a Albertinna”, relata o gerente.  “Quando soube da mudança, ele simplesmente levantou-se e saiu”, informou o garçom. “Demonstrou contrariedade ao pagar a conta, mas não disse nada”, observou, ainda...  O sangue escorria pelo meio fio misturado à água que escorria vindo das casas mais acima. O corpo debruçado ao solo. Ao redor olhares curiosos, vozes desencontradas, narrações entrecortadas, especulando, indignando-se, justificando... “Somos indeterminações apenas por ignorância, tivéssemos conhecimento das leis que nos regem, nos saberíamos determinados. Cada gesto nosso, está já em nosso nascimento”, filosofa Antunes. Do outro lado da cidade Brighitte recebe a notícia: o irmão se suicidara.

 

terça-feira, setembro 28, 2021

NA REPUBLIQUETA DE BANANAS

 

Uma criança é violentada pelo pai. Para que fique em silêncio, ela é ameaçada: “Você não quer o mal da mamãe, quer?” Uma professora percebe mudança no comportamento da criança, procura saber o que está acontecendo e com habilidade consegue ouvir da criança da violência e da ameaça paterna. A professora leva o caso às instâncias de investigação. Colhido elementos probatórios do crime paterno o pai foi indiciado. Diante do volume dos elementos que incriminavam o pai, seus defensores procuraram responsabilizar a criança e desqualificar a professora. Para eles, a existência do crime era inegável, mas, da forma como fora denunciado, o crime deixava de existir e não se deveria imputar o réu: o seu gesto de amor e proteção teria sido mal interpretado pela criança – pois, de entre dez filhas, apenas ela acusa o pai –, pela professora, pelas instâncias investigativas. “Se criara uma narrativa”, defendia a defesa do pai abusador. Esta é a tese da base governista, principalmente do senador Marcos Rogério, na CPI da COVID-19. O desenho que fazemos precisa ser trágico para que se perceba a gravidade do trato que se deu, por parte do governo e da Prevent Senior, ao combate a pandemia nesta republiqueta de bananas. É de nausear-nos o esforço que os aliados do genocida empregam para desresponsabilizá-lo do caos econômico-político em que estamos mergulhados, e, sobretudo, das quase 600mil mortes por COVID-19 entre nós.


MEU PAI


 

domingo, setembro 26, 2021

BARBA

 

“Quando o velho narrador e a criança se encontram, os conselhos são absorvidos pela história.” Ecléa Bosi

No comercio de pai havia gente de toda espécie. Era um mosaico da diversidade humana. Por isso, era um espaço de conflitos, beirando, às vezes, à violência. Por tudo se debatia: pelo time de coração, pela inflação, pelos casos de família, pelas alegrias e tristezas que traziam no coração. Entre um copo ou outro de cachaça, as pessoas desfilavam seu estar no mundo “do jeito que pode”, na expressão do Barba. Nunca soube o nome do Barba, sabia ser italiano e ter vindo criança, com a mãe e dois irmãos, para o Brasil. O pai, morrera na Grande Guerra. Um dos irmãos não chegou a desembarcar vivo. A mãe também não viveu muito. Aos quinze anos, Barba e o irmão se separaram, o irmão foi “se aventurar nos Pampas”, nunca mais teve noticia. Figura solitária, barba em tudo trabalhou e conhecia “cada beco da cidade” e “cada traço da alma humana.” Das lembranças do comercio de pai e das figuras que o frequentavam, Barba é a mais vivaz. Ele gostava de contar histórias-ensinamentos. É, existem histórias que nos ajudam a assumir posições na vida. E Barba, de tais histórias, era mestre. “Antigamente”, começava ele, “uma donzela procurou o chefe de polícia, fora prestar queixas do namorado, que avançou a mão, sem autorização, um palmo acima do joelho. E o chefe de polícia perguntou-lhe: “E, a mão, avançou mais que isso?” “Não, senhor delegado! Não avançou, não!”, respondeu a jovem donzela. “E onde foi que ocorreu o fato?”, inquiriu o chefe. “Foi atrás da casa, debaixo da mangueira”. E a que “horas se deu isso?” “Foi por volta da Ave-Maria”. “Menina, volte para casa, antes que eu a prenda! Se estivesses rezando, o teu namorado estaria com as mãos no bolso. Por tua falta de zelo, quase levas a perder um bom moço.” “É isto que eu digo, é isto que eu digo”, um afoito foi dizendo. Barba o olhou com um certo riso. “Antigamente, meu caro, antigamente. Nós não somos homens do ontem, somos homens do presente. Antigamente se arrancava dente sem anestesia. Hoje nem dente mais se arranca. Para tudo tem tratamento. O hoje, meu caro, nos diz que em uma mulher não se toca, se não for de seu agrado, nem no prostíbulo. Como homens do hoje, menos brutos e ignorantes, deveríamos ser. E se atitudes de antigamente nos condenam e nos mostram quão pequenos fomos, não as devemos sustentar e defender.” O afoito engoliu o seu rabo de galo, com os rabos entre as pernas. Já nos idos tempos em que meu pai tinha comercio, o Barba me ensinava que: Não, é não!, e se avanços um milímetro além do consentido, além de cafajestagem, é crime.
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