domingo, setembro 26, 2021

BARBA

 

“Quando o velho narrador e a criança se encontram, os conselhos são absorvidos pela história.” Ecléa Bosi

No comercio de pai havia gente de toda espécie. Era um mosaico da diversidade humana. Por isso, era um espaço de conflitos, beirando, às vezes, à violência. Por tudo se debatia: pelo time de coração, pela inflação, pelos casos de família, pelas alegrias e tristezas que traziam no coração. Entre um copo ou outro de cachaça, as pessoas desfilavam seu estar no mundo “do jeito que pode”, na expressão do Barba. Nunca soube o nome do Barba, sabia ser italiano e ter vindo criança, com a mãe e dois irmãos, para o Brasil. O pai, morrera na Grande Guerra. Um dos irmãos não chegou a desembarcar vivo. A mãe também não viveu muito. Aos quinze anos, Barba e o irmão se separaram, o irmão foi “se aventurar nos Pampas”, nunca mais teve noticia. Figura solitária, barba em tudo trabalhou e conhecia “cada beco da cidade” e “cada traço da alma humana.” Das lembranças do comercio de pai e das figuras que o frequentavam, Barba é a mais vivaz. Ele gostava de contar histórias-ensinamentos. É, existem histórias que nos ajudam a assumir posições na vida. E Barba, de tais histórias, era mestre. “Antigamente”, começava ele, “uma donzela procurou o chefe de polícia, fora prestar queixas do namorado, que avançou a mão, sem autorização, um palmo acima do joelho. E o chefe de polícia perguntou-lhe: “E, a mão, avançou mais que isso?” “Não, senhor delegado! Não avançou, não!”, respondeu a jovem donzela. “E onde foi que ocorreu o fato?”, inquiriu o chefe. “Foi atrás da casa, debaixo da mangueira”. E a que “horas se deu isso?” “Foi por volta da Ave-Maria”. “Menina, volte para casa, antes que eu a prenda! Se estivesses rezando, o teu namorado estaria com as mãos no bolso. Por tua falta de zelo, quase levas a perder um bom moço.” “É isto que eu digo, é isto que eu digo”, um afoito foi dizendo. Barba o olhou com um certo riso. “Antigamente, meu caro, antigamente. Nós não somos homens do ontem, somos homens do presente. Antigamente se arrancava dente sem anestesia. Hoje nem dente mais se arranca. Para tudo tem tratamento. O hoje, meu caro, nos diz que em uma mulher não se toca, se não for de seu agrado, nem no prostíbulo. Como homens do hoje, menos brutos e ignorantes, deveríamos ser. E se atitudes de antigamente nos condenam e nos mostram quão pequenos fomos, não as devemos sustentar e defender.” O afoito engoliu o seu rabo de galo, com os rabos entre as pernas. Já nos idos tempos em que meu pai tinha comercio, o Barba me ensinava que: Não, é não!, e se avanços um milímetro além do consentido, além de cafajestagem, é crime.
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