quinta-feira, dezembro 16, 2021

NO TEMPO EM QUE TUDO ERA MELHOR

  

Firmeza total, mais um ano se passando

Graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô?

Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso

Sem miséria, e é nóis

Vamos brindar o dia de hoje

Que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka

(RACIONAIS MC’S)

 

Não obstante o esgoto correndo a céu aberto, as ruas de terra lamacentas, as casas, quando de alvenaria, construídas sem qualquer planta e sem acabamento, as crianças maltrapilhas, descalças, subnutridas, os homens sonolentos às portas de botecos, o  clima das festas de ano se aproximando se assistia nas conversas de comadres e nos botecos. As rezadeiras desfilavam pelas vielas da quebrada, de barraco em barraco, com seus padenossos e avemarias, visitando presépios, distribuindo doces para a criançada.  O time da comunidade promovia campanha para arrecadar e distribuir brinquedos, anunciava a abertura de uma rifa na rivalidade de casados e solteiros. À noite, quando se acendiam as pequeninas luzes de natal, a favela, vista de longe, das coberturas, enchiam os olhos: “era como cartão postal”, sugeria uma madama. “Nem parece um antro de vagabundos e parasitas”, comentava o marido, abrindo um Stag´s Leap: “Paris ou Rhodes?”, pergunta à madama.  O clima era de festa, a chuva dera uma trégua, as luzes piscantes de natal iluminavam as vielas. O grupo, em algazarra, voltava da escola. Combinavam um churrasco de encerramento do ano letivo, quem levava a carne, quem a cerveja, o amigo secreto, quem falava com a diretora... Ainda tinha a semana de provas, depois: “Era só alegria!” Entrando num beco, para tomar a Ladeira do Sacrifício, deram com a polícia. “Seis jovens morrem em confronto com a polícia”, deu no plantão, interrompendo a partida de futebol.  “Estamos colhendo informações, mas posso afirmar ser um caso isolado. Já tomamos todas as providências. Exigi apuração imediata. É uma fatalidade”, respondia o Governador no jornal da noite, arrotando o Stag´s Leap. Aos repórteres disse o comandante que “os polícias, surpreendidos, sentiram-se ameaçados, abriram fogo”. A cena do crime foi adulterada. A imprensa fez o seu papel de levantar suspeitas contra os jovens assassinados, relembrou históricos de violência na comunidade, a passagem de um pela Fundação Casa, o envolvimento do pai de outro com a criminalidade. Minou-se a indignação. No entanto, tudo apurado, a única arma encontrada foi uma inscrição para a FUVESTE, na mochila de um dos assassinados. Algo lido num pé de página. Era época de natal.  Quando os primeiros fogos pipocaram no céu, quatro mães lamentavam não ter mais o que celebrar ao ano que nascia. Eram tempos melhores aqueles.

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