segunda-feira, outubro 11, 2021

MYSTERIUM VITAE

 

Venceslau Candido é um tipo “olha sapatos” e “voz para dentro”, como o definira Rigoberta Saraiva e Silva. “Muito prestativo, educado, faz as coisas com zelo e presteza”, informava Rigoberta aos “doutores”.  Os “doutores” eram o delegado e o escrivão. “As pessoas o dão por apalermado. Vivem bulindo com o coitado. E ele, nem sal, nem açúcar, caladão, cumprindo o que o chefe pede. ” “Ele vinha aqui todas as quintas e sábados”, explica o balconista. “Sentava ali no canto, naquela mesa. Se a mesa estava já ocupada, ficava encostado lá no canto, aguardando desocupar. Mas não era de se demorar muito. Acho que o negócio dele é com a Brighitte, depois da apresentação dela, ele pagava a conta, geralmente uma dose de vodka e uma latinha de Coca, uma porção de amendoim ou pururuca, a consumação de uma ou outra menina.” “A Brighitte”, explica o gerente, “apenas faz show, ela não faz programa. Ela se apresenta às quintas e sábados. Nestes dias, a casa ferve. “A vida é uma incógnita”, começou o Antunes, “há nela uma ordem oculta, conduzindo as pessoas, sem que se deem conta. Na vida, cada pessoa cumpre um papel determinado.  Venceslau cumpriu o seu.” “Não seu doutor”, explica Rigoberta, “o Venci, é assim que o chamamos por aqui, o Venci nunca faltou, chega sempre dez, quinze minuto antes, cumpre o horário de almoço rigorosamente, não é como uns e outros – olha para o Claudemiro – que começam quinze minutos antes e terminam meia hora depois. Não, o Venci, em tudo, é muito certo, muito correto. Em tudo, ele é muito organizado.” “Uma única vez, que me lembre”, relatou o garçom “ele foi pro quarto com uma garota, a Bia, se não me engano. Mas faz anos isto! A Bia, tadinha, já nem está mais entre nós. Ela morreu há uns dois anos, num acidente de carro. Era irmã da Brighitte, e uma das melhores garotas da casa, Deus a tenha”. “Ele era na dele”, conta o gerente, “sentava naquela mesa, ordenava uma vodka, uma Coca, uma porção qualquer, geralmente aceitava a companhia de uma das garotas, pagava o seu consumo, mas recusava qualquer proposta de programa, eu acho que ele era brocha. “No armário dele, ele guarda um foto dele ao lado de uma garota. Estão abraçados, ele parece feliz”, informa Rigoberta. “Eu sei porque foi algo excepcional. Ele, como disse, é muito organizado em suas coisas e cioso também, mas aquele dia, ele deixou a porta aberta, deixou a porta aberta. Então eu vi a foto dele com a garota Muito bonita, alias.” “Cada um de nós”, retoma o discurso Antunes, “está obrigado, sem se dar conta, a usar certo tipo de traje; a estar preso a certos rituais, a determinados comportamentos. Nosso modo de ser é regrado pelas circunstancias, as estruturas em que nascemos e vamos nos desenvolvendo nos enredam.” “Como de costume, ele chegou, tomou a mesa lá do canto, pediu uma vodka e uma Coca.” Explica o garçom. “A Brighitte teve um contratempo, não pode vir. Então, a substituímos. Quem se apresentou foi a Albertinna”, relata o gerente.  “Quando soube da mudança, ele simplesmente levantou-se e saiu”, informou o garçom. “Demonstrou contrariedade ao pagar a conta, mas não disse nada”, observou, ainda...  O sangue escorria pelo meio fio misturado à água que escorria vindo das casas mais acima. O corpo debruçado ao solo. Ao redor olhares curiosos, vozes desencontradas, narrações entrecortadas, especulando, indignando-se, justificando... “Somos indeterminações apenas por ignorância, tivéssemos conhecimento das leis que nos regem, nos saberíamos determinados. Cada gesto nosso, está já em nosso nascimento”, filosofa Antunes. Do outro lado da cidade Brighitte recebe a notícia: o irmão se suicidara.

 

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