quarta-feira, novembro 18, 2020

POR QUE CELEBRAR ZUMBI DE PALMARES?

 Claudio Domingos Fernandes

 

Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros fugidos dos engenhos de açúcar ou de vilas organizaram-se para si mesmos, na forma de uma economia solidária e uma sociedade igualitária. (Darcy Ribeiro. O Povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1997, pp. 173)

 ... Olha só aquele clube que da hora,/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora/ .../ Ele apenas sonha através do muro... (Racionais MC´s: Fim de Semana no Parque)

 

Ainda há quem coloque a questão sobre o porquê celebrar Zumbi de Palmares. Alguns veem em tal celebração uma afronta, outros, revanchismo. Há quem desdenhe e há quem pense em vitimismo. O certo é que Zumbi, Palmares, ainda assombram nossa sociedade patriarcal e escravista. A título de pontuar o porquê das comemorações de Zumbi de Palmares e da Semana da Consciência Negra, o presente texto acompanha a obra de Lilia M. Scwarcz e Heloisa M. Starling, Brasil Uma Biografia. Não o seguiremos, porém, de forma literal. Procuramos explicitar, algumas vezes, o não dito nos relatos das autoras. 

Então, por que celebrar Zumbi de Palmares?

Porque em 300 anos milhões de homens e mulheres não viajaram espontaneamente de suas terras com o fito de povoarem outras terras pelo mundo. Não! Foram brutalmente extraídos de seu solo, foram, como animais, encerrados em porões de navios e traficados como mercadoria-moeda num negócio que subsidiou o nascente capitalismo. E o Brasil recebeu 40% dos africanos impiedosamente arrancados de suas terras. Cerca de 4 milhões de homens e mulheres  aqui aportaram para servirem de mercadoria e maquina,  trabalhando em regime de escravidão.

Esses homens e mulheres, os que resistiram a longa travessia marítima, aqui foram marcados pela água do batismo e pelo ferro em brasa. Tiveram elos culturais e familiares rompidos. Foram extorquidos do próprio corpo, tornado propriedade coisa-moeda de Senhores de engenho. E sob açoite, sevicia e castigos de toda sorte, produziram as riquezas de seus senhores e serviram como instrumento de prazer e gozo sádicos desses mesmos senhores. Muitos morreram de exaustão, subnutrição, tortura, suicídio. É em memória deste povo vilipendiado e impiedosamente massacrado que se celebra Zumbi de Palmares.

Porque a escravidão enraizou-se de tal forma que deixou de ser privilégio de grandes senhores de engenho. “Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e remediados e até libertos possuíam escravos...” A escravidão “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência” e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por um patriarcalismo obtuso, mesquinho, impiedoso. Nossa elite é uma horda de sádicos...    

Quando não mais serviam, pois o sistema econômico passou a exigir nova forma de produção e de mão de obra, homens, mulheres, crianças, idosos, doentes foram libertados e abandonados à própria sorte sem instrução, sem direito à terra, sem direitos políticos, sem assistência econômica, e carregados de injurias e preconceitos. E, após cem anos de sua liberação, “ainda são pouco numerosos os seguimentos da “população de cor” que conseguem se integrar, efetivamente, na sociedade competitiva e nas classes sociais que a compõem”. E para não se enfrentarem os problemas decorrentes da destituição do escravo e da espoliação final de que foi vítima o antigo agente de trabalho, se criou um expediente intelectual: a ideia da ‘democracia racial’.

 Ainda hoje, “quanto mais escura a pele do brasileiro, da brasileira, mais se sente o fosso de nossas desigualdades e as marcas ingentes da violência institucional e do sadismo de determinados segmentos sociais.”

Porque há um extermínio sistemático de nossa gente nas periferias e porque se persegue indisfarçadamente adeptos das religiões de matriz africana, e se procura impedir nosso acesso à universidade pública. Por tudo isso, celebramos Zumbi de Palmares.

Zumbi de Palmares não é um herói; é um símbolo de resistência, de luta, de denuncia contra o que persiste de preconceituoso e odioso contra os homens e mulheres de pele escura e contra as manifestações religiosas e culturais de matriz africana.

Celebrar Zumbi, comemorar a Semana de Consciência Negra é recordar que, não obstante todas as adversidades, todo desrespeito a sua dignidade, todo sofrimento sofrido, os extraviados de suas terras e traficados como mercadoria não se renderam à barbárie e ao sadismo de seus senhores. E fizeram mais do que apenas sobreviver, organizaram-se, lutaram e estabeleceram um espaço em que se pode sonhar com liberdade e resgate de sua identidade. Palmares foi uma brecha de esperança aberta no coração do sofrimento imposto pelo sistema escravista. “Para fugir da condição de “peça” [coisa-moeda-objeto sádico], os escravizados procuraram nas brechas do sistema espaços para recriar suas culturas, [cultivar] desejos, sonhar com a liberdade e com a reação”, restabelecer seus laços com seus orixás e ancestrais, dar-se a dignidade roubada. “Jamais abriram mão de serem agentes e senhores de suas vidas... [E] a resistência escrava deu origem a mocambos ou quilombos...”

Celebrar Zumbi de Palmares é reviver está brecha e anunciar a esperança de construirmos uma nação livre do preconceito e das injurias contra os homens e mulheres por causa da cor de suas peles.

Palmares foi o maior e mais persistente quilombo e significou uma alternativa concreta à ordem escravista... “Tornou-se um problema real e bastante amedrontador para o [escravismo colonial e para as autoridades, e precisava ser combatido...” A queda de Palmares e a execução de seu maior líder, Zumbi, serviram às autoridades coloniais de ontem e serve aos autoritários de hoje como modelo para a repressão e o sujeitamento das camadas mais pobres de nossa nação. A degola de Zumbi ilustra o que ocorre aos que reagem à sádica exploração, não apenas econômica, da grande massa de brasileiros e brasileiras.

Aos que negam ao trabalhador condições dignas de trabalho, direitos constitucionais, liberdade de reivindicar respeito às suas crenças e tradições culturais, reconhecimento econômico e favorecimento de acesso à formação de qualidade, celebrar Zumbi não é incompreensível: é uma afronta; uma ameaça.

Para os milhares de homens e mulheres, ainda que não saibam – ainda hoje extorquidos de seus corpos, de seus sonhos, de seus desejos, espezinhados, ridicularizados, humilhados, por uma elite econômica, política e religiosa, patriarcal, mesquinha, tosca –, Palmares e seu líder maior Zumbi se converteram em luta por inclusão social, conquista de direito, resgate de identidade cultural de respeito a seus cultos, desejo de uma sociedade menos desigual.

Enquanto houver injustiça, enquanto os homens e mulheres de nossas classes populares se sentirem ameaçados, intimidados, desrespeitados por sua cor de pele e por suas tradições religiosas, por suas manifestações culturais, que viva Zumbi!;  e que se faça memória de Palmares.

Em resumo, celebrar Zumbi é manter viva a história de dor e sofrimento de homens e mulheres que não viajaram por vontade própria, mas, feito mercadoria, foram desterrados e tornados escravos em terras que não eram sua. Não podemos esconder o sangue que se derramou para alimentar os sonhos de riqueza e poder de nosso patronato e nossa elite política. Não podemos esconder que ainda se derrama sangue em nossas periferias e a vitima são nossos filhos. Para nós celebrar Zumbi de Palmares é, como dizem Mano Brown e Edy Rocky, produzir “um raio X do Brasil”.

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