Claudio Domingos Fernandes
Palmares
é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros fugidos dos
engenhos de açúcar ou de vilas organizaram-se para si mesmos, na forma de uma
economia solidária e uma sociedade igualitária. (Darcy Ribeiro. O Povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
1997, pp. 173)
... Olha só
aquele clube que da hora,/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora/ .../ Ele
apenas sonha através do muro... (Racionais MC´s: Fim de Semana no Parque)
Ainda há quem coloque a questão sobre o porquê celebrar Zumbi
de Palmares. Alguns veem em tal celebração uma afronta, outros, revanchismo. Há
quem desdenhe e há quem pense em vitimismo. O certo é que Zumbi, Palmares,
ainda assombram nossa sociedade patriarcal e escravista. A título de pontuar o
porquê das comemorações de Zumbi de Palmares e da Semana da Consciência Negra,
o presente texto acompanha a obra de Lilia M. Scwarcz e Heloisa M. Starling, Brasil Uma Biografia. Não o seguiremos,
porém, de forma literal. Procuramos explicitar, algumas vezes, o não dito nos
relatos das autoras.
Então, por que celebrar Zumbi de Palmares?
Porque em 300 anos milhões de homens e mulheres não viajaram
espontaneamente de suas terras com o fito de povoarem outras terras pelo mundo.
Não! Foram brutalmente extraídos de seu solo, foram, como animais, encerrados
em porões de navios e traficados como mercadoria-moeda num negócio que
subsidiou o nascente capitalismo. E o Brasil recebeu 40% dos africanos
impiedosamente arrancados de suas terras. Cerca de 4 milhões de homens e
mulheres aqui aportaram para servirem de
mercadoria e maquina, trabalhando em
regime de escravidão.
Esses homens e mulheres, os que resistiram a longa travessia
marítima, aqui foram marcados pela água do batismo e pelo ferro em brasa. Tiveram
elos culturais e familiares rompidos. Foram extorquidos do próprio corpo,
tornado propriedade coisa-moeda de Senhores de engenho. E sob açoite, sevicia e
castigos de toda sorte, produziram as riquezas de seus senhores e serviram como
instrumento de prazer e gozo sádicos desses mesmos senhores. Muitos morreram de
exaustão, subnutrição, tortura, suicídio. É em memória deste povo vilipendiado
e impiedosamente massacrado que se celebra Zumbi de Palmares.
Porque a escravidão enraizou-se de tal forma que deixou de
ser privilégio de grandes senhores de engenho. “Padres, militares, funcionários
públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e
remediados e até libertos possuíam escravos...” A escravidão “moldou condutas,
definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças
fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência” e criou uma sociedade
condicionada pelo paternalismo e por um patriarcalismo obtuso, mesquinho,
impiedoso. Nossa elite é uma horda de sádicos...
Quando
não mais serviam, pois o sistema econômico passou a exigir nova forma de produção
e de mão de obra, homens, mulheres, crianças, idosos, doentes foram libertados
e abandonados à própria sorte sem instrução, sem direito à terra, sem direitos
políticos, sem assistência econômica, e carregados de injurias e preconceitos.
E, após cem anos de sua liberação, “ainda são pouco numerosos os seguimentos da
“população de cor” que conseguem se integrar, efetivamente, na sociedade
competitiva e nas classes sociais que a compõem”. E para não se enfrentarem os
problemas decorrentes da destituição do escravo e da espoliação final de que
foi vítima o antigo agente de trabalho, se criou um expediente intelectual: a
ideia da ‘democracia racial’.
Ainda hoje, “quanto mais escura a pele do
brasileiro, da brasileira, mais se sente o fosso de nossas desigualdades e as
marcas ingentes da violência institucional e do sadismo de determinados segmentos
sociais.”
Porque
há um extermínio sistemático de nossa gente nas periferias e porque se persegue
indisfarçadamente adeptos das religiões de matriz africana, e se procura
impedir nosso acesso à universidade pública. Por tudo isso, celebramos Zumbi de
Palmares.
Zumbi
de Palmares não é um herói; é um símbolo de resistência, de luta, de denuncia
contra o que persiste de preconceituoso e odioso contra os homens e mulheres de
pele escura e contra as manifestações religiosas e culturais de matriz africana.
Celebrar
Zumbi, comemorar a Semana de Consciência Negra é recordar que, não obstante
todas as adversidades, todo desrespeito a sua dignidade, todo sofrimento
sofrido, os extraviados de suas terras e traficados como mercadoria não se
renderam à barbárie e ao sadismo de seus senhores. E fizeram mais do que apenas
sobreviver, organizaram-se, lutaram e estabeleceram um espaço em que se pode
sonhar com liberdade e resgate de sua identidade. Palmares foi uma brecha de
esperança aberta no coração do sofrimento imposto pelo sistema escravista. “Para
fugir da condição de “peça” [coisa-moeda-objeto sádico], os escravizados
procuraram nas brechas do sistema espaços para recriar suas culturas,
[cultivar] desejos, sonhar com a liberdade e com a reação”, restabelecer seus
laços com seus orixás e ancestrais, dar-se a dignidade roubada. “Jamais abriram
mão de serem agentes e senhores de suas vidas... [E] a resistência escrava deu
origem a mocambos ou quilombos...”
Celebrar
Zumbi de Palmares é reviver está brecha e anunciar a esperança de construirmos
uma nação livre do preconceito e das injurias contra os homens e mulheres por
causa da cor de suas peles.
Palmares
foi o maior e mais persistente quilombo e significou uma alternativa concreta à
ordem escravista... “Tornou-se um problema real e bastante amedrontador para o
[escravismo colonial e para as autoridades, e precisava ser combatido...” A
queda de Palmares e a execução de seu maior líder, Zumbi, serviram às
autoridades coloniais de ontem e serve aos autoritários de hoje como modelo
para a repressão e o sujeitamento das camadas mais pobres de nossa nação. A
degola de Zumbi ilustra o que ocorre aos que reagem à sádica exploração, não
apenas econômica, da grande massa de brasileiros e brasileiras.
Aos
que negam ao trabalhador condições dignas de trabalho, direitos
constitucionais, liberdade de reivindicar respeito às suas crenças e tradições
culturais, reconhecimento econômico e favorecimento de acesso à formação de
qualidade, celebrar Zumbi não é incompreensível: é uma afronta; uma ameaça.
Para
os milhares de homens e mulheres, ainda que não saibam – ainda hoje extorquidos
de seus corpos, de seus sonhos, de seus desejos, espezinhados, ridicularizados,
humilhados, por uma elite econômica, política e religiosa, patriarcal, mesquinha,
tosca –, Palmares e seu líder maior Zumbi se converteram em luta por inclusão
social, conquista de direito, resgate de identidade cultural de respeito a seus
cultos, desejo de uma sociedade menos desigual.
Enquanto
houver injustiça, enquanto os homens e mulheres de nossas classes populares se
sentirem ameaçados, intimidados, desrespeitados por sua cor de pele e por suas
tradições religiosas, por suas manifestações culturais, que viva Zumbi!; e que se faça memória de Palmares.
Em
resumo, celebrar Zumbi é manter viva a história de dor e sofrimento de homens e
mulheres que não viajaram por vontade própria, mas, feito mercadoria, foram
desterrados e tornados escravos em terras que não eram sua. Não podemos
esconder o sangue que se derramou para alimentar os sonhos de riqueza e poder
de nosso patronato e nossa elite política. Não podemos esconder que ainda se
derrama sangue em nossas periferias e a vitima são nossos filhos. Para nós celebrar
Zumbi de Palmares é, como dizem Mano Brown e Edy Rocky, produzir “um raio X do
Brasil”.
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