quarta-feira, novembro 18, 2020

O PORQUÊ DA SEMANA CONSCIÊNCIA NEGRA?

 

Por Claudio Domingos Fernandes

 

Embora se coadunem, a celebração em honra a Zumbi de Palmares e a Semana de Consciência Negra se distinguem.  Tratarei aqui da Semana de Consciência Negra.

 

I

Se você acha que CONSCIÊNCIA é um conceito simples, você está enganado, não é.  Para Hegel, por exemplo, ela é, no desenvolvimento do Espírito Absoluto, resultado da luta entre Senhor-servo por reconhecimento.  Em Marx, a superação da luta de classe em que burguesia e proletariado se empenham em dominar os meios de produção material, e, é preciso ressaltar, intelectual. E em Freud, a consciência se dá do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, e das instâncias de controle dos instintos sexuais e de agressividade, na instituição da Civilização.  A citação resumidíssima desses autores é apenas para ilustrar que o conceito de consciência não é simples e não é hegemônico, requer, portanto, reflexão. O comum entre estes e outros autores é que a consciência não é um algo dado e acabado, ela se desenvolve e passa por estágios. Daí se poder falar de consciência ingênua, de falsa consciência e se cobrar Consciência, apreensão da realidade problematizada, destacando nossa condição no mundo...

 

 II

É verdade, as pessoas não nascem racistas. Mas se se tornam é porque o racismo existe. E reconhecer sua existência é o primeiro passo para combatê-lo.

Ildes Comparato

 

O racismo é a pretensão de ser superior a uma pessoa ou grupo humano, devido sua etnia. E tal pretensão te leva ao ponto de submeter a pessoa ou grupo humano a seus caprichos e descartá-los como se descarta um objeto inutilizado. É uma doença do ego.

Josias Capello

 

 

A expressão "consciência negra" foi cunhada pelo ator político anti-colonialista, Sul Africano, Steve Biko. Steve Biko tinha 30 anos, quando foi preso, torturado e assassinado pelo Apartheid em 12 de setembro de 1977. Ainda estudante de medicina, ele criou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos (SASO, em língua inglesa).

Na África do Sul, o movimento de Biko reclama o reconhecimento do racismo, fundado na desvalorização social de homens e mulheres, submetidos a um regime de opressão. Para ele este é o primeiro passo no caminho da superação do racismo. Ele destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura, pela educação, pela religião e pela política, combatendo formas e manifestações de racismo.

Para Biko a dominação não se dá apenas de forma política, e ou nas estruturas do judiciário. Sua maior incidência se dá no campo das ideias, dos valores, das ideologias. De tal modo, segundo ele "a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido.” Ele acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso desconstruir o discurso de desprestigio contra o homem e a mulher negra, criando uma ideia oposta, de força e orgulho negro. Para Biko o confronto do racismo com a consciência negra produziria uma síntese mais humana, construindo um país igual entre negros e brancos.

Assim a consciência negra não propõe um confronto entre pessoas, mas entre mentalidades, de um lado a racista e colonizadora e de outro a da valorização e emancipação do oprimido, marcado pela pigmentação de sua pele.

O movimento de Biko e suas ideias irão reverberar no Brasil já na década de 1970. E em julho de 1978, com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro passa a ser um dia de combate ao racismo. 20 de novembro recorda a morte de Zumbi de Palmares em 1695. Neste gesto, o movimento negro brasileiro elege a luta do Quilombo dos Palmares como gancho para a reflexão acerca do tratamento de desprestigio e desrespeito dispensados a homens e mulheres no Brasil devido a pigmentação de sua pele.

O Dia nacional da Consciência Negra nos chama a atenção para o fato de que, ainda hoje, pessoas são destratadas, humilhadas e até mortas devido a pigmentação de sua pele.  O entendimento desse sistema de desvalorização do ser humano segundo a pigmentação de sua pele e das consequências que ele acarreta como exclusão social, marginalização e criminalização arbitrária de pessoas e de comunidades é um passo necessário para superarmos nossas contradições.

Nem todo homem branco, nem toda mulher branca é racista e, por isso, os não racistas não deveriam se incomodar com o dia de consciência negra. Pois, o dia de consciência negra não é um combate ao homem branco ou à mulher branca, é um combate ao racismo nas estruturas de poder, em instituições e entre aqueles e aquelas que destratam, humilham, marginalizam, criminalizam e executam arbitrariamente pessoas, devido sua etnia ou pigmentação de pele.

Para Steve Biko “O princípio básico da Consciência Negra é que o homem negro deve rejeitar todos os sistemas de valores que buscam torná-lo um estrangeiro em seu país natal e reduzir sua dignidade humana básica.”

 

 

III

 

Agora, se você acha que o termo negro, negra, tem algo a ver com raça e ou cultura, você não está errado, mas se você pensa que ele se refere à distinção dos homens entre brancos e negros, atribuindo negro à cor da pele, você se engana.

Numa sociedade, como a nossa, dividida por uma elite econômica detentora dos meios de produção material e intelectual, atribuindo-se privilégios políticos, restringindo a si o acesso à alta cultura e à produção do conhecimento acadêmico e cientifico de ponta, enquanto do outro lado uma extensa massa de  assalariados  e  trabalhadores  informais  apertam  cada  vez  mais  seus diminutos  ganhos  para  garantirem-se  o  essencial  às  necessidades,  negro, negra é todo aquele, aquela, que alijados de condições dignas de moradia, de saúde, de educação, que empobrecidos, são  humilhados  e  responsabilizados  por  seu  “fracasso social”.

Assim a Semana de Consciência Negra não trata apenas de racismo, na sua redução Homens brancos X Homens de pele escura. Ela debate a violência contra mulher: o assédio, a agressão verbal, física, a imposição de uma estética, de controle sobre seu corpo; a responsabilização da vítima pela violência sofrida. Ela debate intolerância religiosa, lembrando que nenhuma manifestação religiosa no Brasil congrega, em caráter exclusivo, apenas homens e ou mulheres de uma ou outra tonalidade de pele. Em todas as denominações religiosas sejam elas ocidentais, orientais ou de matriz africana, o matiz das peles se confundem e se encontram. No caso, então, deste embate o foco é a liberdade de expressão religiosa. Ela debate a violência simbólica que vitimiza, criminaliza e executa nossos jovens em nossas periferias. Debate, por fim, a educação, a cultura e os produtos culturais a disposição e ao alcance de nossos jovens, as oportunidades de inserção nas universidades, em melhores postos de trabalho e nas esferas representativas de poder, etc.

 

IV

 

É certo que, e isto é uma constatação, os indicadores sociais  apontam, que quanto mais escura a pele do  indivíduo  mais ele é sujeitado  ao desmando  das forças  econômicas,  políticas,  das  elites  culturais  e  religiosas,  mas se  você  é assalariado, se você está no mercado informal sem garantia trabalhista alguma (isto não é empreendedorismo), se você está desempregado, se você precisa sempre  adiar  a  obtenção  de um  bem,  se você  não  dorme  tranquilo/a  porque não sabe se seu filho está ou não sujeitado  ao crime  organizado  ou sobre  a mira da arma da  milícia  uniformizada, apenas por morar na  periferia, se você não  tem os princípios  constitucionais  fundamentais  garantidos:  SAÚDE, EDUCAÇÃO,  MORADIA,  LAZER,  TRABALHO  DEVIDAMENTE REMUNERADO,  SANEAMENTO  BÁSICO,  ASSISTÊNCIA  SOCIAL  (o maiúsculo não é despropositado), você, independente da cor de sua pele, você é negro, negra. 

Se você, independente de sua pele, pensa: “o que vão achar? Vão me ridicularizar? Vão me perseguir, apedrejar?”, quando você coloca o seu terno ou o seu abadá, ou o seu véu ou burca, para ir celebrar suas convicções religiosas, você é NEGRO, NEGRA.  Se você se sente desconfortada com o assédio, com a violência simbólica, verbal, física contra seu corpo, independente da cor de sua pele, você é negro/a...

Numa sociedade divida entre uma elite abestada, apequenada moralmente em seu reduto de méritos e privilégios, dada à arrogância e ao direito de humilhar a massa de ingentes trabalhadores e desempregados, que, empobrecidos, dependem das políticas sociais, o conflito que se estabelece entre estes poucos abastados e a turba de pauperizados se justifica. E a Semana de Consciência Negra torna-se, nesse embate, não apenas reflexão acerca das relações e condições de vida dessa massa ingente a que pertencemos; torna-se voz de denuncia, de resistência, de luta por superação de tamanha e condenável dicotomia. Neste sentido, uma semana não basta. 

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