Por Claudio Domingos Fernandes
Embora
se coadunem, a celebração em honra a Zumbi de Palmares e a Semana de
Consciência Negra se distinguem.
Tratarei aqui da Semana de Consciência Negra.
I
Se
você acha que CONSCIÊNCIA é um conceito simples, você está enganado, não
é. Para Hegel, por exemplo, ela é, no
desenvolvimento do Espírito Absoluto, resultado da luta entre Senhor-servo por
reconhecimento. Em Marx, a superação da
luta de classe em que burguesia e proletariado se empenham em dominar os meios
de produção material, e, é preciso ressaltar, intelectual. E em Freud, a
consciência se dá do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, e das
instâncias de controle dos instintos sexuais e de agressividade, na instituição
da Civilização. A citação resumidíssima
desses autores é apenas para ilustrar que o conceito de consciência não é
simples e não é hegemônico, requer, portanto, reflexão. O comum entre estes e
outros autores é que a consciência não é um algo dado e acabado, ela se
desenvolve e passa por estágios. Daí se poder falar de consciência ingênua, de
falsa consciência e se cobrar Consciência, apreensão da realidade
problematizada, destacando nossa condição no mundo...
II
É verdade, as pessoas
não nascem racistas. Mas se se tornam é porque o racismo existe. E reconhecer
sua existência é o primeiro passo para combatê-lo.
Ildes
Comparato
O racismo é a
pretensão de ser superior a uma pessoa ou grupo humano, devido sua etnia. E tal
pretensão te leva ao ponto de submeter a pessoa ou grupo humano a seus
caprichos e descartá-los como se descarta um objeto inutilizado. É uma doença
do ego.
Josias
Capello
A expressão
"consciência negra" foi cunhada pelo ator político anti-colonialista,
Sul Africano, Steve Biko. Steve Biko tinha 30 anos, quando foi preso, torturado
e assassinado pelo Apartheid em 12 de
setembro de 1977. Ainda estudante de medicina, ele criou a Organização dos
Estudantes Sul-Africanos (SASO, em língua inglesa).
Na África do Sul, o
movimento de Biko reclama o reconhecimento do racismo, fundado na
desvalorização social de homens e mulheres, submetidos a um regime de opressão.
Para ele este é o primeiro passo no caminho da superação do racismo. Ele
destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura,
pela educação, pela religião e pela política, combatendo formas e manifestações
de racismo.
Para Biko a dominação não se
dá apenas de forma política, e ou nas estruturas do judiciário. Sua maior
incidência se dá no campo das ideias, dos valores, das ideologias. De tal modo,
segundo ele "a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido.” Ele
acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso
desconstruir o discurso de desprestigio contra o homem e a mulher negra,
criando uma ideia oposta, de força e orgulho negro. Para Biko o confronto do
racismo com a consciência negra produziria uma síntese mais humana, construindo
um país igual entre negros e brancos.
Assim a consciência negra
não propõe um confronto entre pessoas, mas entre mentalidades, de um lado a
racista e colonizadora e de outro a da valorização e emancipação do oprimido,
marcado pela pigmentação de sua pele.
O movimento de Biko e suas
ideias irão reverberar no Brasil já na década de 1970. E em julho de 1978, com
o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro passa a
ser um dia de combate ao racismo. 20 de novembro recorda a morte de Zumbi de
Palmares em 1695. Neste gesto, o movimento negro brasileiro elege a luta do
Quilombo dos Palmares como gancho para a reflexão acerca do tratamento de desprestigio
e desrespeito dispensados a homens e mulheres no Brasil devido a pigmentação de
sua pele.
O Dia nacional da
Consciência Negra nos chama a atenção para o fato de que, ainda hoje, pessoas
são destratadas, humilhadas e até mortas devido a pigmentação de sua pele. O entendimento desse sistema de
desvalorização do ser humano segundo a pigmentação de sua pele e das
consequências que ele acarreta como exclusão social, marginalização e criminalização
arbitrária de pessoas e de comunidades é um passo necessário para superarmos
nossas contradições.
Nem todo homem
branco, nem toda mulher branca é racista e, por isso, os não racistas não
deveriam se incomodar com o dia de consciência negra. Pois, o dia
de consciência negra não é um combate ao homem branco ou à mulher branca, é um
combate ao racismo nas estruturas de poder, em instituições e entre aqueles e
aquelas que destratam, humilham, marginalizam, criminalizam e executam
arbitrariamente pessoas, devido sua etnia ou pigmentação de pele.
Para Steve Biko
“O princípio básico da Consciência Negra é que o homem negro deve rejeitar
todos os sistemas de valores que buscam torná-lo um estrangeiro em seu país
natal e reduzir sua dignidade humana básica.”
III
Agora, se você acha que o
termo negro, negra, tem algo a ver com raça e ou cultura, você não está errado,
mas se você pensa que ele se refere à distinção dos homens entre brancos e
negros, atribuindo negro à cor da pele, você se engana.
Numa sociedade, como a
nossa, dividida por uma elite econômica detentora dos meios de produção
material e intelectual, atribuindo-se privilégios políticos, restringindo a si
o acesso à alta cultura e à produção do conhecimento acadêmico e cientifico de
ponta, enquanto do outro lado uma extensa massa de assalariados
e trabalhadores informais
apertam cada vez
mais seus diminutos ganhos
para garantirem-se o
essencial às necessidades,
negro, negra é todo aquele, aquela, que alijados de condições dignas de
moradia, de saúde, de educação, que empobrecidos, são humilhados
e responsabilizados por
seu “fracasso social”.
Assim a Semana de
Consciência Negra não trata apenas de racismo, na sua redução Homens brancos X
Homens de pele escura. Ela debate a violência contra mulher: o assédio, a
agressão verbal, física, a imposição de uma estética, de controle sobre seu
corpo; a responsabilização da vítima pela violência sofrida. Ela debate
intolerância religiosa, lembrando que nenhuma manifestação religiosa no Brasil
congrega, em caráter exclusivo, apenas homens e ou mulheres de uma ou outra
tonalidade de pele. Em todas as denominações religiosas sejam elas ocidentais,
orientais ou de matriz africana, o matiz das peles se confundem e se encontram.
No caso, então, deste embate o foco é a liberdade de expressão religiosa. Ela
debate a violência simbólica que vitimiza, criminaliza e executa nossos jovens
em nossas periferias. Debate, por fim, a educação, a cultura e os produtos
culturais a disposição e ao alcance de nossos jovens, as oportunidades de
inserção nas universidades, em melhores postos de trabalho e nas esferas
representativas de poder, etc.
IV
É certo que, e isto é uma
constatação, os indicadores sociais
apontam, que quanto mais escura a pele do indivíduo
mais ele é sujeitado ao
desmando das forças econômicas,
políticas, das elites
culturais e religiosas,
mas se você é assalariado, se você está no mercado
informal sem garantia trabalhista alguma (isto não é empreendedorismo), se você
está desempregado, se você precisa sempre
adiar a obtenção
de um bem, se você
não dorme tranquilo/a
porque não sabe se seu filho está ou não sujeitado ao crime
organizado ou sobre a mira da arma da milícia
uniformizada, apenas por morar na periferia, se você não tem os princípios constitucionais fundamentais
garantidos: SAÚDE, EDUCAÇÃO, MORADIA,
LAZER, TRABALHO DEVIDAMENTE REMUNERADO, SANEAMENTO
BÁSICO, ASSISTÊNCIA SOCIAL
(o maiúsculo não é despropositado), você, independente da cor de sua
pele, você é negro, negra.
Se você, independente de sua
pele, pensa: “o que vão achar? Vão me ridicularizar? Vão me perseguir, apedrejar?”,
quando você coloca o seu terno ou o seu abadá, ou o seu véu ou burca, para ir
celebrar suas convicções religiosas, você é NEGRO, NEGRA. Se você se sente desconfortada com o assédio,
com a violência simbólica, verbal, física contra seu corpo, independente da cor
de sua pele, você é negro/a...
Numa sociedade divida entre uma
elite abestada, apequenada moralmente em seu reduto de méritos e privilégios,
dada à arrogância e ao direito de humilhar a massa de ingentes trabalhadores e
desempregados, que, empobrecidos, dependem das políticas sociais, o conflito
que se estabelece entre estes poucos abastados e a turba de pauperizados se
justifica. E a Semana de Consciência Negra torna-se, nesse embate, não apenas
reflexão acerca das relações e condições de vida dessa massa ingente a que
pertencemos; torna-se voz de denuncia, de resistência, de luta por superação de
tamanha e condenável dicotomia. Neste sentido, uma semana não basta.
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