“À vida, à existência, se sobrepõe a História.” (Euripedes dos Santos)
No
comércio de pai tinha lá um tipo que estava sempre com livro ou uma revista
debaixo do braço, Antunes. Depois do terceiro ou quarto gole de cachaça, abandonava
livro ou revista de canto, e ficava a cantarolar Bezerra da Silva, acompanhado
de uma caixa de fósforo. Das revistas (Playboy, Ele Ela, Penthouse), pai dava
conta depressa de tirar de vista. Bom proseador, Antunes gostava de acompanhar
os debates sobre futebol, política e mulher, comuns entre os fregueses de
pai. Todo cerimonioso, interrompia uma
ou outra discussão mais acalorada: “Me desculpa, posso participar minha
ignorância com um pitaco?” E começava:
“Esquerda
e direita é coisa de quem tem estudo, tempo e dinheiro. Pobre não tem
ideologia, pobre padece necessidades. A única coisa que diferencia um de
direita de um de esquerda é que, se deixar, o da direita restaura a escravidão,
o da esquerda sindicaliza todo mundo... Mas o que mais aflige o pobre é perder
o que não tem. Ele vive sob a mira da polícia, do bandido, da milícia, mas teme
o aumento da violência; ele mal aluga um barraco quarto e cozinha, mas teme
perder a casa que não tem. Mas este medo não é dele, é que o pobre é um ser
solidário, ele se solidariza com temores alheios. O voto do pobre expressa medo,
não interesse. Não é porque ganha a cesta básica que o pobre vota em A ou B,
ele vota em A ou B, por medo de que o patrão, a patroa, perdendo, ele também
perca. São os medos do patrão que orientam o voto do operário... Em política o
ato presente tem suas origens em eventos passados. O escravismo é o fundamento
de nossos costumes, de nossos sentimentos de nossas ideias, de nossas
instituições. Uma experiência de quatro séculos não se apaga do caráter de um
povo em duas ou três décadas. Um não é responsável por seus instintos, nem por
seus traumas. Em nossas escolhas não entra apenas a razão, somos também seres
passionais. Mais que de nossas vontades e anseios, as urnas falam de nossos
medos, de nossos instintos, de nossos traumas, de nossas paixões. Se há
racionalidade nos processos eleitorais, no voto falta razão. Repito, uma
experiência de quatro séculos não se transforma em seu oposto em menos de um
século. Estamos mais inclinados a aceitar a senzala, a garantia do angu onibula
as incertezas de uma liberdade que precisa ser alcançada. O pobre para perder o
que não tem, abre mão de perder o que não está garantido.”
Embriagado,
com termos a nós desconhecidos, Antunes não falava coisa com coisa, mas evitava
que as discussões descambassem em agressões. As pessoas iam rindo-se dele, de
suas ideias de livros, e passavam a falar de futebol, mulheres, a última
bravata do presidente...
“Votar
em ideia é coisa de burguês, o pobre vota com os medos deles.” Antunes não
dizia coisa com coisa, já ninguém lhe dava ouvidos.
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