terça-feira, novembro 17, 2020

ESCRAVIDÃO

 

 

O Brasil dos colonizadores europeus foi construído por negros, mas sempre sonhou ser um país branco.

Laurentino Gomes

 

O texto que segue é uma violação de minha parte às primeiras páginas da obra de Laurentino Gomes: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, vol. 1. Eu me dei o direito (sei de meu abuso) de trocar de lugar alguns parágrafos, suprimir um ou outro termo, acrescentar uma ou outra expressão.  O teor da conclusão é nossa.

 

A escravidão é um fenômeno tão antigo quanto a própria história da humanidade. No mundo inteiro, desde a mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos da América, milhões de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Desde tempos imemoriais até muito recentemente, portanto, a captura, a venda e o cativeiro de gente foi parte da vida de quase todos os povos e sociedades. No entanto, nada foi tão volumoso, organizado, sistemático, cruel e prolongado quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio, promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos (Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos que dele participaram indiretamente. E, pela primeira vez, tornou a escravidão sinônimo da cor de pele negra, origem da segregação e do preconceito racial que ainda hoje assustam e perturbam a convivência entre as pessoas em muitos países, caso do Brasil e dos Estados Unidos.

A escravidão de africanos redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os indígenas, foram dizimados. Até 1820, para cada branco europeu que aportava no continente americano, chegavam outros quatro africanos cativos.

     No Brasil, a escravidão foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da Independência, em 1822.

O tráfico de africanos escravizados no Brasil começou por volta de 1535, algumas décadas depois da chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à Bahia, em 1500. Três séculos mais tarde, na época da Independência, praticamente todos os brasileiros livres eram donos de escravos, incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus próprios cativos. A presença de africanos nas ruas e lavouras brasileiras surpreendia os viajantes que por aqui passavam. No interior do país, eram agricultores, tropeiros, marinheiros, pescadores, vaqueiros, mineradores de ouro e diamante, capangas e seguranças de fazendas. Nas cidades, trabalhavam como empregados domésticos, sapateiros, marceneiros, vendedores ambulantes, carregadores de gente e mercadoria, açougueiros, entre muitas outras funções.

De tal modo, ao longo de mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e lançados nas engrenagens do tráfico negreiro.

No cativeiro separava pais e filhos, maridos e esposas, famílias e comunidades inteira que, na África, tinham convivido e compartilhado os mesmos costumes e crenças por muitas gerações. A identidade original do escravo era praticamente eliminada. Para trás ficavam seus laços familiares, suas convicções religiosas, seu status social, as memórias coletivas. Embarcados à força em um navio, transportados em condições degradantes para uma terra completamente estranha e que lhes era hostil, eram arrematados como mercadoria qualquer num leilão e forçados a trabalhar pelo resto de suas vidas sob o chicote e o tacão de seu senhor. Mas esta era a sina dos que chegavam vivos.

Quase a metade, entre 11 milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. E dos aproximados 12,5 milhões de cativos despachados nos porões dos navios, apenas 10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano. E dado o alto índice de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo ambiente de trabalho.

Na travessia oceânica morria-se de doenças como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de suicídio. Morria-se, de banzo, nome dado pelos africanos para o surto de depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas forças vitais se esvaíam no prazo de poucos dias. 

De sua extração abjeta à sua exploração desumana nas senzalas, nos engenhos, nas lavouras, os escravizados foram sempre explorados e tratados com brutal violência. E se oficialmente o suplicio acabou em 1888, o Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver o problema do escravizado. Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação, assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no país:

 

• Negros e pardos — classificação que inclui mulatos e uma ampla gama de mestiços — representam 54% da população brasileira, mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior, de 78%. Na faixa dos 1% mais ricos da população, a proporção inverte-se. Nesse restrito e privilegiado grupo, situado no topo da pirâmide de renda, somente 17,8% são descendentes de africanos.

• Na educação, enquanto 22,2% da população branca têm 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9,4% para a população negra. O índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era de 9,9%, mais que o dobro do índice entre os brancos. A brutal diferença se repete na taxa de desemprego, de 13,6% e 9,5%, respectivamente. Os negros no Brasil ganham em média R$ 1.570,00 por mês, enquanto a renda média entre os brancos é de R$ 2.814,00.

• Nos cursos superiores, em 2010, os negros representavam apenas 29% dos estudantes de mestrado e doutorado, 0,03% do total de aproximadamente 200 mil doutores nas mais diversas áreas do conhecimento14 e só 1,8% entre todos os professores da Universidade de São Paulo (USP).

• Um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. Afrodescendentes formam a maior parte da população carcerária e são mais expostos à criminalidade. São também a absoluta maioria entre os habitantes de bairros sem infraestrutura básica, como luz, saneamento, segurança, saúde e educação.

• Entre os 1.626 deputados distritais, estaduais, federais e senadores brasileiros eleitos em 2018, apenas 65 — menos de 4% do total — são negros. Incluindo os pardos, o número chega a 27%, ainda assim, proporcionalmente a metade da população brasileira total que se encaixa nessas duas classificações (54%). No Senado, a mais alta câmara legislativa do país, a proporção é ainda menor. Só três dos 81 senadores (3,7%) se declaram negros. Entre os governadores dos estados e do Distrito Federal, não há nenhum.17 E também nenhum entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, desde que Joaquim Barbosa se aposentou, em 2014.

• Nas quinhentas maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são ocupados por negros.

• Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões de alta qualificação, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professores de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%).

• Só 10% dos livros publicados no Brasil entre 1965 e 2014 são de autores negros. Entre os diretores de filmes nacionais produzidos de 2002 a 2012, apenas 2%.

 

A nossa história de desigualdades sociais é uma historia de desumanidade, dominada pela injustiça e opressão. E temos sido incapazes de resolver os obstáculos que nosso passado escravagista nos legou. Não obstante os avanços, ainda assistimos a permanência de seus vestígios, é recorrente o noticiário sobre pessoas submetidas a condições de trabalho análogas ao cativeiro, exploradas mediante o pagamento de salários irrisórios (ou nem isso), privadas da liberdade de ir e vir, em ambientes sórdidos ou insalubres que, muitas vezes, se assemelham aos das senzalas e dos engenhos de cana-de-açúcar do século XVII, submetidas a toda espécie de desrespeito, humilhação e truculência,  sobremodo de batidas policiais e execuções sumárias disfarçadas em balas perdidas e ocorrências isoladas de operações policiais.

 

 

Texto Original: Escravidão: Do primeiro leilão em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Laurentino Gomes. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2019

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