O Brasil dos colonizadores europeus
foi construído por negros, mas sempre sonhou ser um país branco.
Laurentino
Gomes
O texto que segue é uma violação de minha
parte às primeiras páginas da obra de Laurentino Gomes: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de
Zumbi dos Palmares, vol. 1. Eu me dei o direito (sei de meu abuso) de trocar
de lugar alguns parágrafos, suprimir um ou outro termo, acrescentar uma ou
outra expressão. O teor da conclusão é
nossa.
A escravidão é um fenômeno
tão antigo quanto a própria história da humanidade. No mundo inteiro, desde a
mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao
Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos
da América, milhões de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Desde
tempos imemoriais até muito recentemente, portanto, a captura, a venda e o
cativeiro de gente foi parte da vida de quase todos os povos e sociedades. No
entanto, nada foi tão volumoso, organizado, sistemático, cruel e prolongado
quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio,
promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos
(Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e
quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos
que dele participaram indiretamente. E, pela primeira vez, tornou a escravidão sinônimo
da cor de pele negra, origem da segregação e do preconceito racial que ainda
hoje assustam e perturbam a convivência entre as pessoas em muitos países, caso
do Brasil e dos Estados Unidos.
A escravidão de africanos
redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os
indígenas, foram dizimados. Até 1820, para cada branco europeu que aportava no
continente americano, chegavam outros quatro africanos cativos.
O tráfico de africanos
escravizados no Brasil começou por volta de 1535, algumas décadas depois da
chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à Bahia, em 1500. Três séculos mais
tarde, na época da Independência, praticamente todos os brasileiros livres eram
donos de escravos, incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus
próprios cativos. A presença de africanos nas ruas e lavouras brasileiras
surpreendia os viajantes que por aqui passavam. No interior do país, eram
agricultores, tropeiros, marinheiros, pescadores, vaqueiros, mineradores de
ouro e diamante, capangas e seguranças de fazendas. Nas cidades, trabalhavam
como empregados domésticos, sapateiros, marceneiros, vendedores ambulantes,
carregadores de gente e mercadoria, açougueiros, entre muitas outras funções.
De tal modo, ao longo de
mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido
arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e
lançados nas engrenagens do tráfico negreiro.
No cativeiro separava pais e
filhos, maridos e esposas, famílias e comunidades inteira que, na África, tinham
convivido e compartilhado os mesmos costumes e crenças por muitas gerações. A
identidade original do escravo era praticamente eliminada. Para trás ficavam
seus laços familiares, suas convicções religiosas, seu status social, as
memórias coletivas. Embarcados à força em um navio, transportados em condições
degradantes para uma terra completamente estranha e que lhes era hostil, eram arrematados
como mercadoria qualquer num leilão e forçados a trabalhar pelo resto de suas
vidas sob o chicote e o tacão de seu senhor. Mas esta era a sina dos que
chegavam vivos.
Quase a metade, entre 11
milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. E
dos aproximados 12,5 milhões de cativos despachados nos porões dos navios, apenas
10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano. E dado o alto índice
de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam
sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo
ambiente de trabalho.
Na travessia oceânica morria-se
de doenças como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de
suicídio. Morria-se, de banzo, nome dado pelos africanos para o surto de
depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava
de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas
forças vitais se esvaíam no prazo de poucos dias.
De sua extração abjeta à sua
exploração desumana nas senzalas, nos engenhos, nas lavouras, os escravizados
foram sempre explorados e tratados com brutal violência. E se oficialmente o
suplicio acabou em 1888, o Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver o
problema do escravizado. Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus
descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca
tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação,
assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca
foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a
respeito da profunda e perigosa desigualdade social no país:
• Negros e pardos — classificação que inclui
mulatos e uma ampla gama de mestiços — representam 54% da população brasileira,
mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior, de 78%. Na faixa
dos 1% mais ricos da população, a proporção inverte-se. Nesse restrito e
privilegiado grupo, situado no topo da pirâmide de renda, somente 17,8% são
descendentes de africanos.
• Na educação, enquanto 22,2% da população
branca têm 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9,4% para a população negra.
O índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era de 9,9%, mais que o dobro
do índice entre os brancos. A brutal diferença se repete na taxa de desemprego,
de 13,6% e 9,5%, respectivamente. Os negros no Brasil ganham em média R$
1.570,00 por mês, enquanto a renda média entre os brancos é de R$ 2.814,00.
• Nos cursos superiores, em 2010, os negros
representavam apenas 29% dos estudantes de mestrado e doutorado, 0,03% do total
de aproximadamente 200 mil doutores nas mais diversas áreas do conhecimento14 e
só 1,8% entre todos os professores da Universidade de São Paulo (USP).
• Um homem negro tem oito vezes mais chances
de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. Afrodescendentes
formam a maior parte da população carcerária e são mais expostos à
criminalidade. São também a absoluta maioria entre os habitantes de bairros sem
infraestrutura básica, como luz, saneamento, segurança, saúde e educação.
• Entre os 1.626 deputados distritais,
estaduais, federais e senadores brasileiros eleitos em 2018, apenas 65 — menos
de 4% do total — são negros. Incluindo os pardos, o número chega a 27%, ainda
assim, proporcionalmente a metade da população brasileira total que se encaixa
nessas duas classificações (54%). No Senado, a mais alta câmara legislativa do
país, a proporção é ainda menor. Só três dos 81 senadores (3,7%) se declaram
negros. Entre os governadores dos estados e do Distrito Federal, não há
nenhum.17 E também nenhum entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, desde
que Joaquim Barbosa se aposentou, em 2014.
• Nas quinhentas maiores empresas que operam
no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são
ocupados por negros.
• Os brancos são também a esmagadora maioria
em profissões de alta qualificação, como engenheiros (90%), pilotos de
aeronaves (88%), professores de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados
(79%).
• Só 10% dos livros publicados no Brasil
entre 1965 e 2014 são de autores negros. Entre os diretores de filmes nacionais
produzidos de 2002 a 2012, apenas 2%.
A nossa história de
desigualdades sociais é uma historia de desumanidade, dominada pela injustiça e
opressão. E temos sido incapazes de resolver os obstáculos que nosso passado
escravagista nos legou. Não obstante os avanços, ainda assistimos a permanência
de seus vestígios, é recorrente o noticiário sobre pessoas submetidas a
condições de trabalho análogas ao cativeiro, exploradas mediante o pagamento de
salários irrisórios (ou nem isso), privadas da liberdade de ir e vir, em
ambientes sórdidos ou insalubres que, muitas vezes, se assemelham aos das
senzalas e dos engenhos de cana-de-açúcar do século XVII, submetidas a toda espécie
de desrespeito, humilhação e truculência, sobremodo de batidas policiais e execuções
sumárias disfarçadas em balas perdidas e ocorrências isoladas de operações
policiais.
Texto Original: Escravidão: Do primeiro leilão em Portugal até a morte de Zumbi dos
Palmares. Laurentino Gomes. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2019
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