quarta-feira, novembro 25, 2020

NOSSO COMBATE É AO RACISMO. NÃO COMBATEMOS PESSOAS

 Só aquele que não vê a sua escravidão é escravo, mesmo quando feliz na sua condição. (Emmanuel Mounier)

 

O racismo não é sinônimo para branco. Nem todo branco é racista. A luta antirracista não atinge toda pessoa negra. Nem todo negro é antirracista. O racismo é um produto social, que nasce como modelo explicativo da desigualdade social, fundado na superioridade de raças e se torna uma prática perversa de desqualificação das pessoas a ponto de as tornarem invisíveis ou descartáveis. Como produto social e estruturante de uma sociedade, atinge todos os seus membros em todas as suas relações. Vejamos.

A pessoa só existe à medida que existe com e para os outros. A pessoa não se basta sozinha, nem social, nem espiritual, nem intelectualmente. Nossa subjetividade é uma construção social. De tal modo, somos fruto da socialização, das relações sociais, econômicas, culturais que caracterizam o arco histórico em que vivemos. Nascemos no mundo, abertos, não determinados. Mas dele recebemos as ideias, os valores, os preconceitos, as justificações que condicionam nosso existir. O que nos diferenciará será a capacidade ou não de não apenas absorve-los, mas refletir, criticar, reelaborar, assumir ou rejeitar esta ou aquela ideia, este ou aquele valor ou preconceito. Mas, a princípio, todos nós somos por eles atingidos. Afinal, eles nos são passados desde o primeiro choro. E estão implícitos nos olhares, nas inflexões de voz, nas expressões faciais, e, sobre modo nos discursos articulados nos púlpitos, nos bancos escolares, nas tribunas...

Sem vida social não somos, e somos o que a vida social nos permite ser. Sem essa consciência não a mudamos a sociedade, se a desejamos mudar; não nos mudamos, se desejamos nos mudar.

Daí a importância de sabermos como nossa sociedade se estrutura.

Nossa sociedade se fundou na escravidão e a escravidão é o elemento constitutivo de nossas relações sociais. E como tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, evitamos perceber seus efeitos e sua continuada presença entre nós. Quando dela falamos, segundo Jessé Souza, falamos como se fosse um nome, um termo, e não um fato concreto, uma realidade ainda latente entre nós.

Nós brasileiros, diz Jessé Souza, “somos filhos de um ambiente de escravocrata, que cria um tipo de família específica, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.” (SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. 2017, p.219). E “até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.” (Idem). E desse modo, “a escravidão e o ódio ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso cotidiano.” (Idem, p. 251). Assim, persiste entre nós quem se delicie com o prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos.

O racismo nasce do escravismo. E porque ideias, valores, preconceitos, justificativas não são patrimônios particulares, circunscritos a ambientes próprios, mas circulam por todos os estratos sociais, eles estão presentes também na empregada doméstica, “aquela que é abusada de mil formas”, e nos trabalhadores sem qualificação, “aqueles que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qualquer preço e sob qualquer condição”, nos bolsões de trabalhadores informais e desempregados, que reproduzem o discurso negacionista daqueles que preferem apagar de nossa história nosso evento fundador: a escravidão e fazem circular o discurso meritocrático, que basta esforço e empreendedorismo pessoal para superar as adversidades. Por inúmeros fatores, em que se destaca a formação, assumem uma posição passiva ou conformada, quando não, de aberto contraste com as lutas antirracista. Na outra ponta, personalidades que se destacam, também atribuem irrefletidamente, ao talento natural ou ao mérito as posições que assumiram.  

Assim, a mera presença de pessoas das camadas populares e das minorias sociais em posição de poder e destaque não é suficiente para combater o racismo. Representa avanços. No entanto, entre esses há aqueles que contribuem com o discurso negacionista que tenta apagar a escravidão de nossa história.

Não são indivíduos que mudam a sociedade é a sociedade, que mudando, produz pessoas capazes de a transformar. Não há, porém, transformação sem conflito.

 

 

 

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