Só aquele que não vê a sua escravidão é escravo, mesmo quando feliz na sua condição. (Emmanuel Mounier)
O racismo não é sinônimo
para branco. Nem todo branco é racista. A luta antirracista não atinge toda
pessoa negra. Nem todo negro é antirracista. O racismo é um produto social, que
nasce como modelo explicativo da desigualdade social, fundado na superioridade
de raças e se torna uma prática perversa de desqualificação das pessoas a ponto
de as tornarem invisíveis ou descartáveis. Como produto social e estruturante
de uma sociedade, atinge todos os seus membros em todas as suas relações.
Vejamos.
A pessoa só existe à medida
que existe com e para os outros. A pessoa não se basta sozinha, nem social, nem
espiritual, nem intelectualmente. Nossa subjetividade é uma construção social. De
tal modo, somos fruto da socialização, das relações sociais, econômicas,
culturais que caracterizam o arco histórico em que vivemos. Nascemos no mundo,
abertos, não determinados. Mas dele recebemos as ideias, os valores, os
preconceitos, as justificações que condicionam nosso existir. O que nos
diferenciará será a capacidade ou não de não apenas absorve-los, mas refletir,
criticar, reelaborar, assumir ou rejeitar esta ou aquela ideia, este ou aquele
valor ou preconceito. Mas, a princípio, todos nós somos por eles atingidos.
Afinal, eles nos são passados desde o primeiro choro. E estão implícitos nos
olhares, nas inflexões de voz, nas expressões faciais, e, sobre modo nos discursos
articulados nos púlpitos, nos bancos escolares, nas tribunas...
Sem vida social não somos, e
somos o que a vida social nos permite ser. Sem essa consciência não a mudamos a
sociedade, se a desejamos mudar; não nos mudamos, se desejamos nos mudar.
Daí a importância de
sabermos como nossa sociedade se estrutura.
Nossa sociedade se fundou na escravidão e a
escravidão é o elemento constitutivo de nossas relações sociais. E como
tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, evitamos perceber
seus efeitos e sua continuada presença entre nós. Quando dela falamos, segundo
Jessé Souza, falamos como se fosse um nome, um termo, e não um fato concreto,
uma realidade ainda latente entre nós.
Nós brasileiros, diz Jessé
Souza, “somos filhos de um ambiente de escravocrata, que cria um tipo de
família específica, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia
tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje,
e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.” (SOUZA,
Jessé. A Elite do Atraso. 2017, p.219). E “até hoje, reproduzimos padrões de
sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência
indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são
comemoradas pela população, etc.” (Idem). E desse modo, “a escravidão e o ódio
ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso
cotidiano.” (Idem, p. 251). Assim, persiste entre nós quem se delicie com o
prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos.
O racismo nasce do
escravismo. E porque ideias, valores, preconceitos, justificativas não são
patrimônios particulares, circunscritos a ambientes próprios, mas circulam por
todos os estratos sociais, eles estão presentes também na empregada doméstica, “aquela
que é abusada de mil formas”, e nos trabalhadores sem qualificação, “aqueles
que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qualquer preço e
sob qualquer condição”, nos bolsões de trabalhadores informais e desempregados,
que reproduzem o discurso negacionista daqueles que preferem apagar de nossa
história nosso evento fundador: a escravidão e fazem circular o discurso meritocrático,
que basta esforço e empreendedorismo pessoal para superar as adversidades. Por inúmeros
fatores, em que se destaca a formação, assumem uma posição passiva ou
conformada, quando não, de aberto contraste com as lutas antirracista. Na outra
ponta, personalidades que se destacam, também atribuem irrefletidamente, ao
talento natural ou ao mérito as posições que assumiram.
Assim, a mera presença de
pessoas das camadas populares e das minorias sociais em posição de poder e
destaque não é suficiente para combater o racismo. Representa avanços. No entanto,
entre esses há aqueles que contribuem com o discurso negacionista que tenta
apagar a escravidão de nossa história.
Não são indivíduos que mudam
a sociedade é a sociedade, que mudando, produz pessoas capazes de a
transformar. Não há, porém, transformação sem conflito.
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