Ensinava Zé Toco, técnico do glorioso 7 de setembro Futebol Clube, que o resultado de uma partida deve ser analisada segundo a escalação dos times. “Time que entra com reservas em campo, não entra pra ganha. Entra para, no mínimo segurar, o resultado. Quem tem a disposição um Roderval no time e começa a partida com Ronaldinho Pé chato, não entrou no jogo para ganhar.” Comentavam a derrota do Santa Cruz para o Vila Júlia. E alguém lembrou: Foi o Roderval quem pediu para não jogar. “Meus amigos”, retrucou Zé Toco, “tem disso não, Roderval está para o time, não o time para Roderval. É como o Carpegiani abrir mão do Zico, e escalar um da base. Não tem lógica. Precisando ganhar, se entra em campo com os melhores, e, se necessário, no sacrifício... Quando se dispensa a estrela do time, por uma estaca - vamos combinar, uma estaca se movimenta mais que Ronaldinho Pé chato – se jogou para cumprir tabela.” “Mas o Santa Cruz não esperava perder. Esta derrota lhe vai complicar”, comentou Pimentinha. “Só se não puder contar com Roderval para as próximas partidas”, disse Zé Toco. “O receio da torcida é justo este, uma contusão, uma suspensão, como a do Ludiano no torneio passado, quando a coisa for decisiva”, opinou o Suares. “É, o Santa Cruz não pode descartar esta hipótese, juiz mão grande é o que não falta”, assentiu Zé Toco: “Tiana, desce outra cachaça pra mim e pros compadres aqui”, ordenou...
segunda-feira, novembro 30, 2020
domingo, novembro 29, 2020
NÃO TENHO UM PROJETO PARA MEUS FILHOS, QUERO ENSINÁ-LOS A SE PROJETAREM
No futuro vou ensinar a meus filhos a história de sua mãe. Será uma história, a princípio, mítica. A mãe será, então, ora deusa, ora heroína, e o mundo seu reinado de amor incondicionado. Vou desenhar para meus filhos imagens de mistério e encanto. À medida que eles forem entrando na idade da razão vou lhes ensinando a mãe com os critérios de humanidade, para que eles a entendam não apenas como um papel social, mas como ser transcendendo qualquer determinação. Não os apressarei de uma passagem à outra. Vou contar-lhes também a história dos avôs: serão totens, anciões sagrados, homens sábios. Vou ensinar a meus filhos o amor e a sabedoria das avós. Ensinar-lhes-ei a dor e a morte como caminhos sagrados, porque é mistério. Vou ensinar a meus filhos os tios e tias. Então, vou contar-lhes a história destes grandes homens e mulheres: Geraldo, Luciene, Marco A Senna, Lidiane, Cristine Dutra, Zulene, Marco Maida, Lygia, Elvis... Marcos de humanidade, que muito contribuíram para a formação de meu espírito e para uma cultura que ainda virá. Quero que meus filhos saibam deles como heróis e como pessoas encarnadas de ideais eternos. São “Quixotes” e “Franciscos”, “Zumbis de morte Severina”, como diz o poema. São homens e mulheres que batalham e lutam por um mundo plural, diverso, comunitário, que quero ensinar para meus filhos. Quero ensinar-lhes o que há de melhor, para que em seus futuros eles tenham de onde partir para suas escolhas mais fundamentais. No futuro vou ensinar para meus filhos o voou que compete só a eles dar. Vou ensinar a meus filhos, na idade certa, que é preciso torna-se adulto e amadurecer e caminhar resoluto, fronte erguida, mas, serena, sem arrogância. Quero que meus filhos vençam não com as armas e os punhos cerrados, mas com as mãos estendidas e solidarias. Não tenho planos futuros para meus filhos. No futuro quero que meus filhos se projetem com os valores que hei de lhes ensinar.
sábado, novembro 28, 2020
SOBRE A AÇÃO PEDAGÓGICA
Por Claudio Domingos Fernandes
Cume da educação é a educação moral: quem o
nega não é homem, não é digno da humanidade. P. Giovanni Minozzi
Quando entramos em um
processo pedagógico, mesmo que de qualificação profissional, não esperamos que
as pessoas que nele estão, enquanto formandos, o terminem médicos, advogados,
professores, políticos..., embora a formação vise uma qualificação específica.
O que sustenta um projeto pedagógico são os princípios de uma formação ampla,
profunda, radicada na formação humana.
O que vale para uma
qualificação específica tem maior relevância quando tratamos da formação
inicial dos seres humanos, que tem um caráter geral... O processo pedagógico inicial visa uma
formação geral, oferecendo os instrumentos – a alfabetização, o domínio da leitura
e da escrita, a apreensão dos conhecimentos disciplinares, – para a
pluripossibilidades de qualificações específicas, sem perder de vista a
formação integral.
A nós, no ensino básico, não
importa, a princípio, se a pessoa com quem nos relacionamos em nossas
disciplinas será médico, dentista, engenheiro, deputado, padre ou pastor; isto
será uma escolha pessoal. Para nós interessa que esta pessoa apreenda um
conjunto de saberes que lhe será necessário para conduzir-se no convívio
social, constituindo interações propositivas. Em toda formação específica o fio
orientador são os princípios éticos de humanização das práticas profissionais,
em que o bom médico, ou bom advogado, ou o bom eletricista ou padre ou pastor,
seja também uma boa pessoa, isto é, além do domínio profissional, tenha um reto
caráter. Esperamos que além de bom juiz, bom professor, bom político, no
sentido técnico-profissional, seja boa em sentido ético. Assim, não ensinamos
as pessoas a serem bons profissionais, isto dependerá de suas práticas, das
experiências que irão adquirir no exercício de suas profissões, no quanto se
empenharão aprimorando-se, as ensinamos, mesmo quando a ensinamos a extrair um
dente ou a retornar um troco, a serem pessoas integras, respeitadas, reconhecidas.
No ensino básico é isto que
importa quando lhes transmitimos nossos saberes disciplinares, não queremos
gramáticos, químicos, filósofos..., não queremos que dominem a língua
estrangeira à perfeição ou saiam atletas de ponta, não é esta a função do
ensino básico. Além da formação para a cidadania e para o trabalho, é a
formação para ser integra e integral que orienta nossa ação pedagógica, que
norteia nossas praticas na escola. Este ensino não o fazemos com nossos
saberes, o fazemos com nossas atitudes, com o modo como vivenciamos o que
ensinamos...
Assim, em cada uma das
etapas do processo pedagógico as pessoas nele envolvido não assumem apenas categorias
cognitivas e epistemológicas, assumem compromissos éticos, que fundamentam suas
experiências de vida e seu ensinar.
É neste sentido que, em toda
relação pedagógica, e principalmente no ensino básico, “o educador deve
inspirar respeito, confiança e segurança no aluno; deve ter uma personalidade [amadurecida],
superior, generosa e simpática, verdadeiramente fascinante, que atraia vocações”
(Pe Giovanni Minozzi).
sexta-feira, novembro 27, 2020
DESEJO DE TORNAR-SE K
Para Tomás Amorim Isabel
Se se tornasse ao menos K, logo pronto despertando certa manhã de sonhos agitados, como uma criança, em um corredor escuro, abandonaria a porta da lei, não existem leis, se resignaria à maquinaria burocrática, contra os tribunais não é mais possível defesa, veria se diante do pai “irradiando a mais aguda perspicácia”, já o monstruoso inseto não teria pescoço nem qualquer cabeça...
Não Obstante
Vejo-te o que não és,
na função que ocupas.
Vejo-te burocracia, mando,
metas
Em teu bom dia,
a cobrança de planilhas
e relatórios à primeira linha
me inerva.
Mas sei que sorris e choras
Que sonhas e esperas e desejas
amas e odeias
e brincas com os cães e gatos
e regas as floreiras
falando bobeiras
A que conheço,
mesmo que me exaspere,
entendo e respeito
um burocrático:
bom dia
desejo.
A outra, que desconheço,
não fossem as formalidades,
Cobria de beijos.
quinta-feira, novembro 26, 2020
FÍLIPI
Para Fílipi Lima
EDUCAR PARA SER PESSOA
Por Claudio Domingos Fernandes
El hombre es hombre porque reconoce su dignidad y la
de lós demás. Karl Jaspers
A pessoa é uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas. Ela não existe senão em relação com os outros, não conhece a si mesma senão pelos outros, não se encontra senão nos outros. Sua primeira experiência é o acolhimento no seio materno, o seu primeiro olhar é o mirar de um olhar que a mira. A pessoa nasce neste primeiro acolhimento, nesta primeira e recíproca mirada.
A pessoa não é uma coisa, um objeto, um algo. Não é um que, é um quem numa teia de relações condicionando-a, sem determiná-la. Destinada a grandes realizações, a inscrever seu ser na história por atos e palavras, a pessoa está propensa também a devaneios, delírios, sandices. Amor, paixão, culpa, pena, raiva, bondade, compaixão, ódio, medos, esperanças, camaradagens e traições manifestam o humano em cada pessoa sem o encerrar. A mão que acaricia, esbofeteia. O beijo que sela uma amizade, também entrega o companheiro. Num dia oferecemos flores, no outro descarregamos as armas. Por isso o existir exige leis, normas, saberes, educação. Bussolas que orientem o existi.
Educar não é ensinar a ter um bom emprego, uma carreira de sucesso. Educar é ensinar a ser pessoa, deixando amadurecer o equilíbrio, a co-vivência. Não é o número de respostas certas num gabarito que afere a qualidade da educação. Sãos as escolhas que um faz, se tal escolha não o reduz e o encerra em si mesmo, em seus interesses, mas o abre e o direciona à presença dos outros. Somos pessoas se os que nos rodeiam se humanizam e nos humanizam co-responsivamente. Quando o primeiro acolhimento, a primeira mirada, deixa de ser eu-tu e torna-se nós, um Nós estendido a todos os homens e mulheres, a Educação se efetiva.
quarta-feira, novembro 25, 2020
NOSSO COMBATE É AO RACISMO. NÃO COMBATEMOS PESSOAS
Só aquele que não vê a sua escravidão é escravo, mesmo quando feliz na sua condição. (Emmanuel Mounier)
O racismo não é sinônimo
para branco. Nem todo branco é racista. A luta antirracista não atinge toda
pessoa negra. Nem todo negro é antirracista. O racismo é um produto social, que
nasce como modelo explicativo da desigualdade social, fundado na superioridade
de raças e se torna uma prática perversa de desqualificação das pessoas a ponto
de as tornarem invisíveis ou descartáveis. Como produto social e estruturante
de uma sociedade, atinge todos os seus membros em todas as suas relações.
Vejamos.
A pessoa só existe à medida
que existe com e para os outros. A pessoa não se basta sozinha, nem social, nem
espiritual, nem intelectualmente. Nossa subjetividade é uma construção social. De
tal modo, somos fruto da socialização, das relações sociais, econômicas,
culturais que caracterizam o arco histórico em que vivemos. Nascemos no mundo,
abertos, não determinados. Mas dele recebemos as ideias, os valores, os
preconceitos, as justificações que condicionam nosso existir. O que nos
diferenciará será a capacidade ou não de não apenas absorve-los, mas refletir,
criticar, reelaborar, assumir ou rejeitar esta ou aquela ideia, este ou aquele
valor ou preconceito. Mas, a princípio, todos nós somos por eles atingidos.
Afinal, eles nos são passados desde o primeiro choro. E estão implícitos nos
olhares, nas inflexões de voz, nas expressões faciais, e, sobre modo nos discursos
articulados nos púlpitos, nos bancos escolares, nas tribunas...
Sem vida social não somos, e
somos o que a vida social nos permite ser. Sem essa consciência não a mudamos a
sociedade, se a desejamos mudar; não nos mudamos, se desejamos nos mudar.
Daí a importância de
sabermos como nossa sociedade se estrutura.
Nossa sociedade se fundou na escravidão e a
escravidão é o elemento constitutivo de nossas relações sociais. E como
tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, evitamos perceber
seus efeitos e sua continuada presença entre nós. Quando dela falamos, segundo
Jessé Souza, falamos como se fosse um nome, um termo, e não um fato concreto,
uma realidade ainda latente entre nós.
Nós brasileiros, diz Jessé
Souza, “somos filhos de um ambiente de escravocrata, que cria um tipo de
família específica, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia
tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje,
e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.” (SOUZA,
Jessé. A Elite do Atraso. 2017, p.219). E “até hoje, reproduzimos padrões de
sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência
indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são
comemoradas pela população, etc.” (Idem). E desse modo, “a escravidão e o ódio
ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso
cotidiano.” (Idem, p. 251). Assim, persiste entre nós quem se delicie com o
prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos.
O racismo nasce do
escravismo. E porque ideias, valores, preconceitos, justificativas não são
patrimônios particulares, circunscritos a ambientes próprios, mas circulam por
todos os estratos sociais, eles estão presentes também na empregada doméstica, “aquela
que é abusada de mil formas”, e nos trabalhadores sem qualificação, “aqueles
que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qualquer preço e
sob qualquer condição”, nos bolsões de trabalhadores informais e desempregados,
que reproduzem o discurso negacionista daqueles que preferem apagar de nossa
história nosso evento fundador: a escravidão e fazem circular o discurso meritocrático,
que basta esforço e empreendedorismo pessoal para superar as adversidades. Por inúmeros
fatores, em que se destaca a formação, assumem uma posição passiva ou
conformada, quando não, de aberto contraste com as lutas antirracista. Na outra
ponta, personalidades que se destacam, também atribuem irrefletidamente, ao
talento natural ou ao mérito as posições que assumiram.
Assim, a mera presença de
pessoas das camadas populares e das minorias sociais em posição de poder e
destaque não é suficiente para combater o racismo. Representa avanços. No entanto,
entre esses há aqueles que contribuem com o discurso negacionista que tenta
apagar a escravidão de nossa história.
Não são indivíduos que mudam
a sociedade é a sociedade, que mudando, produz pessoas capazes de a
transformar. Não há, porém, transformação sem conflito.
terça-feira, novembro 24, 2020
KU ZAO
Subíamos a Mesquita Figueira. Já perto de casa, paramos num bar para um cerveja. Um sujeito entrou na nossa cola, nos mediu com olhar rude. Pediu uma “quente” e uma cerveja. Nós nos instalamos numa mesa ao canto. Numa próxima, de frente, ele nos encarava. Achei melhor pagarmos a conta. “Gui”, disse: “o clima não é dos melhores”. O tipo mal encarado levantou de imediato: “o que você disse ai?”. “Disse nada não, senhor!” respondi com receio. “Não, não! Eu ouvi bem! Você falou de mim!” “Estava falando comigo”, disse Gui com rispidez, “e não é da sua conta.” “Olha aqui vadias, aqui é um lugar de família, de gente de bem”. “Moço”, disse Gui, “nós notamos, por isso, já estamos indo!” “Moço não, Desembargador! Preto, vagabundo e bicha, eu mando é prender!” “Cidadão de bem; homofóbico; machista e racista, para um combo completo só falta ser bolsonarista”, disse Gui. “Vou descer a porrada, vou descer a porrada!” “Ku Zao”, gritou alguém na porta do bar, “olha o Maguila!” O sujeito se encolheu todo, chegou a mijar nas calças ao ouvir “Olha o Maguila!” “Maguila”, explicou-nos a senhora que gritara da porta do bar, “havia dado uma sova neste tipo, semanas antes.” “Todo Ku Zao, vez ou outra, precisava cruzar com um Maguila”, concluiu Gui. “Eles se cagam, mas não se emendam”, retorquiu a senhora que nos pagou a conta.
domingo, novembro 22, 2020
CONTRA O RACISMO A RADICALIDADE
"O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa" - Luiz Gama
Por
que uma vidraça tem mais valor que um corpo preto?
Porque
desde que aqui chegou, arrancado de sua terra e transportado como coisa, o
africano foi recebido a chicotada e marcado a ferro em brasa. Coisa entre coisa
foi tratado. Sangrado, chicoteado, extenuado de sua força trabalho e de sua
vida, foi ensinado que a propriedade roubada aos nativos tinha mais valor que
sua vida roubada em África. Propriedades roubadas tem mais valor que nós,
corpos-coisas. Nos ensinaram que somos corpos de menos preço que vidraças. Nos
ensinaram que vidraças são propriedade e propriedade é valor insofismável. De corpos se desfazem, de
propriedades não. Desde cedo, aprendemos que propriedades valem mais que vidas.
É um direito inalienável. Corpos negros são descartáveis. Desde Cabral a
Bolsonaro, houve e há uma sistemática defesa da propriedade, mesmo que roubada,
e desqualificação da vida, principalmente em pele preta. O que nos esconderam é
que as vidraças escondem a riqueza que é fruto de roubo de propriedades e de
vidas, que em toda vidraça protegida se reflete o rosto de populações nativas
desapropriadas de suas terras, exterminado por doenças trazidas do outro lado
do Atlântico, principalmente a ganância, não nos ensinam nas escolas que as
vidraças que tanto protegemos refletem o rosto negro sangrado extenuado, sem
vida, assassinado a chicote em nome da propriedade roubada. Não nos dizem que toda
riqueza é fruto do roubo de terras indígenas e de vidas negras. Eles preferem
falar de mérito. É o sangue nativo e o sangue africano que sustentam as
vidraças. Isto nos escondem na escola, nos jornais, nas novelas. Sistemáticamente
nos ensinam a amar a propriedade e a riqueza e a matar “corpos-coisas”, vidas
negras. Está na hora de impor outro ensino:
vidas pretas importam, vidas nativas importam. Está na hora de derrubar toda
vidraça erguida com o sangue de nativos e africanos. Está na hora de impor contra o racismo a
radicalidade. E como é muito lembrado numa frase do Malcolm X: derrubar
vidraças não é violência é resistência, é resiliência, isto é, recuperar a
dignidade que nos é roubada.
ZAIRA
Para a Família Senna
“O reino de Deus é como um grão de
mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra;
Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende
ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” ( Mc
4. 30-32)
Uma árvore boa não pode dar frutos
ruins. (Mt 7, 18)
Semente
semeada pelo Divino Semeador, Zaira é árvore nobre, de raízes profundas, tronco
vigoroso, copa frondosa, sobranceira. Suas folhas e flores vicejam mesmo nas
adversidades e em sombrios tempos. Seus frutos têm o aroma e a suculência
daquela humanidade que, um dia, havemos de alcançar. Zaíra, entre os teus
sempre encontrei onde me aninhar. Hás de, não obstante o momento, ofertar-nos
tua graça e presença.
SELMA
Para Selma Amorim Maida
Aparecem flores na terra, e
chegou o tempo de cantar (Livro dos Cânticos 2, 12)
Para que o mundo não seja
sem sentido, e para que não percamos a esperança. Para os dias difíceis e as
épocas sombrias, Deus nos deu as flores.
Flores nos atraem o olhar,
abre-nos o sorriso, conforta-nos, traz-nos paz. Um ambiente com flores alegra-o,
um jardim florido convida-nos ao sossego, e, em sua exuberância, a nos
reencontrar com nós mesmos.
Onde há flores há vida, há
festa, há alegria, amizade sincera, amor. Onde há flor a esperança acampa.
Selma é flor singela, de uma
especial sensibilidade. É flor resistente à rudez, à sombridade que nos
assedia. Seu sorriso acolhe, sua
presença conforta e anima. Selma não nasce em jardins ou se sustenta em vasos.
Selma é flor de coração, se plantou em meu ser.
sexta-feira, novembro 20, 2020
quinta-feira, novembro 19, 2020
CARTA PARA RITA MARIA
Cara Rita Maria
Em
nosso tempo tornou-se tênue os limites entre a cantada e o assédio, já quase
não distinguimos sedução e abuso na relação. Há coisas que são claras, bem sei:
não é não! Conversa encerrada! Na incerteza, esperando um sim e não o não ou um
processo, digo-te sem rodeios: à tua presença, desabo, o coração dispara, as
pernas tremem, transpiro, perco a fala. Quando a tua fragrância, antecedendo-te,
assume o elevador, sufoco-me, tenho vertigens. E à tua voz, vindo lá do
corredor, coro, falta-me o ar, engasgo-me. Não falo de teu olhar, de teu
sorriso, do fio de cabelo deixado no apontamento. Em tudo de ti me perco. Gostaria
de dizer-te estas coisas sussurradas e misturadas a vulgaridades em teus
ouvidos, enquanto lambisco teu pescoço ao pé da orelha. Quero poder perder-me
em ti, beijar-te loucamente, e correr teu corpo a ponta de língua, brincar em
teus peitos com essas tuas amoras rijas, enquanto tu afloras em meus dedos a
flor úmida de desejo. Quero desmaiar em teu gozo e, despertar ao teu lado e
cobrir-te de beijos. Tudo o que te digo soa piegas e talvez seja. Só espero não
ser abusivo. Espero apenas que entendas: Sonho com teu gozo e, depois,
abraçadas, sorrindo-nos de prazer. Se disseres não, deixo de ser.
Espero
não estar te assediando
Clara
Heloisa (do RH)
quarta-feira, novembro 18, 2020
POR QUE CELEBRAR ZUMBI DE PALMARES?
Claudio Domingos Fernandes
Palmares
é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros fugidos dos
engenhos de açúcar ou de vilas organizaram-se para si mesmos, na forma de uma
economia solidária e uma sociedade igualitária. (Darcy Ribeiro. O Povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
1997, pp. 173)
... Olha só
aquele clube que da hora,/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora/ .../ Ele
apenas sonha através do muro... (Racionais MC´s: Fim de Semana no Parque)
Ainda há quem coloque a questão sobre o porquê celebrar Zumbi
de Palmares. Alguns veem em tal celebração uma afronta, outros, revanchismo. Há
quem desdenhe e há quem pense em vitimismo. O certo é que Zumbi, Palmares,
ainda assombram nossa sociedade patriarcal e escravista. A título de pontuar o
porquê das comemorações de Zumbi de Palmares e da Semana da Consciência Negra,
o presente texto acompanha a obra de Lilia M. Scwarcz e Heloisa M. Starling, Brasil Uma Biografia. Não o seguiremos,
porém, de forma literal. Procuramos explicitar, algumas vezes, o não dito nos
relatos das autoras.
Então, por que celebrar Zumbi de Palmares?
Porque em 300 anos milhões de homens e mulheres não viajaram
espontaneamente de suas terras com o fito de povoarem outras terras pelo mundo.
Não! Foram brutalmente extraídos de seu solo, foram, como animais, encerrados
em porões de navios e traficados como mercadoria-moeda num negócio que
subsidiou o nascente capitalismo. E o Brasil recebeu 40% dos africanos
impiedosamente arrancados de suas terras. Cerca de 4 milhões de homens e
mulheres aqui aportaram para servirem de
mercadoria e maquina, trabalhando em
regime de escravidão.
Esses homens e mulheres, os que resistiram a longa travessia
marítima, aqui foram marcados pela água do batismo e pelo ferro em brasa. Tiveram
elos culturais e familiares rompidos. Foram extorquidos do próprio corpo,
tornado propriedade coisa-moeda de Senhores de engenho. E sob açoite, sevicia e
castigos de toda sorte, produziram as riquezas de seus senhores e serviram como
instrumento de prazer e gozo sádicos desses mesmos senhores. Muitos morreram de
exaustão, subnutrição, tortura, suicídio. É em memória deste povo vilipendiado
e impiedosamente massacrado que se celebra Zumbi de Palmares.
Porque a escravidão enraizou-se de tal forma que deixou de
ser privilégio de grandes senhores de engenho. “Padres, militares, funcionários
públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e
remediados e até libertos possuíam escravos...” A escravidão “moldou condutas,
definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças
fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência” e criou uma sociedade
condicionada pelo paternalismo e por um patriarcalismo obtuso, mesquinho,
impiedoso. Nossa elite é uma horda de sádicos...
Quando
não mais serviam, pois o sistema econômico passou a exigir nova forma de produção
e de mão de obra, homens, mulheres, crianças, idosos, doentes foram libertados
e abandonados à própria sorte sem instrução, sem direito à terra, sem direitos
políticos, sem assistência econômica, e carregados de injurias e preconceitos.
E, após cem anos de sua liberação, “ainda são pouco numerosos os seguimentos da
“população de cor” que conseguem se integrar, efetivamente, na sociedade
competitiva e nas classes sociais que a compõem”. E para não se enfrentarem os
problemas decorrentes da destituição do escravo e da espoliação final de que
foi vítima o antigo agente de trabalho, se criou um expediente intelectual: a
ideia da ‘democracia racial’.
Ainda hoje, “quanto mais escura a pele do
brasileiro, da brasileira, mais se sente o fosso de nossas desigualdades e as
marcas ingentes da violência institucional e do sadismo de determinados segmentos
sociais.”
Porque
há um extermínio sistemático de nossa gente nas periferias e porque se persegue
indisfarçadamente adeptos das religiões de matriz africana, e se procura
impedir nosso acesso à universidade pública. Por tudo isso, celebramos Zumbi de
Palmares.
Zumbi
de Palmares não é um herói; é um símbolo de resistência, de luta, de denuncia
contra o que persiste de preconceituoso e odioso contra os homens e mulheres de
pele escura e contra as manifestações religiosas e culturais de matriz africana.
Celebrar
Zumbi, comemorar a Semana de Consciência Negra é recordar que, não obstante
todas as adversidades, todo desrespeito a sua dignidade, todo sofrimento
sofrido, os extraviados de suas terras e traficados como mercadoria não se
renderam à barbárie e ao sadismo de seus senhores. E fizeram mais do que apenas
sobreviver, organizaram-se, lutaram e estabeleceram um espaço em que se pode
sonhar com liberdade e resgate de sua identidade. Palmares foi uma brecha de
esperança aberta no coração do sofrimento imposto pelo sistema escravista. “Para
fugir da condição de “peça” [coisa-moeda-objeto sádico], os escravizados
procuraram nas brechas do sistema espaços para recriar suas culturas,
[cultivar] desejos, sonhar com a liberdade e com a reação”, restabelecer seus
laços com seus orixás e ancestrais, dar-se a dignidade roubada. “Jamais abriram
mão de serem agentes e senhores de suas vidas... [E] a resistência escrava deu
origem a mocambos ou quilombos...”
Celebrar
Zumbi de Palmares é reviver está brecha e anunciar a esperança de construirmos
uma nação livre do preconceito e das injurias contra os homens e mulheres por
causa da cor de suas peles.
Palmares
foi o maior e mais persistente quilombo e significou uma alternativa concreta à
ordem escravista... “Tornou-se um problema real e bastante amedrontador para o
[escravismo colonial e para as autoridades, e precisava ser combatido...” A
queda de Palmares e a execução de seu maior líder, Zumbi, serviram às
autoridades coloniais de ontem e serve aos autoritários de hoje como modelo
para a repressão e o sujeitamento das camadas mais pobres de nossa nação. A
degola de Zumbi ilustra o que ocorre aos que reagem à sádica exploração, não
apenas econômica, da grande massa de brasileiros e brasileiras.
Aos
que negam ao trabalhador condições dignas de trabalho, direitos
constitucionais, liberdade de reivindicar respeito às suas crenças e tradições
culturais, reconhecimento econômico e favorecimento de acesso à formação de
qualidade, celebrar Zumbi não é incompreensível: é uma afronta; uma ameaça.
Para
os milhares de homens e mulheres, ainda que não saibam – ainda hoje extorquidos
de seus corpos, de seus sonhos, de seus desejos, espezinhados, ridicularizados,
humilhados, por uma elite econômica, política e religiosa, patriarcal, mesquinha,
tosca –, Palmares e seu líder maior Zumbi se converteram em luta por inclusão
social, conquista de direito, resgate de identidade cultural de respeito a seus
cultos, desejo de uma sociedade menos desigual.
Enquanto
houver injustiça, enquanto os homens e mulheres de nossas classes populares se
sentirem ameaçados, intimidados, desrespeitados por sua cor de pele e por suas
tradições religiosas, por suas manifestações culturais, que viva Zumbi!; e que se faça memória de Palmares.
Em
resumo, celebrar Zumbi é manter viva a história de dor e sofrimento de homens e
mulheres que não viajaram por vontade própria, mas, feito mercadoria, foram
desterrados e tornados escravos em terras que não eram sua. Não podemos
esconder o sangue que se derramou para alimentar os sonhos de riqueza e poder
de nosso patronato e nossa elite política. Não podemos esconder que ainda se
derrama sangue em nossas periferias e a vitima são nossos filhos. Para nós celebrar
Zumbi de Palmares é, como dizem Mano Brown e Edy Rocky, produzir “um raio X do
Brasil”.
O PORQUÊ DA SEMANA CONSCIÊNCIA NEGRA?
Por Claudio Domingos Fernandes
Embora
se coadunem, a celebração em honra a Zumbi de Palmares e a Semana de
Consciência Negra se distinguem.
Tratarei aqui da Semana de Consciência Negra.
I
Se
você acha que CONSCIÊNCIA é um conceito simples, você está enganado, não
é. Para Hegel, por exemplo, ela é, no
desenvolvimento do Espírito Absoluto, resultado da luta entre Senhor-servo por
reconhecimento. Em Marx, a superação da
luta de classe em que burguesia e proletariado se empenham em dominar os meios
de produção material, e, é preciso ressaltar, intelectual. E em Freud, a
consciência se dá do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, e das
instâncias de controle dos instintos sexuais e de agressividade, na instituição
da Civilização. A citação resumidíssima
desses autores é apenas para ilustrar que o conceito de consciência não é
simples e não é hegemônico, requer, portanto, reflexão. O comum entre estes e
outros autores é que a consciência não é um algo dado e acabado, ela se
desenvolve e passa por estágios. Daí se poder falar de consciência ingênua, de
falsa consciência e se cobrar Consciência, apreensão da realidade
problematizada, destacando nossa condição no mundo...
II
É verdade, as pessoas
não nascem racistas. Mas se se tornam é porque o racismo existe. E reconhecer
sua existência é o primeiro passo para combatê-lo.
Ildes
Comparato
O racismo é a
pretensão de ser superior a uma pessoa ou grupo humano, devido sua etnia. E tal
pretensão te leva ao ponto de submeter a pessoa ou grupo humano a seus
caprichos e descartá-los como se descarta um objeto inutilizado. É uma doença
do ego.
Josias
Capello
A expressão
"consciência negra" foi cunhada pelo ator político anti-colonialista,
Sul Africano, Steve Biko. Steve Biko tinha 30 anos, quando foi preso, torturado
e assassinado pelo Apartheid em 12 de
setembro de 1977. Ainda estudante de medicina, ele criou a Organização dos
Estudantes Sul-Africanos (SASO, em língua inglesa).
Na África do Sul, o
movimento de Biko reclama o reconhecimento do racismo, fundado na
desvalorização social de homens e mulheres, submetidos a um regime de opressão.
Para ele este é o primeiro passo no caminho da superação do racismo. Ele
destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura,
pela educação, pela religião e pela política, combatendo formas e manifestações
de racismo.
Para Biko a dominação não se
dá apenas de forma política, e ou nas estruturas do judiciário. Sua maior
incidência se dá no campo das ideias, dos valores, das ideologias. De tal modo,
segundo ele "a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido.” Ele
acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso
desconstruir o discurso de desprestigio contra o homem e a mulher negra,
criando uma ideia oposta, de força e orgulho negro. Para Biko o confronto do
racismo com a consciência negra produziria uma síntese mais humana, construindo
um país igual entre negros e brancos.
Assim a consciência negra
não propõe um confronto entre pessoas, mas entre mentalidades, de um lado a
racista e colonizadora e de outro a da valorização e emancipação do oprimido,
marcado pela pigmentação de sua pele.
O movimento de Biko e suas
ideias irão reverberar no Brasil já na década de 1970. E em julho de 1978, com
o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro passa a
ser um dia de combate ao racismo. 20 de novembro recorda a morte de Zumbi de
Palmares em 1695. Neste gesto, o movimento negro brasileiro elege a luta do
Quilombo dos Palmares como gancho para a reflexão acerca do tratamento de desprestigio
e desrespeito dispensados a homens e mulheres no Brasil devido a pigmentação de
sua pele.
O Dia nacional da
Consciência Negra nos chama a atenção para o fato de que, ainda hoje, pessoas
são destratadas, humilhadas e até mortas devido a pigmentação de sua pele. O entendimento desse sistema de
desvalorização do ser humano segundo a pigmentação de sua pele e das
consequências que ele acarreta como exclusão social, marginalização e criminalização
arbitrária de pessoas e de comunidades é um passo necessário para superarmos
nossas contradições.
Nem todo homem
branco, nem toda mulher branca é racista e, por isso, os não racistas não
deveriam se incomodar com o dia de consciência negra. Pois, o dia
de consciência negra não é um combate ao homem branco ou à mulher branca, é um
combate ao racismo nas estruturas de poder, em instituições e entre aqueles e
aquelas que destratam, humilham, marginalizam, criminalizam e executam
arbitrariamente pessoas, devido sua etnia ou pigmentação de pele.
Para Steve Biko
“O princípio básico da Consciência Negra é que o homem negro deve rejeitar
todos os sistemas de valores que buscam torná-lo um estrangeiro em seu país
natal e reduzir sua dignidade humana básica.”
III
Agora, se você acha que o
termo negro, negra, tem algo a ver com raça e ou cultura, você não está errado,
mas se você pensa que ele se refere à distinção dos homens entre brancos e
negros, atribuindo negro à cor da pele, você se engana.
Numa sociedade, como a
nossa, dividida por uma elite econômica detentora dos meios de produção
material e intelectual, atribuindo-se privilégios políticos, restringindo a si
o acesso à alta cultura e à produção do conhecimento acadêmico e cientifico de
ponta, enquanto do outro lado uma extensa massa de assalariados
e trabalhadores informais
apertam cada vez
mais seus diminutos ganhos
para garantirem-se o
essencial às necessidades,
negro, negra é todo aquele, aquela, que alijados de condições dignas de
moradia, de saúde, de educação, que empobrecidos, são humilhados
e responsabilizados por
seu “fracasso social”.
Assim a Semana de
Consciência Negra não trata apenas de racismo, na sua redução Homens brancos X
Homens de pele escura. Ela debate a violência contra mulher: o assédio, a
agressão verbal, física, a imposição de uma estética, de controle sobre seu
corpo; a responsabilização da vítima pela violência sofrida. Ela debate
intolerância religiosa, lembrando que nenhuma manifestação religiosa no Brasil
congrega, em caráter exclusivo, apenas homens e ou mulheres de uma ou outra
tonalidade de pele. Em todas as denominações religiosas sejam elas ocidentais,
orientais ou de matriz africana, o matiz das peles se confundem e se encontram.
No caso, então, deste embate o foco é a liberdade de expressão religiosa. Ela
debate a violência simbólica que vitimiza, criminaliza e executa nossos jovens
em nossas periferias. Debate, por fim, a educação, a cultura e os produtos
culturais a disposição e ao alcance de nossos jovens, as oportunidades de
inserção nas universidades, em melhores postos de trabalho e nas esferas
representativas de poder, etc.
IV
É certo que, e isto é uma
constatação, os indicadores sociais
apontam, que quanto mais escura a pele do indivíduo
mais ele é sujeitado ao
desmando das forças econômicas,
políticas, das elites
culturais e religiosas,
mas se você é assalariado, se você está no mercado
informal sem garantia trabalhista alguma (isto não é empreendedorismo), se você
está desempregado, se você precisa sempre
adiar a obtenção
de um bem, se você
não dorme tranquilo/a
porque não sabe se seu filho está ou não sujeitado ao crime
organizado ou sobre a mira da arma da milícia
uniformizada, apenas por morar na periferia, se você não tem os princípios constitucionais fundamentais
garantidos: SAÚDE, EDUCAÇÃO, MORADIA,
LAZER, TRABALHO DEVIDAMENTE REMUNERADO, SANEAMENTO
BÁSICO, ASSISTÊNCIA SOCIAL
(o maiúsculo não é despropositado), você, independente da cor de sua
pele, você é negro, negra.
Se você, independente de sua
pele, pensa: “o que vão achar? Vão me ridicularizar? Vão me perseguir, apedrejar?”,
quando você coloca o seu terno ou o seu abadá, ou o seu véu ou burca, para ir
celebrar suas convicções religiosas, você é NEGRO, NEGRA. Se você se sente desconfortada com o assédio,
com a violência simbólica, verbal, física contra seu corpo, independente da cor
de sua pele, você é negro/a...
Numa sociedade divida entre uma
elite abestada, apequenada moralmente em seu reduto de méritos e privilégios,
dada à arrogância e ao direito de humilhar a massa de ingentes trabalhadores e
desempregados, que, empobrecidos, dependem das políticas sociais, o conflito
que se estabelece entre estes poucos abastados e a turba de pauperizados se
justifica. E a Semana de Consciência Negra torna-se, nesse embate, não apenas
reflexão acerca das relações e condições de vida dessa massa ingente a que
pertencemos; torna-se voz de denuncia, de resistência, de luta por superação de
tamanha e condenável dicotomia. Neste sentido, uma semana não basta.
ANTUNES NÃO SABE O QUE DIZ
“À vida, à existência, se sobrepõe a História.” (Euripedes dos Santos)
No
comércio de pai tinha lá um tipo que estava sempre com livro ou uma revista
debaixo do braço, Antunes. Depois do terceiro ou quarto gole de cachaça, abandonava
livro ou revista de canto, e ficava a cantarolar Bezerra da Silva, acompanhado
de uma caixa de fósforo. Das revistas (Playboy, Ele Ela, Penthouse), pai dava
conta depressa de tirar de vista. Bom proseador, Antunes gostava de acompanhar
os debates sobre futebol, política e mulher, comuns entre os fregueses de
pai. Todo cerimonioso, interrompia uma
ou outra discussão mais acalorada: “Me desculpa, posso participar minha
ignorância com um pitaco?” E começava:
“Esquerda
e direita é coisa de quem tem estudo, tempo e dinheiro. Pobre não tem
ideologia, pobre padece necessidades. A única coisa que diferencia um de
direita de um de esquerda é que, se deixar, o da direita restaura a escravidão,
o da esquerda sindicaliza todo mundo... Mas o que mais aflige o pobre é perder
o que não tem. Ele vive sob a mira da polícia, do bandido, da milícia, mas teme
o aumento da violência; ele mal aluga um barraco quarto e cozinha, mas teme
perder a casa que não tem. Mas este medo não é dele, é que o pobre é um ser
solidário, ele se solidariza com temores alheios. O voto do pobre expressa medo,
não interesse. Não é porque ganha a cesta básica que o pobre vota em A ou B,
ele vota em A ou B, por medo de que o patrão, a patroa, perdendo, ele também
perca. São os medos do patrão que orientam o voto do operário... Em política o
ato presente tem suas origens em eventos passados. O escravismo é o fundamento
de nossos costumes, de nossos sentimentos de nossas ideias, de nossas
instituições. Uma experiência de quatro séculos não se apaga do caráter de um
povo em duas ou três décadas. Um não é responsável por seus instintos, nem por
seus traumas. Em nossas escolhas não entra apenas a razão, somos também seres
passionais. Mais que de nossas vontades e anseios, as urnas falam de nossos
medos, de nossos instintos, de nossos traumas, de nossas paixões. Se há
racionalidade nos processos eleitorais, no voto falta razão. Repito, uma
experiência de quatro séculos não se transforma em seu oposto em menos de um
século. Estamos mais inclinados a aceitar a senzala, a garantia do angu onibula
as incertezas de uma liberdade que precisa ser alcançada. O pobre para perder o
que não tem, abre mão de perder o que não está garantido.”
Embriagado,
com termos a nós desconhecidos, Antunes não falava coisa com coisa, mas evitava
que as discussões descambassem em agressões. As pessoas iam rindo-se dele, de
suas ideias de livros, e passavam a falar de futebol, mulheres, a última
bravata do presidente...
“Votar
em ideia é coisa de burguês, o pobre vota com os medos deles.” Antunes não
dizia coisa com coisa, já ninguém lhe dava ouvidos.
terça-feira, novembro 17, 2020
Hoje eu fui ao mercado. As mesmas promoções de sempre. Os mesmos produtos de sempre, nas mesmas gôndolas de sempre. Tinha lá um produto em embalagem nova, de uma marca de sempre, trazia um brinde. Comprei pelo brinde. Me decepcionei! Tal o produto, o brinde era fora de prazo. "Quem espera doçura em limão, só tem que fazer careta", dizia minha avó. Das urnas não saem mudanças. Ilude-se quem quer...
SAMBINHA
Eu fiz este sambinha cadenciado
E desentoado
Pra gente,
juntinhos,
corpos
embolados
Lábios
selados
Sambar
de madrugada
Este
sambinha desafinado
Desritimado
Meio
bobo
Sem rima
Sem nexo
Eu
fiz pra me abandonar
Acalantado
em teu
Gozar...
ESCRAVIDÃO
O Brasil dos colonizadores europeus
foi construído por negros, mas sempre sonhou ser um país branco.
Laurentino
Gomes
O texto que segue é uma violação de minha
parte às primeiras páginas da obra de Laurentino Gomes: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de
Zumbi dos Palmares, vol. 1. Eu me dei o direito (sei de meu abuso) de trocar
de lugar alguns parágrafos, suprimir um ou outro termo, acrescentar uma ou
outra expressão. O teor da conclusão é
nossa.
A escravidão é um fenômeno
tão antigo quanto a própria história da humanidade. No mundo inteiro, desde a
mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao
Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos
da América, milhões de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Desde
tempos imemoriais até muito recentemente, portanto, a captura, a venda e o
cativeiro de gente foi parte da vida de quase todos os povos e sociedades. No
entanto, nada foi tão volumoso, organizado, sistemático, cruel e prolongado
quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio,
promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos
(Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e
quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos
que dele participaram indiretamente. E, pela primeira vez, tornou a escravidão sinônimo
da cor de pele negra, origem da segregação e do preconceito racial que ainda
hoje assustam e perturbam a convivência entre as pessoas em muitos países, caso
do Brasil e dos Estados Unidos.
A escravidão de africanos
redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os
indígenas, foram dizimados. Até 1820, para cada branco europeu que aportava no
continente americano, chegavam outros quatro africanos cativos.
O tráfico de africanos
escravizados no Brasil começou por volta de 1535, algumas décadas depois da
chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à Bahia, em 1500. Três séculos mais
tarde, na época da Independência, praticamente todos os brasileiros livres eram
donos de escravos, incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus
próprios cativos. A presença de africanos nas ruas e lavouras brasileiras
surpreendia os viajantes que por aqui passavam. No interior do país, eram
agricultores, tropeiros, marinheiros, pescadores, vaqueiros, mineradores de
ouro e diamante, capangas e seguranças de fazendas. Nas cidades, trabalhavam
como empregados domésticos, sapateiros, marceneiros, vendedores ambulantes,
carregadores de gente e mercadoria, açougueiros, entre muitas outras funções.
De tal modo, ao longo de
mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido
arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e
lançados nas engrenagens do tráfico negreiro.
No cativeiro separava pais e
filhos, maridos e esposas, famílias e comunidades inteira que, na África, tinham
convivido e compartilhado os mesmos costumes e crenças por muitas gerações. A
identidade original do escravo era praticamente eliminada. Para trás ficavam
seus laços familiares, suas convicções religiosas, seu status social, as
memórias coletivas. Embarcados à força em um navio, transportados em condições
degradantes para uma terra completamente estranha e que lhes era hostil, eram arrematados
como mercadoria qualquer num leilão e forçados a trabalhar pelo resto de suas
vidas sob o chicote e o tacão de seu senhor. Mas esta era a sina dos que
chegavam vivos.
Quase a metade, entre 11
milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. E
dos aproximados 12,5 milhões de cativos despachados nos porões dos navios, apenas
10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano. E dado o alto índice
de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam
sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo
ambiente de trabalho.
Na travessia oceânica morria-se
de doenças como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de
suicídio. Morria-se, de banzo, nome dado pelos africanos para o surto de
depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava
de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas
forças vitais se esvaíam no prazo de poucos dias.
De sua extração abjeta à sua
exploração desumana nas senzalas, nos engenhos, nas lavouras, os escravizados
foram sempre explorados e tratados com brutal violência. E se oficialmente o
suplicio acabou em 1888, o Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver o
problema do escravizado. Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus
descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca
tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação,
assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca
foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a
respeito da profunda e perigosa desigualdade social no país:
• Negros e pardos — classificação que inclui
mulatos e uma ampla gama de mestiços — representam 54% da população brasileira,
mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior, de 78%. Na faixa
dos 1% mais ricos da população, a proporção inverte-se. Nesse restrito e
privilegiado grupo, situado no topo da pirâmide de renda, somente 17,8% são
descendentes de africanos.
• Na educação, enquanto 22,2% da população
branca têm 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9,4% para a população negra.
O índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era de 9,9%, mais que o dobro
do índice entre os brancos. A brutal diferença se repete na taxa de desemprego,
de 13,6% e 9,5%, respectivamente. Os negros no Brasil ganham em média R$
1.570,00 por mês, enquanto a renda média entre os brancos é de R$ 2.814,00.
• Nos cursos superiores, em 2010, os negros
representavam apenas 29% dos estudantes de mestrado e doutorado, 0,03% do total
de aproximadamente 200 mil doutores nas mais diversas áreas do conhecimento14 e
só 1,8% entre todos os professores da Universidade de São Paulo (USP).
• Um homem negro tem oito vezes mais chances
de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. Afrodescendentes
formam a maior parte da população carcerária e são mais expostos à
criminalidade. São também a absoluta maioria entre os habitantes de bairros sem
infraestrutura básica, como luz, saneamento, segurança, saúde e educação.
• Entre os 1.626 deputados distritais,
estaduais, federais e senadores brasileiros eleitos em 2018, apenas 65 — menos
de 4% do total — são negros. Incluindo os pardos, o número chega a 27%, ainda
assim, proporcionalmente a metade da população brasileira total que se encaixa
nessas duas classificações (54%). No Senado, a mais alta câmara legislativa do
país, a proporção é ainda menor. Só três dos 81 senadores (3,7%) se declaram
negros. Entre os governadores dos estados e do Distrito Federal, não há
nenhum.17 E também nenhum entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, desde
que Joaquim Barbosa se aposentou, em 2014.
• Nas quinhentas maiores empresas que operam
no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são
ocupados por negros.
• Os brancos são também a esmagadora maioria
em profissões de alta qualificação, como engenheiros (90%), pilotos de
aeronaves (88%), professores de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados
(79%).
• Só 10% dos livros publicados no Brasil
entre 1965 e 2014 são de autores negros. Entre os diretores de filmes nacionais
produzidos de 2002 a 2012, apenas 2%.
A nossa história de
desigualdades sociais é uma historia de desumanidade, dominada pela injustiça e
opressão. E temos sido incapazes de resolver os obstáculos que nosso passado
escravagista nos legou. Não obstante os avanços, ainda assistimos a permanência
de seus vestígios, é recorrente o noticiário sobre pessoas submetidas a
condições de trabalho análogas ao cativeiro, exploradas mediante o pagamento de
salários irrisórios (ou nem isso), privadas da liberdade de ir e vir, em
ambientes sórdidos ou insalubres que, muitas vezes, se assemelham aos das
senzalas e dos engenhos de cana-de-açúcar do século XVII, submetidas a toda espécie
de desrespeito, humilhação e truculência, sobremodo de batidas policiais e execuções
sumárias disfarçadas em balas perdidas e ocorrências isoladas de operações
policiais.
Texto Original: Escravidão: Do primeiro leilão em Portugal até a morte de Zumbi dos
Palmares. Laurentino Gomes. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2019