segunda-feira, novembro 30, 2020

NÃO É DE FUTEBOL QUE SE TRATA

Ensinava Zé Toco, técnico do glorioso 7 de setembro Futebol Clube, que o resultado de uma partida deve ser analisada segundo a escalação dos times. “Time que entra com reservas em campo, não entra pra ganha. Entra para, no mínimo segurar, o resultado. Quem tem a disposição um Roderval no time e começa a partida com Ronaldinho Pé chato, não entrou no jogo para ganhar.” Comentavam a derrota do Santa Cruz para o Vila Júlia. E alguém lembrou: Foi o Roderval quem pediu para não jogar. “Meus amigos”, retrucou Zé Toco, “tem disso não, Roderval está para o time, não o time para Roderval.  É como o Carpegiani abrir mão do Zico, e escalar um da base. Não tem lógica. Precisando ganhar, se entra em campo com os melhores, e, se necessário, no sacrifício...  Quando se dispensa a estrela do time, por uma estaca - vamos combinar, uma estaca se movimenta mais que Ronaldinho Pé chato – se jogou para cumprir tabela.” “Mas o Santa Cruz não esperava perder. Esta derrota lhe vai complicar”, comentou Pimentinha. “Só se não puder contar com Roderval para as próximas partidas”, disse Zé Toco. “O receio da torcida é justo este, uma contusão, uma suspensão, como a do Ludiano no torneio passado, quando a coisa for decisiva”, opinou o Suares. “É, o Santa Cruz não pode descartar esta hipótese, juiz mão grande é o que não falta”, assentiu Zé Toco: “Tiana, desce outra cachaça pra mim e pros compadres aqui”, ordenou...

domingo, novembro 29, 2020

NÃO TENHO UM PROJETO PARA MEUS FILHOS, QUERO ENSINÁ-LOS A SE PROJETAREM

No futuro vou ensinar a meus filhos a história de sua mãe. Será uma história, a princípio, mítica. A mãe será, então, ora deusa, ora heroína, e o mundo seu reinado de amor incondicionado. Vou desenhar para meus filhos imagens de mistério e encanto. À medida que eles forem entrando na idade da razão vou lhes ensinando a mãe com os critérios de humanidade, para que eles a entendam não apenas como um papel social, mas como ser transcendendo qualquer determinação. Não os apressarei de uma passagem à outra. Vou contar-lhes também a história dos avôs: serão totens, anciões sagrados, homens sábios. Vou ensinar a meus filhos o amor e a sabedoria das avós. Ensinar-lhes-ei a dor e a morte como caminhos sagrados, porque é mistério.  Vou ensinar a meus filhos os tios e tias. Então, vou contar-lhes a história destes grandes homens e mulheres: Geraldo, Luciene, Marco A Senna, Lidiane, Cristine Dutra, Zulene, Marco Maida, Lygia, Elvis... Marcos de humanidade, que muito contribuíram para a formação de meu espírito e para uma cultura que ainda virá. Quero que meus filhos saibam deles como heróis e como pessoas encarnadas de ideais eternos. São “Quixotes” e “Franciscos”, “Zumbis de morte Severina”, como diz o poema. São homens e mulheres que batalham e lutam por um mundo plural, diverso, comunitário, que quero ensinar para meus filhos. Quero ensinar-lhes o que há de melhor, para que em seus futuros eles tenham de onde partir para suas escolhas mais fundamentais. No futuro vou ensinar para meus filhos o voou que compete só a eles dar. Vou ensinar a meus filhos, na idade certa, que é preciso torna-se adulto e amadurecer e caminhar resoluto, fronte erguida, mas, serena, sem arrogância. Quero que meus filhos vençam não com as armas e os punhos cerrados, mas com as mãos estendidas e solidarias. Não tenho planos futuros para meus filhos. No futuro quero que meus filhos se projetem com os valores que hei de lhes ensinar.


sábado, novembro 28, 2020

SOBRE A AÇÃO PEDAGÓGICA

 Por Claudio Domingos Fernandes

 

Cume da educação é a educação moral: quem o nega não é homem, não é digno da humanidade. P. Giovanni Minozzi

          A reflexão que segue é fruto de minha convivência junto à Família dos Discípulos. Nela estão aprendizados colhidos dos mestres Don Giorgio Giunta, Don Mario Natalini e Don Carmine Mosca, com os quais enriqueci-me, estou em débito  e nutro profunda estima.

Quando entramos em um processo pedagógico, mesmo que de qualificação profissional, não esperamos que as pessoas que nele estão, enquanto formandos, o terminem médicos, advogados, professores, políticos..., embora a formação vise uma qualificação específica. O que sustenta um projeto pedagógico são os princípios de uma formação ampla, profunda, radicada na formação humana.

O que vale para uma qualificação específica tem maior relevância quando tratamos da formação inicial dos seres humanos, que tem um caráter geral...  O processo pedagógico inicial visa uma formação geral, oferecendo os instrumentos – a alfabetização, o domínio da leitura e da escrita, a apreensão dos conhecimentos disciplinares, – para a pluripossibilidades de qualificações específicas, sem perder de vista a formação integral.

A nós, no ensino básico, não importa, a princípio, se a pessoa com quem nos relacionamos em nossas disciplinas será médico, dentista, engenheiro, deputado, padre ou pastor; isto será uma escolha pessoal. Para nós interessa que esta pessoa apreenda um conjunto de saberes que lhe será necessário para conduzir-se no convívio social, constituindo interações propositivas. Em toda formação específica o fio orientador são os princípios éticos de humanização das práticas profissionais, em que o bom médico, ou bom advogado, ou o bom eletricista ou padre ou pastor, seja também uma boa pessoa, isto é, além do domínio profissional, tenha um reto caráter. Esperamos que além de bom juiz, bom professor, bom político, no sentido técnico-profissional, seja boa em sentido ético. Assim, não ensinamos as pessoas a serem bons profissionais, isto dependerá de suas práticas, das experiências que irão adquirir no exercício de suas profissões, no quanto se empenharão aprimorando-se, as ensinamos, mesmo quando a ensinamos a extrair um dente ou a retornar um troco, a serem pessoas integras, respeitadas, reconhecidas.

No ensino básico é isto que importa quando lhes transmitimos nossos saberes disciplinares, não queremos gramáticos, químicos, filósofos..., não queremos que dominem a língua estrangeira à perfeição ou saiam atletas de ponta, não é esta a função do ensino básico. Além da formação para a cidadania e para o trabalho, é a formação para ser integra e integral que orienta nossa ação pedagógica, que norteia nossas praticas na escola. Este ensino não o fazemos com nossos saberes, o fazemos com nossas atitudes, com o modo como vivenciamos o que ensinamos...

Assim, em cada uma das etapas do processo pedagógico as pessoas nele envolvido não assumem apenas categorias cognitivas e epistemológicas, assumem compromissos éticos, que fundamentam suas experiências de vida e seu ensinar.

É neste sentido que, em toda relação pedagógica, e principalmente no ensino básico, “o educador deve inspirar respeito, confiança e segurança no aluno; deve ter uma personalidade [amadurecida], superior, generosa e simpática, verdadeiramente fascinante, que atraia vocações” (Pe Giovanni Minozzi).

sexta-feira, novembro 27, 2020

DESEJO DE TORNAR-SE K

 Para Tomás Amorim Isabel

Se se tornasse ao menos K, logo pronto despertando certa manhã de sonhos agitados, como uma criança, em um corredor escuro, abandonaria a porta da lei, não existem leis, se resignaria à maquinaria burocrática, contra os tribunais não é mais possível defesa, veria se diante do pai “irradiando a mais aguda perspicácia”, já o monstruoso inseto não teria pescoço nem qualquer cabeça...

Não Obstante

Vejo-te o que não és,

na função que ocupas.

Vejo-te burocracia, mando,

metas

Em teu bom dia,

a cobrança de planilhas

e relatórios à primeira linha

me inerva.

Mas sei que sorris e choras

Que sonhas e esperas e desejas

amas e odeias

e brincas com os cães e gatos

e regas as floreiras

falando bobeiras

A que conheço,

mesmo que me exaspere,

entendo e respeito

 um burocrático: bom dia

desejo.

A outra, que desconheço,

não fossem as formalidades,

Cobria de beijos.

quinta-feira, novembro 26, 2020

FÍLIPI

Para Fílipi Lima

Eu conheci um menino
curioso, mas
intrometido que só
e todo precipitado
Tínhamos que
lhe lembrar sempre:
calma; é aprendizado
Que lindo
este menino
tem se tornado
Não nós
mas
Manu
tem lhe ensinado.

EDUCAR PARA SER PESSOA

 Por Claudio Domingos Fernandes

 

El hombre es hombre porque reconoce su dignidad y la de lós demás. Karl Jaspers

 

A pessoa é uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas. Ela não existe senão em relação com os outros, não conhece a si mesma senão pelos outros, não se encontra senão nos outros. Sua primeira experiência é o acolhimento no seio materno, o seu primeiro olhar é o mirar de um olhar que a mira. A pessoa nasce neste primeiro acolhimento, nesta primeira e recíproca mirada.

A pessoa não é uma coisa, um objeto, um algo. Não é um que, é um quem numa teia de relações condicionando-a, sem determiná-la. Destinada a grandes realizações, a inscrever seu ser na história por atos e palavras, a pessoa está propensa também a devaneios, delírios, sandices. Amor, paixão, culpa, pena, raiva, bondade, compaixão, ódio, medos, esperanças, camaradagens e traições manifestam o humano em cada pessoa sem o encerrar. A mão que acaricia, esbofeteia. O beijo que sela uma amizade, também entrega o companheiro. Num dia oferecemos flores, no outro descarregamos as armas. Por isso o existir exige leis, normas, saberes, educação. Bussolas que orientem o existi.

Educar não é ensinar a ter um bom emprego, uma carreira de sucesso. Educar é ensinar a ser pessoa, deixando amadurecer o equilíbrio,  a co-vivência. Não é o número de respostas certas num gabarito que afere a qualidade da educação. Sãos as escolhas que um faz, se tal escolha não o reduz e o encerra em si mesmo, em seus interesses, mas o abre e o direciona à presença dos outros. Somos pessoas se os que nos rodeiam se humanizam e nos humanizam co-responsivamente. Quando o primeiro acolhimento, a primeira mirada, deixa de ser eu-tu e torna-se nós, um Nós estendido a todos os homens e mulheres, a Educação se efetiva.

quarta-feira, novembro 25, 2020

NOSSO COMBATE É AO RACISMO. NÃO COMBATEMOS PESSOAS

 Só aquele que não vê a sua escravidão é escravo, mesmo quando feliz na sua condição. (Emmanuel Mounier)

 

O racismo não é sinônimo para branco. Nem todo branco é racista. A luta antirracista não atinge toda pessoa negra. Nem todo negro é antirracista. O racismo é um produto social, que nasce como modelo explicativo da desigualdade social, fundado na superioridade de raças e se torna uma prática perversa de desqualificação das pessoas a ponto de as tornarem invisíveis ou descartáveis. Como produto social e estruturante de uma sociedade, atinge todos os seus membros em todas as suas relações. Vejamos.

A pessoa só existe à medida que existe com e para os outros. A pessoa não se basta sozinha, nem social, nem espiritual, nem intelectualmente. Nossa subjetividade é uma construção social. De tal modo, somos fruto da socialização, das relações sociais, econômicas, culturais que caracterizam o arco histórico em que vivemos. Nascemos no mundo, abertos, não determinados. Mas dele recebemos as ideias, os valores, os preconceitos, as justificações que condicionam nosso existir. O que nos diferenciará será a capacidade ou não de não apenas absorve-los, mas refletir, criticar, reelaborar, assumir ou rejeitar esta ou aquela ideia, este ou aquele valor ou preconceito. Mas, a princípio, todos nós somos por eles atingidos. Afinal, eles nos são passados desde o primeiro choro. E estão implícitos nos olhares, nas inflexões de voz, nas expressões faciais, e, sobre modo nos discursos articulados nos púlpitos, nos bancos escolares, nas tribunas...

Sem vida social não somos, e somos o que a vida social nos permite ser. Sem essa consciência não a mudamos a sociedade, se a desejamos mudar; não nos mudamos, se desejamos nos mudar.

Daí a importância de sabermos como nossa sociedade se estrutura.

Nossa sociedade se fundou na escravidão e a escravidão é o elemento constitutivo de nossas relações sociais. E como tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, evitamos perceber seus efeitos e sua continuada presença entre nós. Quando dela falamos, segundo Jessé Souza, falamos como se fosse um nome, um termo, e não um fato concreto, uma realidade ainda latente entre nós.

Nós brasileiros, diz Jessé Souza, “somos filhos de um ambiente de escravocrata, que cria um tipo de família específica, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.” (SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. 2017, p.219). E “até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.” (Idem). E desse modo, “a escravidão e o ódio ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso cotidiano.” (Idem, p. 251). Assim, persiste entre nós quem se delicie com o prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos.

O racismo nasce do escravismo. E porque ideias, valores, preconceitos, justificativas não são patrimônios particulares, circunscritos a ambientes próprios, mas circulam por todos os estratos sociais, eles estão presentes também na empregada doméstica, “aquela que é abusada de mil formas”, e nos trabalhadores sem qualificação, “aqueles que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qualquer preço e sob qualquer condição”, nos bolsões de trabalhadores informais e desempregados, que reproduzem o discurso negacionista daqueles que preferem apagar de nossa história nosso evento fundador: a escravidão e fazem circular o discurso meritocrático, que basta esforço e empreendedorismo pessoal para superar as adversidades. Por inúmeros fatores, em que se destaca a formação, assumem uma posição passiva ou conformada, quando não, de aberto contraste com as lutas antirracista. Na outra ponta, personalidades que se destacam, também atribuem irrefletidamente, ao talento natural ou ao mérito as posições que assumiram.  

Assim, a mera presença de pessoas das camadas populares e das minorias sociais em posição de poder e destaque não é suficiente para combater o racismo. Representa avanços. No entanto, entre esses há aqueles que contribuem com o discurso negacionista que tenta apagar a escravidão de nossa história.

Não são indivíduos que mudam a sociedade é a sociedade, que mudando, produz pessoas capazes de a transformar. Não há, porém, transformação sem conflito.

 

 

 

terça-feira, novembro 24, 2020

KU ZAO

Subíamos a Mesquita Figueira. Já perto de casa, paramos num bar para um cerveja. Um sujeito entrou na nossa cola, nos mediu com olhar rude. Pediu uma “quente” e uma cerveja. Nós nos instalamos numa mesa ao canto. Numa próxima, de frente, ele nos encarava. Achei melhor pagarmos a conta. “Gui”, disse: “o clima não é dos melhores”. O tipo mal encarado levantou de imediato: “o que você disse ai?”. “Disse nada não, senhor!” respondi com receio. “Não, não! Eu ouvi bem! Você falou de mim!” “Estava falando comigo”, disse Gui com rispidez, “e não é da sua conta.” “Olha aqui vadias, aqui é um lugar de família, de gente de bem”. “Moço”, disse Gui, “nós notamos, por isso, já estamos indo!” “Moço não, Desembargador! Preto, vagabundo e bicha, eu mando é prender!” “Cidadão de bem; homofóbico; machista e racista, para um combo completo só falta ser bolsonarista”, disse Gui. “Vou descer a porrada, vou descer a porrada!” “Ku Zao”, gritou alguém na porta do bar, “olha o Maguila!” O sujeito se encolheu todo, chegou a mijar nas calças ao ouvir “Olha o Maguila!” “Maguila”, explicou-nos a senhora que gritara da porta do bar, “havia dado uma sova neste tipo, semanas antes.” “Todo Ku Zao, vez ou outra, precisava cruzar com um Maguila”, concluiu Gui. “Eles se cagam, mas não se emendam”, retorquiu a senhora que nos pagou a conta.

domingo, novembro 22, 2020

CONTRA O RACISMO A RADICALIDADE

 "O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa" - Luiz Gama

 

Por que uma vidraça tem mais valor que um corpo preto?

 

Porque desde que aqui chegou, arrancado de sua terra e transportado como coisa, o africano foi recebido a chicotada e marcado a ferro em brasa. Coisa entre coisa foi tratado. Sangrado, chicoteado, extenuado de sua força trabalho e de sua vida, foi ensinado que a propriedade roubada aos nativos tinha mais valor que sua vida roubada em África. Propriedades roubadas tem mais valor que nós, corpos-coisas. Nos ensinaram que somos corpos de menos preço que vidraças. Nos ensinaram que vidraças são propriedade e propriedade é valor  insofismável. De corpos se desfazem, de propriedades não. Desde cedo, aprendemos que propriedades valem mais que vidas. É um direito inalienável. Corpos negros são descartáveis. Desde Cabral a Bolsonaro, houve e há uma sistemática defesa da propriedade, mesmo que roubada, e desqualificação da vida, principalmente em pele preta. O que nos esconderam é que as vidraças escondem a riqueza que é fruto de roubo de propriedades e de vidas, que em toda vidraça protegida se reflete o rosto de populações nativas desapropriadas de suas terras, exterminado por doenças trazidas do outro lado do Atlântico, principalmente a ganância, não nos ensinam nas escolas que as vidraças que tanto protegemos refletem o rosto negro sangrado extenuado, sem vida, assassinado a chicote em nome da propriedade roubada. Não nos dizem que toda riqueza é fruto do roubo de terras indígenas e de vidas negras. Eles preferem falar de mérito. É o sangue nativo e o sangue africano que sustentam as vidraças. Isto nos escondem na escola, nos jornais, nas novelas. Sistemáticamente nos ensinam a amar a propriedade e a riqueza e a matar “corpos-coisas”, vidas negras.  Está na hora de impor outro ensino: vidas pretas importam, vidas nativas importam. Está na hora de derrubar toda vidraça erguida com o sangue de nativos e africanos.  Está na hora de impor contra o racismo a radicalidade. E como é muito lembrado numa frase do Malcolm X: derrubar vidraças não é violência é resistência, é resiliência, isto é, recuperar a dignidade que nos é roubada.

ZAIRA

 Para a Família Senna

 

“O reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra; Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” ( Mc 4. 30-32)

Uma árvore boa não pode dar frutos ruins. (Mt 7, 18)

 

Semente semeada pelo Divino Semeador, Zaira é árvore nobre, de raízes profundas, tronco vigoroso, copa frondosa, sobranceira. Suas folhas e flores vicejam mesmo nas adversidades e em sombrios tempos. Seus frutos têm o aroma e a suculência daquela humanidade que, um dia, havemos de alcançar. Zaíra, entre os teus sempre encontrei onde me aninhar. Hás de, não obstante o momento, ofertar-nos tua graça e presença.

SELMA

 Para Selma Amorim Maida

 

Aparecem flores na terra, e chegou o tempo de cantar (Livro dos Cânticos 2, 12)

 

Para que o mundo não seja sem sentido, e para que não percamos a esperança. Para os dias difíceis e as épocas sombrias, Deus nos deu as flores.

Flores nos atraem o olhar, abre-nos o sorriso, conforta-nos, traz-nos paz. Um ambiente com flores alegra-o, um jardim florido convida-nos ao sossego, e, em sua exuberância, a nos reencontrar com nós mesmos.

Onde há flores há vida, há festa, há alegria, amizade sincera, amor. Onde há flor a esperança acampa.

Selma é flor singela, de uma especial sensibilidade. É flor resistente à rudez, à sombridade que nos assedia.  Seu sorriso acolhe, sua presença conforta e anima. Selma não nasce em jardins ou se sustenta em vasos. Selma é flor de coração, se plantou em meu ser.

quinta-feira, novembro 19, 2020

CARTA PARA RITA MARIA

 

Cara Rita Maria

 

Em nosso tempo tornou-se tênue os limites entre a cantada e o assédio, já quase não distinguimos sedução e abuso na relação. Há coisas que são claras, bem sei: não é não! Conversa encerrada! Na incerteza, esperando um sim e não o não ou um processo, digo-te sem rodeios: à tua presença, desabo, o coração dispara, as pernas tremem, transpiro, perco a fala. Quando a tua fragrância, antecedendo-te, assume o elevador, sufoco-me, tenho vertigens. E à tua voz, vindo lá do corredor, coro, falta-me o ar, engasgo-me. Não falo de teu olhar, de teu sorriso, do fio de cabelo deixado no apontamento. Em tudo de ti me perco. Gostaria de dizer-te estas coisas sussurradas e misturadas a vulgaridades em teus ouvidos, enquanto lambisco teu pescoço ao pé da orelha. Quero poder perder-me em ti, beijar-te loucamente, e correr teu corpo a ponta de língua, brincar em teus peitos com essas tuas amoras rijas, enquanto tu afloras em meus dedos a flor úmida de desejo. Quero desmaiar em teu gozo e, despertar ao teu lado e cobrir-te de beijos. Tudo o que te digo soa piegas e talvez seja. Só espero não ser abusivo. Espero apenas que entendas: Sonho com teu gozo e, depois, abraçadas, sorrindo-nos de prazer. Se disseres não, deixo de ser.

 

Espero não estar te assediando

Clara Heloisa (do RH)

quarta-feira, novembro 18, 2020

POR QUE CELEBRAR ZUMBI DE PALMARES?

 Claudio Domingos Fernandes

 

Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros fugidos dos engenhos de açúcar ou de vilas organizaram-se para si mesmos, na forma de uma economia solidária e uma sociedade igualitária. (Darcy Ribeiro. O Povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1997, pp. 173)

 ... Olha só aquele clube que da hora,/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora/ .../ Ele apenas sonha através do muro... (Racionais MC´s: Fim de Semana no Parque)

 

Ainda há quem coloque a questão sobre o porquê celebrar Zumbi de Palmares. Alguns veem em tal celebração uma afronta, outros, revanchismo. Há quem desdenhe e há quem pense em vitimismo. O certo é que Zumbi, Palmares, ainda assombram nossa sociedade patriarcal e escravista. A título de pontuar o porquê das comemorações de Zumbi de Palmares e da Semana da Consciência Negra, o presente texto acompanha a obra de Lilia M. Scwarcz e Heloisa M. Starling, Brasil Uma Biografia. Não o seguiremos, porém, de forma literal. Procuramos explicitar, algumas vezes, o não dito nos relatos das autoras. 

Então, por que celebrar Zumbi de Palmares?

Porque em 300 anos milhões de homens e mulheres não viajaram espontaneamente de suas terras com o fito de povoarem outras terras pelo mundo. Não! Foram brutalmente extraídos de seu solo, foram, como animais, encerrados em porões de navios e traficados como mercadoria-moeda num negócio que subsidiou o nascente capitalismo. E o Brasil recebeu 40% dos africanos impiedosamente arrancados de suas terras. Cerca de 4 milhões de homens e mulheres  aqui aportaram para servirem de mercadoria e maquina,  trabalhando em regime de escravidão.

Esses homens e mulheres, os que resistiram a longa travessia marítima, aqui foram marcados pela água do batismo e pelo ferro em brasa. Tiveram elos culturais e familiares rompidos. Foram extorquidos do próprio corpo, tornado propriedade coisa-moeda de Senhores de engenho. E sob açoite, sevicia e castigos de toda sorte, produziram as riquezas de seus senhores e serviram como instrumento de prazer e gozo sádicos desses mesmos senhores. Muitos morreram de exaustão, subnutrição, tortura, suicídio. É em memória deste povo vilipendiado e impiedosamente massacrado que se celebra Zumbi de Palmares.

Porque a escravidão enraizou-se de tal forma que deixou de ser privilégio de grandes senhores de engenho. “Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e remediados e até libertos possuíam escravos...” A escravidão “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência” e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por um patriarcalismo obtuso, mesquinho, impiedoso. Nossa elite é uma horda de sádicos...    

Quando não mais serviam, pois o sistema econômico passou a exigir nova forma de produção e de mão de obra, homens, mulheres, crianças, idosos, doentes foram libertados e abandonados à própria sorte sem instrução, sem direito à terra, sem direitos políticos, sem assistência econômica, e carregados de injurias e preconceitos. E, após cem anos de sua liberação, “ainda são pouco numerosos os seguimentos da “população de cor” que conseguem se integrar, efetivamente, na sociedade competitiva e nas classes sociais que a compõem”. E para não se enfrentarem os problemas decorrentes da destituição do escravo e da espoliação final de que foi vítima o antigo agente de trabalho, se criou um expediente intelectual: a ideia da ‘democracia racial’.

 Ainda hoje, “quanto mais escura a pele do brasileiro, da brasileira, mais se sente o fosso de nossas desigualdades e as marcas ingentes da violência institucional e do sadismo de determinados segmentos sociais.”

Porque há um extermínio sistemático de nossa gente nas periferias e porque se persegue indisfarçadamente adeptos das religiões de matriz africana, e se procura impedir nosso acesso à universidade pública. Por tudo isso, celebramos Zumbi de Palmares.

Zumbi de Palmares não é um herói; é um símbolo de resistência, de luta, de denuncia contra o que persiste de preconceituoso e odioso contra os homens e mulheres de pele escura e contra as manifestações religiosas e culturais de matriz africana.

Celebrar Zumbi, comemorar a Semana de Consciência Negra é recordar que, não obstante todas as adversidades, todo desrespeito a sua dignidade, todo sofrimento sofrido, os extraviados de suas terras e traficados como mercadoria não se renderam à barbárie e ao sadismo de seus senhores. E fizeram mais do que apenas sobreviver, organizaram-se, lutaram e estabeleceram um espaço em que se pode sonhar com liberdade e resgate de sua identidade. Palmares foi uma brecha de esperança aberta no coração do sofrimento imposto pelo sistema escravista. “Para fugir da condição de “peça” [coisa-moeda-objeto sádico], os escravizados procuraram nas brechas do sistema espaços para recriar suas culturas, [cultivar] desejos, sonhar com a liberdade e com a reação”, restabelecer seus laços com seus orixás e ancestrais, dar-se a dignidade roubada. “Jamais abriram mão de serem agentes e senhores de suas vidas... [E] a resistência escrava deu origem a mocambos ou quilombos...”

Celebrar Zumbi de Palmares é reviver está brecha e anunciar a esperança de construirmos uma nação livre do preconceito e das injurias contra os homens e mulheres por causa da cor de suas peles.

Palmares foi o maior e mais persistente quilombo e significou uma alternativa concreta à ordem escravista... “Tornou-se um problema real e bastante amedrontador para o [escravismo colonial e para as autoridades, e precisava ser combatido...” A queda de Palmares e a execução de seu maior líder, Zumbi, serviram às autoridades coloniais de ontem e serve aos autoritários de hoje como modelo para a repressão e o sujeitamento das camadas mais pobres de nossa nação. A degola de Zumbi ilustra o que ocorre aos que reagem à sádica exploração, não apenas econômica, da grande massa de brasileiros e brasileiras.

Aos que negam ao trabalhador condições dignas de trabalho, direitos constitucionais, liberdade de reivindicar respeito às suas crenças e tradições culturais, reconhecimento econômico e favorecimento de acesso à formação de qualidade, celebrar Zumbi não é incompreensível: é uma afronta; uma ameaça.

Para os milhares de homens e mulheres, ainda que não saibam – ainda hoje extorquidos de seus corpos, de seus sonhos, de seus desejos, espezinhados, ridicularizados, humilhados, por uma elite econômica, política e religiosa, patriarcal, mesquinha, tosca –, Palmares e seu líder maior Zumbi se converteram em luta por inclusão social, conquista de direito, resgate de identidade cultural de respeito a seus cultos, desejo de uma sociedade menos desigual.

Enquanto houver injustiça, enquanto os homens e mulheres de nossas classes populares se sentirem ameaçados, intimidados, desrespeitados por sua cor de pele e por suas tradições religiosas, por suas manifestações culturais, que viva Zumbi!;  e que se faça memória de Palmares.

Em resumo, celebrar Zumbi é manter viva a história de dor e sofrimento de homens e mulheres que não viajaram por vontade própria, mas, feito mercadoria, foram desterrados e tornados escravos em terras que não eram sua. Não podemos esconder o sangue que se derramou para alimentar os sonhos de riqueza e poder de nosso patronato e nossa elite política. Não podemos esconder que ainda se derrama sangue em nossas periferias e a vitima são nossos filhos. Para nós celebrar Zumbi de Palmares é, como dizem Mano Brown e Edy Rocky, produzir “um raio X do Brasil”.

O PORQUÊ DA SEMANA CONSCIÊNCIA NEGRA?

 

Por Claudio Domingos Fernandes

 

Embora se coadunem, a celebração em honra a Zumbi de Palmares e a Semana de Consciência Negra se distinguem.  Tratarei aqui da Semana de Consciência Negra.

 

I

Se você acha que CONSCIÊNCIA é um conceito simples, você está enganado, não é.  Para Hegel, por exemplo, ela é, no desenvolvimento do Espírito Absoluto, resultado da luta entre Senhor-servo por reconhecimento.  Em Marx, a superação da luta de classe em que burguesia e proletariado se empenham em dominar os meios de produção material, e, é preciso ressaltar, intelectual. E em Freud, a consciência se dá do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, e das instâncias de controle dos instintos sexuais e de agressividade, na instituição da Civilização.  A citação resumidíssima desses autores é apenas para ilustrar que o conceito de consciência não é simples e não é hegemônico, requer, portanto, reflexão. O comum entre estes e outros autores é que a consciência não é um algo dado e acabado, ela se desenvolve e passa por estágios. Daí se poder falar de consciência ingênua, de falsa consciência e se cobrar Consciência, apreensão da realidade problematizada, destacando nossa condição no mundo...

 

 II

É verdade, as pessoas não nascem racistas. Mas se se tornam é porque o racismo existe. E reconhecer sua existência é o primeiro passo para combatê-lo.

Ildes Comparato

 

O racismo é a pretensão de ser superior a uma pessoa ou grupo humano, devido sua etnia. E tal pretensão te leva ao ponto de submeter a pessoa ou grupo humano a seus caprichos e descartá-los como se descarta um objeto inutilizado. É uma doença do ego.

Josias Capello

 

 

A expressão "consciência negra" foi cunhada pelo ator político anti-colonialista, Sul Africano, Steve Biko. Steve Biko tinha 30 anos, quando foi preso, torturado e assassinado pelo Apartheid em 12 de setembro de 1977. Ainda estudante de medicina, ele criou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos (SASO, em língua inglesa).

Na África do Sul, o movimento de Biko reclama o reconhecimento do racismo, fundado na desvalorização social de homens e mulheres, submetidos a um regime de opressão. Para ele este é o primeiro passo no caminho da superação do racismo. Ele destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura, pela educação, pela religião e pela política, combatendo formas e manifestações de racismo.

Para Biko a dominação não se dá apenas de forma política, e ou nas estruturas do judiciário. Sua maior incidência se dá no campo das ideias, dos valores, das ideologias. De tal modo, segundo ele "a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido.” Ele acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso desconstruir o discurso de desprestigio contra o homem e a mulher negra, criando uma ideia oposta, de força e orgulho negro. Para Biko o confronto do racismo com a consciência negra produziria uma síntese mais humana, construindo um país igual entre negros e brancos.

Assim a consciência negra não propõe um confronto entre pessoas, mas entre mentalidades, de um lado a racista e colonizadora e de outro a da valorização e emancipação do oprimido, marcado pela pigmentação de sua pele.

O movimento de Biko e suas ideias irão reverberar no Brasil já na década de 1970. E em julho de 1978, com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro passa a ser um dia de combate ao racismo. 20 de novembro recorda a morte de Zumbi de Palmares em 1695. Neste gesto, o movimento negro brasileiro elege a luta do Quilombo dos Palmares como gancho para a reflexão acerca do tratamento de desprestigio e desrespeito dispensados a homens e mulheres no Brasil devido a pigmentação de sua pele.

O Dia nacional da Consciência Negra nos chama a atenção para o fato de que, ainda hoje, pessoas são destratadas, humilhadas e até mortas devido a pigmentação de sua pele.  O entendimento desse sistema de desvalorização do ser humano segundo a pigmentação de sua pele e das consequências que ele acarreta como exclusão social, marginalização e criminalização arbitrária de pessoas e de comunidades é um passo necessário para superarmos nossas contradições.

Nem todo homem branco, nem toda mulher branca é racista e, por isso, os não racistas não deveriam se incomodar com o dia de consciência negra. Pois, o dia de consciência negra não é um combate ao homem branco ou à mulher branca, é um combate ao racismo nas estruturas de poder, em instituições e entre aqueles e aquelas que destratam, humilham, marginalizam, criminalizam e executam arbitrariamente pessoas, devido sua etnia ou pigmentação de pele.

Para Steve Biko “O princípio básico da Consciência Negra é que o homem negro deve rejeitar todos os sistemas de valores que buscam torná-lo um estrangeiro em seu país natal e reduzir sua dignidade humana básica.”

 

 

III

 

Agora, se você acha que o termo negro, negra, tem algo a ver com raça e ou cultura, você não está errado, mas se você pensa que ele se refere à distinção dos homens entre brancos e negros, atribuindo negro à cor da pele, você se engana.

Numa sociedade, como a nossa, dividida por uma elite econômica detentora dos meios de produção material e intelectual, atribuindo-se privilégios políticos, restringindo a si o acesso à alta cultura e à produção do conhecimento acadêmico e cientifico de ponta, enquanto do outro lado uma extensa massa de  assalariados  e  trabalhadores  informais  apertam  cada  vez  mais  seus diminutos  ganhos  para  garantirem-se  o  essencial  às  necessidades,  negro, negra é todo aquele, aquela, que alijados de condições dignas de moradia, de saúde, de educação, que empobrecidos, são  humilhados  e  responsabilizados  por  seu  “fracasso social”.

Assim a Semana de Consciência Negra não trata apenas de racismo, na sua redução Homens brancos X Homens de pele escura. Ela debate a violência contra mulher: o assédio, a agressão verbal, física, a imposição de uma estética, de controle sobre seu corpo; a responsabilização da vítima pela violência sofrida. Ela debate intolerância religiosa, lembrando que nenhuma manifestação religiosa no Brasil congrega, em caráter exclusivo, apenas homens e ou mulheres de uma ou outra tonalidade de pele. Em todas as denominações religiosas sejam elas ocidentais, orientais ou de matriz africana, o matiz das peles se confundem e se encontram. No caso, então, deste embate o foco é a liberdade de expressão religiosa. Ela debate a violência simbólica que vitimiza, criminaliza e executa nossos jovens em nossas periferias. Debate, por fim, a educação, a cultura e os produtos culturais a disposição e ao alcance de nossos jovens, as oportunidades de inserção nas universidades, em melhores postos de trabalho e nas esferas representativas de poder, etc.

 

IV

 

É certo que, e isto é uma constatação, os indicadores sociais  apontam, que quanto mais escura a pele do  indivíduo  mais ele é sujeitado  ao desmando  das forças  econômicas,  políticas,  das  elites  culturais  e  religiosas,  mas se  você  é assalariado, se você está no mercado informal sem garantia trabalhista alguma (isto não é empreendedorismo), se você está desempregado, se você precisa sempre  adiar  a  obtenção  de um  bem,  se você  não  dorme  tranquilo/a  porque não sabe se seu filho está ou não sujeitado  ao crime  organizado  ou sobre  a mira da arma da  milícia  uniformizada, apenas por morar na  periferia, se você não  tem os princípios  constitucionais  fundamentais  garantidos:  SAÚDE, EDUCAÇÃO,  MORADIA,  LAZER,  TRABALHO  DEVIDAMENTE REMUNERADO,  SANEAMENTO  BÁSICO,  ASSISTÊNCIA  SOCIAL  (o maiúsculo não é despropositado), você, independente da cor de sua pele, você é negro, negra. 

Se você, independente de sua pele, pensa: “o que vão achar? Vão me ridicularizar? Vão me perseguir, apedrejar?”, quando você coloca o seu terno ou o seu abadá, ou o seu véu ou burca, para ir celebrar suas convicções religiosas, você é NEGRO, NEGRA.  Se você se sente desconfortada com o assédio, com a violência simbólica, verbal, física contra seu corpo, independente da cor de sua pele, você é negro/a...

Numa sociedade divida entre uma elite abestada, apequenada moralmente em seu reduto de méritos e privilégios, dada à arrogância e ao direito de humilhar a massa de ingentes trabalhadores e desempregados, que, empobrecidos, dependem das políticas sociais, o conflito que se estabelece entre estes poucos abastados e a turba de pauperizados se justifica. E a Semana de Consciência Negra torna-se, nesse embate, não apenas reflexão acerca das relações e condições de vida dessa massa ingente a que pertencemos; torna-se voz de denuncia, de resistência, de luta por superação de tamanha e condenável dicotomia. Neste sentido, uma semana não basta. 

ANTUNES NÃO SABE O QUE DIZ

 “À vida, à existência, se sobrepõe a História.” (Euripedes dos Santos)

 

No comércio de pai tinha lá um tipo que estava sempre com livro ou uma revista debaixo do braço, Antunes. Depois do terceiro ou quarto gole de cachaça, abandonava livro ou revista de canto, e ficava a cantarolar Bezerra da Silva, acompanhado de uma caixa de fósforo. Das revistas (Playboy, Ele Ela, Penthouse), pai dava conta depressa de tirar de vista. Bom proseador, Antunes gostava de acompanhar os debates sobre futebol, política e mulher, comuns entre os fregueses de pai.  Todo cerimonioso, interrompia uma ou outra discussão mais acalorada: “Me desculpa, posso participar minha ignorância com um pitaco?” E começava:

“Esquerda e direita é coisa de quem tem estudo, tempo e dinheiro. Pobre não tem ideologia, pobre padece necessidades. A única coisa que diferencia um de direita de um de esquerda é que, se deixar, o da direita restaura a escravidão, o da esquerda sindicaliza todo mundo... Mas o que mais aflige o pobre é perder o que não tem. Ele vive sob a mira da polícia, do bandido, da milícia, mas teme o aumento da violência; ele mal aluga um barraco quarto e cozinha, mas teme perder a casa que não tem. Mas este medo não é dele, é que o pobre é um ser solidário, ele se solidariza com temores alheios. O voto do pobre expressa medo, não interesse. Não é porque ganha a cesta básica que o pobre vota em A ou B, ele vota em A ou B, por medo de que o patrão, a patroa, perdendo, ele também perca. São os medos do patrão que orientam o voto do operário... Em política o ato presente tem suas origens em eventos passados. O escravismo é o fundamento de nossos costumes, de nossos sentimentos de nossas ideias, de nossas instituições. Uma experiência de quatro séculos não se apaga do caráter de um povo em duas ou três décadas. Um não é responsável por seus instintos, nem por seus traumas. Em nossas escolhas não entra apenas a razão, somos também seres passionais. Mais que de nossas vontades e anseios, as urnas falam de nossos medos, de nossos instintos, de nossos traumas, de nossas paixões. Se há racionalidade nos processos eleitorais, no voto falta razão. Repito, uma experiência de quatro séculos não se transforma em seu oposto em menos de um século. Estamos mais inclinados a aceitar a senzala, a garantia do angu onibula as incertezas de uma liberdade que precisa ser alcançada. O pobre para perder o que não tem, abre mão de perder o que não está garantido.”

Embriagado, com termos a nós desconhecidos, Antunes não falava coisa com coisa, mas evitava que as discussões descambassem em agressões. As pessoas iam rindo-se dele, de suas ideias de livros, e passavam a falar de futebol, mulheres, a última bravata do presidente...

“Votar em ideia é coisa de burguês, o pobre vota com os medos deles.” Antunes não dizia coisa com coisa, já ninguém lhe dava ouvidos.


terça-feira, novembro 17, 2020

Hoje eu fui ao mercado. As mesmas promoções de sempre. Os mesmos produtos de sempre, nas mesmas gôndolas de sempre. Tinha lá um produto em embalagem nova, de uma marca de sempre, trazia um brinde. Comprei pelo brinde. Me decepcionei! Tal o produto, o brinde era fora de prazo. "Quem espera doçura em limão, só tem que fazer careta", dizia minha avó. Das urnas não saem mudanças. Ilude-se quem quer...

SAMBINHA

 

Eu fiz este sambinha cadenciado

E desentoado

Pra gente, juntinhos,

corpos embolados

Lábios selados

Sambar de madrugada

Este sambinha desafinado

Desritimado  

Meio bobo

Sem rima

Sem nexo

Eu fiz pra me abandonar

Acalantado em teu

Gozar...

ESCRAVIDÃO

 

 

O Brasil dos colonizadores europeus foi construído por negros, mas sempre sonhou ser um país branco.

Laurentino Gomes

 

O texto que segue é uma violação de minha parte às primeiras páginas da obra de Laurentino Gomes: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, vol. 1. Eu me dei o direito (sei de meu abuso) de trocar de lugar alguns parágrafos, suprimir um ou outro termo, acrescentar uma ou outra expressão.  O teor da conclusão é nossa.

 

A escravidão é um fenômeno tão antigo quanto a própria história da humanidade. No mundo inteiro, desde a mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos da América, milhões de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Desde tempos imemoriais até muito recentemente, portanto, a captura, a venda e o cativeiro de gente foi parte da vida de quase todos os povos e sociedades. No entanto, nada foi tão volumoso, organizado, sistemático, cruel e prolongado quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio, promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos (Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase todos os países da Europa e reinos africanos, além de árabes e indianos que dele participaram indiretamente. E, pela primeira vez, tornou a escravidão sinônimo da cor de pele negra, origem da segregação e do preconceito racial que ainda hoje assustam e perturbam a convivência entre as pessoas em muitos países, caso do Brasil e dos Estados Unidos.

A escravidão de africanos redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os indígenas, foram dizimados. Até 1820, para cada branco europeu que aportava no continente americano, chegavam outros quatro africanos cativos.

     No Brasil, a escravidão foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da Independência, em 1822.

O tráfico de africanos escravizados no Brasil começou por volta de 1535, algumas décadas depois da chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à Bahia, em 1500. Três séculos mais tarde, na época da Independência, praticamente todos os brasileiros livres eram donos de escravos, incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus próprios cativos. A presença de africanos nas ruas e lavouras brasileiras surpreendia os viajantes que por aqui passavam. No interior do país, eram agricultores, tropeiros, marinheiros, pescadores, vaqueiros, mineradores de ouro e diamante, capangas e seguranças de fazendas. Nas cidades, trabalhavam como empregados domésticos, sapateiros, marceneiros, vendedores ambulantes, carregadores de gente e mercadoria, açougueiros, entre muitas outras funções.

De tal modo, ao longo de mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e lançados nas engrenagens do tráfico negreiro.

No cativeiro separava pais e filhos, maridos e esposas, famílias e comunidades inteira que, na África, tinham convivido e compartilhado os mesmos costumes e crenças por muitas gerações. A identidade original do escravo era praticamente eliminada. Para trás ficavam seus laços familiares, suas convicções religiosas, seu status social, as memórias coletivas. Embarcados à força em um navio, transportados em condições degradantes para uma terra completamente estranha e que lhes era hostil, eram arrematados como mercadoria qualquer num leilão e forçados a trabalhar pelo resto de suas vidas sob o chicote e o tacão de seu senhor. Mas esta era a sina dos que chegavam vivos.

Quase a metade, entre 11 milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. E dos aproximados 12,5 milhões de cativos despachados nos porões dos navios, apenas 10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano. E dado o alto índice de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo ambiente de trabalho.

Na travessia oceânica morria-se de doenças como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de suicídio. Morria-se, de banzo, nome dado pelos africanos para o surto de depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas forças vitais se esvaíam no prazo de poucos dias. 

De sua extração abjeta à sua exploração desumana nas senzalas, nos engenhos, nas lavouras, os escravizados foram sempre explorados e tratados com brutal violência. E se oficialmente o suplicio acabou em 1888, o Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver o problema do escravizado. Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação, assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no país:

 

• Negros e pardos — classificação que inclui mulatos e uma ampla gama de mestiços — representam 54% da população brasileira, mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior, de 78%. Na faixa dos 1% mais ricos da população, a proporção inverte-se. Nesse restrito e privilegiado grupo, situado no topo da pirâmide de renda, somente 17,8% são descendentes de africanos.

• Na educação, enquanto 22,2% da população branca têm 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9,4% para a população negra. O índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era de 9,9%, mais que o dobro do índice entre os brancos. A brutal diferença se repete na taxa de desemprego, de 13,6% e 9,5%, respectivamente. Os negros no Brasil ganham em média R$ 1.570,00 por mês, enquanto a renda média entre os brancos é de R$ 2.814,00.

• Nos cursos superiores, em 2010, os negros representavam apenas 29% dos estudantes de mestrado e doutorado, 0,03% do total de aproximadamente 200 mil doutores nas mais diversas áreas do conhecimento14 e só 1,8% entre todos os professores da Universidade de São Paulo (USP).

• Um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. Afrodescendentes formam a maior parte da população carcerária e são mais expostos à criminalidade. São também a absoluta maioria entre os habitantes de bairros sem infraestrutura básica, como luz, saneamento, segurança, saúde e educação.

• Entre os 1.626 deputados distritais, estaduais, federais e senadores brasileiros eleitos em 2018, apenas 65 — menos de 4% do total — são negros. Incluindo os pardos, o número chega a 27%, ainda assim, proporcionalmente a metade da população brasileira total que se encaixa nessas duas classificações (54%). No Senado, a mais alta câmara legislativa do país, a proporção é ainda menor. Só três dos 81 senadores (3,7%) se declaram negros. Entre os governadores dos estados e do Distrito Federal, não há nenhum.17 E também nenhum entre os ministros do Supremo Tribunal Federal, desde que Joaquim Barbosa se aposentou, em 2014.

• Nas quinhentas maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são ocupados por negros.

• Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões de alta qualificação, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professores de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%).

• Só 10% dos livros publicados no Brasil entre 1965 e 2014 são de autores negros. Entre os diretores de filmes nacionais produzidos de 2002 a 2012, apenas 2%.

 

A nossa história de desigualdades sociais é uma historia de desumanidade, dominada pela injustiça e opressão. E temos sido incapazes de resolver os obstáculos que nosso passado escravagista nos legou. Não obstante os avanços, ainda assistimos a permanência de seus vestígios, é recorrente o noticiário sobre pessoas submetidas a condições de trabalho análogas ao cativeiro, exploradas mediante o pagamento de salários irrisórios (ou nem isso), privadas da liberdade de ir e vir, em ambientes sórdidos ou insalubres que, muitas vezes, se assemelham aos das senzalas e dos engenhos de cana-de-açúcar do século XVII, submetidas a toda espécie de desrespeito, humilhação e truculência,  sobremodo de batidas policiais e execuções sumárias disfarçadas em balas perdidas e ocorrências isoladas de operações policiais.

 

 

Texto Original: Escravidão: Do primeiro leilão em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Laurentino Gomes. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2019