sábado, dezembro 31, 2016

DOIS MIL E DEZESSEIS


Dois mil e dezesseis é daqueles anãs que cede passagem ao ano seguinte sem terminar. Um ano que fica. Muito aconteceu este ano e ele será invocado perenemente, como o 11 de setembro de 2001, o 24 agosto de 1954, o 6 de junho de 1944.   2016 foi um ano nefasto.  Tivemos a apologia à tortura e homenagem a torturador, um golpe orquestrado entre mídia, setores reacionários da política e da justiça e apoio de uma elite inculta e voltada para seu egoísmo natural. Tivemos a eleição de Trump, ainda está ocorrendo a guerra civil na Síria, e milhões de refugiados são abandonados à própria sorte, pois o xenofobismo assola o velho continente. A morte de um ambulante na estação do metro de São Paulo, fecha e resume este ano que não acaba, apenas cede passagem para o próximo, voltaremos nele nos próximos 20 anos.

FAUSTHINA  



Que o ano que se inicia seja-nos propicio, porque o que se finda, poderíamos não tê-lo vivido. (Euripedes dos Santos)

Da varanda goumert se podia ver a torre do campanário de São Silvestre, o lago em toda sua extensão espelhando as luzes dos prédios ao redor, encobrindo o caminho que dava às casinhas da vila. Espichando o olhar, via-se uma ou outra luz espaçada cintilando nos contornos da serra fundindo-se a noite clara de lua e estrelas. O olhar acompanha, agora, um casal que se amassa, embaixo, na marquise de um magazine: “a adolescência é a perca do pudor e a virulência dos instintos”, pensou. Mudando o foco, acompanha um grupo de rapazes fazendo um barulho “desmedido”, acelerando suas motos e soltando rojões...
Margareth, no quarto, experimenta as peças que irá usar para “obter sorte e fortuna”. Mas, pelo tamanho das peças, a esperança é pouca. A ver a calcinha, a fortuna, se vier, não será lá grande coisa. “Não fechar o mês no vermelho já está de bom tamanho!”, pensa, contemplando-se na minúscula peça.
 Anthunes cantarola e barbeia-se. Ethelvina corre com os últimos detalhes: “logo chegam os tios e os primos, e a carne ainda não foi ao forno, tio Iago fica inquietado com atrasos. Espero que Marcela esteja de bom humor, ano passado fez “casino” por nada...” 
Os tios chegaram, um primo não veio, desceu com os parentes da noiva para o litoral. Tio Iago trouxe a gaita, tia Marcela, como sempre, já chegou fazendo carão pra tudo e todos. Prima pediu licença, “tinha que retocar a maquiagem, e trocar de roupa; queria iniciar o ano com energias positivas, e era bom começar com roupas novas, recém vestidas”, explicava. Enquanto se trocava, aproveitou para mostrar para Roberta a pequena tatuagem perto da virilha esquerda, uma pequena fadinha com uma frase: “vem beijar-me!” “Como você teve coragem?! Madrinha viu?” indagou Roberta. “Imagina que eu vou mostra pra mamãe, ela me mata!”, respondeu prima, vestindo a pequena tanga azul celeste: “Eu quero um pouco de paz de espírito, este ano que passou foi muito conturbado”. Por pouco não fui pego espionando as mulheres se trocando e confidenciando segredos. Um dos primos queria mostra-me sei lá que nova tecnologia havia ganhado no natal... Eu lá queria saber de tecnologia, queria aproveitar uma ocasião e traçar a prima. 
Tia perguntou por Fausthina. “Disse que desceria à cidade para a missa e talvez ficasse por lá, com os amigos, embora eu duvide que ela tenha algum”, comentou Ethelvina. 
A mesa estava pronta e farta. Anthunes fez as orações, desejou um bom ano a todos, serviu Ethelvina. Terminada a ceia, os comensais continuaram á mesa, conversando amenidades, fuxicando vidas alheias, preparando-se para a contagem regressiva. De repente, um corpo nu atravessou a sala e aproximou-se da varanda, espichou o quanto pode o olhar para lá da torre do campanário de São Silvestre, contemplou o céu estrelado, a febril a algazarra nas estradas, nos apartamentos ao redor, sorriu um sorriso confuso, tomou a beira da mureta de proteção, e quando o céu encheu-se de luzes, com o espocar dos primeiros rojões, lançou-se a abraçar a todos que corriam à varanda para impedir-lhe a insensatez. Fausthina tinha dessas, passar o ano nua fora sempre uma sua ameaça: “que o ano que chega nos impulsione a cumprir coisas que passamos uma vida inteira prometendo”, bailava Fausthina nos braços estupefatos de Antunes, recuperando-se do susto que a caçula lhe pregava.     

sábado, dezembro 24, 2016

O JULGAMENTO


Juiz de Primeira Instância (JPI) – Aqui está dizendo que, em dezembro de 1967, o senhor escreveu ao Papai Noel, pedindo uma bicicleta. O Senhor confirma?

Réu – Em dezembro de 1967, meritíssimo, eu não era, ainda, nascido. Eu nasci em maio de 1968.

JPI – Sr promotor público, corrija a data.  Aponte nos autos que o réu aqui presente enviou missiva ao Papai Noel em dezembro de 1968 e não em dezembro de 1967. 
JPI – O Senhor então confirma que, em dezembro de 1968, enviou uma carta ao Papai Noel?

Reú – Meritíssimo, eu aprendi a escrever muito tarde, e onde eu morava não se cultiva esse uso de enviar cartas a Papai Noel. Em casa, vó montava presépio e, na véspera de natal, a gente rezava o terço. Então vó depositava na manjedoura o pequenino Menino Jesus. Era só, não havia nem o habito de trocar presentes.

JPI – O senhor se lembra quando mais ou menos o senhor aprendeu a ler e escrever?

Réu – Quando abandonei a casa de vó e fui para a cidade, em meados dos anos 80. Aprendi no Circulo de Cultura.

JPI – Ajunte aos atos, Sr promotor, que o réu reconhece ter participado de grupos de desordeiros e destes ter sofrido influências. Corrija também a data da missiva ao Papai Noel. Queira, por gentileza, ajuntar ao processo que o réu enviou carta ao Papai Noel em meados dos anos 80, quando adquiriu a competência escritora. 
JPI – O Sr ainda tem a bicicleta que o Papai Noel te deu?

Réu – Meritíssimo, eu nunca tive bicicleta, verdadeiramente eu nem sei andar de bicicleta.

JPI – O senhor nega, então que este aqui, segurando uma bicicleta, não é o senhor?  (Juiz mostra antigo monóculo com imagem ao réu).

Réu – Sou eu sim senhor, senhor meritíssimo. Eu tinha por volta de doze anos, mas se o senhor notar bem, quem segura a bicicleta é o primo Marcelo e não eu. A bicicleta era de Marcelo, que a recebeu de Michel, em toca de umas rapaduras e queijos que Marcelo, meu primo, vendia no mercado.

JPI – Ajunte-se aos autos que o réu reconhece ter participado de mal feitos, reconhece também a alegada bicicleta, que os digníssimos promotores afirmam convictos pertencer ao mesmo.  O senhor (dirigindo-se ao réu), sabia que o Papai Noel que te dou a bicicleta era funcionário do correio, que comoveu-se com sua singela missiva, e resolveu fazer a vez do bom Velhinho?

Réu – Senhor meritíssimo, eu jamais escrevi a papai Noel algum, jamais tive bicicleta, e desconheço qualquer funcionário do correio que me haja presenteado uma.

JPI – O Senhor tem como provar suas alegações?

Réu – Meritíssimo, com mil perdões, não cabe à promotoria apresentar provas aos autos?

JPI – Ajunte aos autos que mediante a recusa do réu em colaborar com o processo em curso, e tendo a promotoria, após exaustiva leitura e exame de jornalecos e semanais de duvidosa reputação, elaborado peça acusatória em ilustrativo PowerPoint, eu, Juizeco de primeira instância, mas sentindo-me Deus, em minha mais ilibada convicção condeno o réu a não mais comer a coxa do peru nas ceias natalina.

quinta-feira, dezembro 22, 2016

CRONACA GIALLA


Conheci H no ginásio. Era um menino introvertido, ensimesmado. Travei aproximação devido a um trabalho de artes que a professora exigia ser em grupos. Nós nos encontramos na casa de Marcela, para o trabalho. Naquela tarde, a gata de Marcela desapareceu, sendo encontrada morta na manhã seguinte, sem um pequeno brinco com o qual Marcela a ornava... Passado este incidente lamentável, durante o colégio troquei poucas palavras com H. Depois do colégio, mudei-me com minha família, não mais vi Marcela, H, as outras crianças com quem estudara...
Grata surpresa tive, portanto, quando apresentei-me para o estágio em uma empresa de comércio exterior. H era trainee da empresa e me recepcionou, apresentando-me aos novos colegas de trabalho, a meus novos supervisor e coordenador de setor. Durante meus primeiros meses na empresa, procurei manter distância de H que estava um tanto quanto mudado, embora continuasse um rapaz reservado, comunicava-se bem, com cortesia e discrição. No entanto, com o tempo, enamorei-me do “Estranho”, como o chamávamos nos remotos tempos de escola. Um dia, com certo acanhamento, H apresentou-me um pequeno brinco: “lembras da gata da Marcela?” Olhei-o confusa, espantada, admirada, não sei. Sorriu-me tímido, diante minha estupefação: “brincadeira!” E tímido me convidou: “Quer almoçar comigo?”.
Depois de um ano de namoro, um pouco mais, nos casamos. Eu abri meu próprio negócio, ele continuou na empresa e assumiu a direção de logística de importação. Devido a sua posição na empresa, H viajava o Brasil e o mundo. Algumas vezes, acompanhei-o, mas tinha as crianças, Helena e Heródoto.
Sempre que volta de uma viagem, H presenteia-me um par de brincos novos. Assim, tenho brincos dos quatro cantos do país e de uma dezena de países dos quatro continentes. Recentemente, enquanto aguardava o dentista, folheava uma revista italiana e deparei-me com uma “cronaca gialla”, uma espécie de narrativa policial. A matéria reportava ocorrências policiais em que jovens mulheres, de localidades diversas da Europa, apareciam mortas. O que atraia a atenção nas investigações era uma peculiaridade em comum entre as vítimas: a falta de seus brincos.

Aquilo me intrigou por alguns dias, comecei a relacionar o relato às viagens de H ao velho continente, aos brincos que me presenteava, à gata de Marcela. Contatei o consulado italiano, contei das viagens de H, dos pares de brinco... H está sendo procurado pela Interpol; acabo de receber a visita de um delegado da Polícia Federal do Recife. Acabo de receber também um novo par de brincos de alguma ilha do Caribe. H sempre soube como me fazer feliz.

domingo, dezembro 18, 2016

ÉDHIPO




Geni Casta, durante uma festa universitária, teve a bebida batizada. E o amigo, Silas Mal’affare, a seviciou. Geni acordou confusa e nua no reitorado, ao seu lado uma pequena medalha com o brasão do judiciário. Envergonhada, Geni preferiu abandonar a universidade. O fato é que Geni percebeu-se grávida. A família, de valores cristãos e nome a zelar, enviou Geni em viagem ao exterior. Trazendo ao mundo um menino, Geni o deixou, com a medalha que encontrara ao seu lado, num abrigo para refugiados, retornou à família e à universidade.
Silas Mal’Affare tornou-se homem público, comunicador social de grande apelo popular. É famoso por seus bordões: “Não importa o caráter do rei, seja-lhe amigo, pois sendo amigo do rei, tudo te convém!”. Silas Mal’Affare, era casado com Ella, filha do presidente da suprema corte e tinha uma filha, Ellinha.
Geni tornou-se esposa de magistrado. Com a ajuda de uma amiga, a quem confidenciou seu drama de adolescência, articulou a morte de Ella Mal’Affare. Mal’Affare, para não expor sua imagem, tratou a trama como um “lamentável acidente”. O filho abandonado entre refugiados, certa noite, desembarcou na capital. Trazia recomendações de nomes importantes do cenário mundial que o adotara. É preciso dizer que numa noite, antecedendo seu desembarque na capital, o jovem socorreu um velho cego numa travessia de Berna. Para recompensar-lhe, o velho cego leu-lhe a mão: “serás o amante dos que te geraram”. “Não seria amado?”, redarguiu o mancebo... O velho cego apenas riu um riso sacana: “para onde vais, meu caro, não há tragédias e os dramas são fugazes”.
Com as recomendações que o acompanhava, logo o jovem instalou-se na capital e assumiu cargo importante numa estatal. Numa destas festas para autoridades e empresários influentes, travou contato com Geni e dela enamorou-se. Não demorou muito para os dois se enlaçarem amorosamente. Certa noite, enquanto o jovem amante dormia, Geni, vasculhando seus pertences, encontrou a esquecida medalha...
Geni foi a Disney, fez compras em Miami, adquiriu um Romero Britto e apareceu, meses depois, rejuvenescida. O jovem abandonado, logo encontrou novo enlace amoroso: Ellinha Mal’affare.
Durante o jantar de apresentação, Silas Mal’affare, admirou a boa forma física e a “elegância intelectual” do futuro genro, na oportunidade que teve, levou-o ao seu escritório. Naquela noite o estrangeiro dividiu o leito com filha e o pai.
Sobre a capital caiu um desgraça, e todos se sentiam ameaçados, muitos foram às ruas, protestaram, denunciaram, pintaram a cara, vestiram as cores da bandeira. A boca pequena, uns defendiam antigos regimes, outros pretendiam passar a borracha, outros esperavam algo novo. O governo eleito foi deposto. O novo não agradava, era decorativo. Silas Mal’affare, em seu prestigiado programa de auditório, defendeu que “o pais precisava de um administrador, alguém que não fosse político”, e lançou o genro-amante em cadeia nacional. Logo sua aposta tornou-se “o mito”.
Geni Casta, então, num talk show, trouxe à tona a verdade. Apresentou, entre risos, a medalha; contou, às gargalhadas, seu enlace com o filho rejeitado, e disse saber, de fontes seguras, do caso de Mal’affare, filha e genro. O escândalo não durou dias. À boca miúda se repetia: “sendo amigo do rei, porque não?”

No partido poucos rejeitaram a ideia, não havia aliança melhor, e lançaram, “pela pátria, a família e Deus”, Edhipo e Geni Casta candidatos a presidente e vice. Se não ganhassem, não haveria problema: “sabiam como depor presidentes eleitos”.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

UMA REPÚBLICA ENGRAÇADA


É  uma república muito engraçada

 Poucos tem tudo, muitos tem nada

Os que não tem nada não podem protestar nela não

A policia desce a repressão

Os que tem tudo, não manifestam não,

Desfilam abraçados a corruptos contra a corrupção

Tiram self com a polícia, elegem heróis de ocasião



É uma republica muito engraçada

Presidente nela não existe não

Quem a dirige é um oportunista, que passou de decorativo à piada:

Um reles cagão

As câmaras tomadas de canalhas;

O Tribunal acovardado rasgou a Constituição.



É uma república feita com muito esmero

Tem um povo sofrido, uma elite soberba,

E uma classe média, fazendo jus à medianidade,  medíocre.

Uma imprensa de dar pena, com articulistas áridos, rendidos ao sistema

más crível a um bando de otários, fiando-se em um juízeco

desfilando de verde e amarelo...  



É uma república desequilibrada

Ao povo toda a culpa,

aos ricos toda prata.


terça-feira, dezembro 06, 2016

A HORDA

“Tudo posso naquele que me serve, dizia um senhor montado em seu escravo, trocadilhando a Sagrada Escritura.”



Estava à toa na vida
O meu
 amor me chamou
Pra ver a horda passar
clamando direitos de Senhor

A minha gente sofrida
espoliada e de “cor”
vendo a horda passar

Clamando heróis sem pudor

O homem lobista que despachava dinheiro desfilou
O playboy com conta na Suíça desfilou
A
socialite que contava sapatos
Para ver, ouvir e dar passagem

A filha do deputado, tanta vezes denunciado, aderiu
A funcionária fantasma vestindo verde e amarelo aderiu
E os meninos do MBL, financiados por Aécio e Caiado, se assanharam
Pra ver a horda passar
com aquele pato, um horror

O velho fraco e sem aposentadoria acostumado a não pensar em crise
acreditou que ainda era moço e podia ser empreendedor e dançou
A madame com suas panelas debruçou na janela
Acenava à horda desfilando pra ela

A horda verde e amarela se espalhou na avenida e insistiu
A imprensa que dos estudantes nada diz cobriu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a horda passar clamando ser tratada Doutor!

Mas para meu espanto
O que era passado voltou
na memória de quem não o viveu
junto com o pato que passou

E cada qual com seu argumento
Em cada argumento um mesmo desejo
Depois da horda passar
Clamando direitos de Senhor

segunda-feira, dezembro 05, 2016

BELLA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Manuel Bandeira



Em tempos de melindres, devido ao assédio, temo aproximar-me das mulheres. Um flerte pode ser mal interpretado e, de galanteador, passamos por cafajeste, assediador. A conquista,  no entanto, mesmo que para um relacionamento casual, exige a abordagem direta, ou deixada subtendida num gesto, numa cortesia, num chiste...

Na Pasárgada do poeta, creio, não careceríamos de subterfúgios. Bastaria, penso, não sendo grosseiro, convidar a  mulher que queremos, sem promessas de amor eterno, para cama que havemos de escolher.  Contigo, eu supriria a necessidade de cama: quero amar-te ao vento, sobre a relva, na areia no descançar das ondas. Mas bem sei que o querer de um não é dever ao outro. E, então, mesmo fosse amigo do rei, sei que só posso convidar, esperançoso de aceitação para este encontro fugaz, sem afeto, apenas desejo.

Há, por certo, outras mulheres no salão. O mesmo respeito devo a elas. Posso apenas desejar tê-las em meus braços, numa dança em que havemos de decidir o que virá a seguir. Mas, não posso esperar nem pelo assentimento desta corte. Cabe à dama aceitar conceder-nos ou não a dança. Mas dentre todas, neste reino em que me faltam amigos, é a ti, que como a velha raposa ante a verde uva, contemplo com libido nos olhos. O convite, à depois deste nosso blinde vir deitar-se comigo, não vindo a ser aceito, não torne-se motivo de constrangimento. Prometo-te, sem garantia de cumprimento, correr-te toda em ponta de língua e corpo frêmito  “indo à fonte de teu ser”,  afagando teus cabelos molhados “com a sutileza que lhe fez à perfeição”, como o sambista cantou... Sou poeta, me tomes no colo, me embales na rede, me deites no chão, na relva, onde quiseres, como fosse o primeiro: faça-me homem; sois uva-vulva-mulher.

Não havendo de ti concordância, ceda-me apenas a dança, e partilhe comigo uma taça, brindando o fugaz instante em que na beleza desse teu olhar eu pude em ti me embrenhar.


domingo, dezembro 04, 2016

ANGHELINA


Em todo prazer há do sofrer de outrem (Eurípedes Santos)


Há algumas semanas não ejaculo. Para evitar a fadiga sem sucesso, enfurno-me em um novo texto e na leitura compulsiva. E quando acosto-me ao lado de seu corpo quente, ressonando, o dia está para clarear. Tomo o remédio... Ouvi quando despachou os meninos para a escola e anunciou estar saindo: “não vá se atrasar! Tenha um bom dia!!! Não chegue tarde!!!” Não dei resposta alguma...
Acordo sufocado de um sonho. Consulto o despertador, meio dia passado. Levanto-me. Tomo um banho, masturbo-me sem chegar a ejacular. Algo inquieta-me, um desejo de evasão, ansiedade sem objeto esperado.
Deixo o chuveiro. Tomo um conhaque observando o jardim. Rememoro o sonho. Nele, verifico os meninos que dormem sem amanhã: invejo-os. Desço à sala, ligo, desligo, repetidas vezes a televisão, pego um livro a esmo, tomo copos e copos de conhaque, folheio por folhear o livro.  Vejo-me no quarto, sento-me sufocado, o ar abafado. Abro a janela, acompanho o passeio solitário de um gato saltando de um telhado a outro na noite deserta. A brisa suaviza-me o animo: “Porque você não vem dormir?”, murmurou-me sonolenta. Deixo a janela entre aberta e deito-me a seu lado. Volto a levantar-me e me ocupar de um livro infantil dos meninos: “seria bom se a vida, ao fim, tivesse uma moral qualquer”...
Almoço verificando emails, correndo os olhos pelos sites de noticia: “o desumano desfila sua face em cores de nossa bandeira”... Acessei uma página “adulta”, procurando algo que me excitasse, masturbei-me: fadiga sem gozo! Tomei minhas coisas, saí para o trabalho. No trem acompanhava as mulheres falando de seus filhos e suas apreensões enquanto tentava ler Gênio Obsessivo, de Barbara Goldsmith... Veio-me a mistura de fragmentos de Camus (“No fundo de toda beleza jaz algo de desumano”) e Leopardi (“Na verdade esta vida é tristeza e infelicidade...”).  O que se deu já não era algo insólito, apenas incomodo. Peguei-me chorando sem motivo algum, sufocava-me os rumores das muitas vozes em torno a mim, os olhares me oprimindo, escorria-me suor frio...  Interrompi a viagem, descendo do trem na primeira oportunidade. Meu corpo comichava, sentia calor e sufocamento, pensei que perderia o sentido. Alguém puxou-me: “Ei, atenção! A linha amarela!” Agradeci desnorteado, procurei onde sentar-me, respirei, procurei por balas na bolsa, não achei! Tive a impressão de estar sendo vigiado... Recobrei-me. Conjecturei não ir trabalhar.  Voltar pra casa exigiria explicações e a paciência de ouvir todo um rosário de preocupações que eu deveria ter com minha saúde, que deveria “procurar um médico, retomar a medicação, etc.” Havia a opção de ficar perambulando pela cidade, pensei em tomar rumo da rodoviária, tomar um ônibus qualquer para uma cidade qualquer, não sentia disposição para aventuras. Retomei o caminho do trabalho: “estou tornando-me um homem cotidiano, resignado às contas e despesas...”
As horas arrastavam-se em intermináveis minutos grávidos de segundos agonizantes. Mau humor, impaciência, irritação, ansiedade, misturando-se, sufocando-me, nauseando-me. Nenhum assunto prendia-me, as conversas exasperam-me. A atendente, em especial, uma máquina de falar sem respirar, parecia ter dez pessoas falando nela em continuidade. Para não ser mais azedo que de costume, isolei-me no arquivo, organizando relatórios. Entre pilhas de papéis, Albert Camus me assolou novamente: “Um gesto desses se prepara no silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma noite, ele dá um tiro em si mesmo ou se joga pela janela...”.
Reviro, nauseado, relatórios e arquivos, o ar empesteado, o topor, a reminiscente fragrância de Anghelina...
 A vida era sonho. Uma tarde de veraneio, mãe corria seus dedos sob meus cabelos, tinha a brisa do mar e seu rumorejo acalantando o dia terminando. Eu era um sorriso só com o de mãe. “Olha mãe!”, aproximou-se Anghelina, desatando o biquíni para mostrar a marca de sol. A vulva rosada, os primeiros pentelhos despontando na mancha clara, destoando da pele dourada. Tive minha primeira ereção. “Meu menininho já é homenzinho!”, burlou mãe. “E safadinho”, emendou Anghelina, requebrando-se para mim. Escondi-me, encabulado, no colo de mãe. Tomava consciência do vexame.
Quando o sonho se perdeu, Anghelina já não irradiava felicidade. Ela andava tristonha, fora preterida por um certo Consentino. Pai a ameaçava de coça caso não se compusesse: “moça de família não fica de choramingo pela casa por causa de homem, quem lhes procura homem e as casa é o pai! Se você não recolhe estas lágrimas vos darei bom motivo para chorar!” E pai mostrava-lhe o reio. Mãe a socorria: “não seja bruto! É apenas uma criança enamorada! Logo passa!” e a acolhia em seus braços, a embalava em seu colo...
Eu devia ter visto a tristeza nos olhos de Anghelina, eu era preocupado com meu prazer. Eu a espiava em seus demorados banhos e meu grito alertou a família...
Como mãe, ela tomou da navalha de pai, correu-a com delicada tristeza (porque eu não percebi sua tristeza?) sob as pernas, a virilha, a púbis... Maquiou-se, tomou dos pelos pubianos e os envelopou junto com um bilhete, com seus lábios abatonados de vermelho selou o envelope. Usou do perfume de mãe, voltou a brincar com a navalha de pai, correndo-a por seu corpo, seu sexo... Havia vazio na pantomima toda. Era tudo tristeza e dor. Eu cego à sua dor, não sabia se ejaculava ou gritava denunciando-me, vendo o sangue escorrer-lhe o corpo...
Porque me prendi à navalha percorrendo seu sexo, e não a seu olhar esvaziando-se de sentido? Essa náusea que me sufoca comanda o meu sentido de ser.
Retornando para casa, caminho por ruas escuras, abandonadas aos ratos correndo entre as lixeiras. Retardando o passo, vou consumindo-me na certeza de que nosso gozo é desumano; é o sofrer de alguém. Um dia acordamos e percebemos: só o salto nos redime. Nossa angustia é não saber o momento do salto. A noite sem luar está carrega de uma fragrância que lembra uma tarde de veraneio em que vou me perdendo.


sábado, novembro 26, 2016

BAGUÁ





Da vila, vô era um dos poucos que não tinha pássaro preso, e quando os homens se gabavam de ter o melhor canoro e disputavam qual a melhor alimentação e disciplina para manter o canto do pássaro, vô saia de lado. “Pássaro é voo e canto”, insistia com pai que tinha em gaiola coleirinhas tui tui, canários, um azulão... “Pássaro preso é baguá”, debatia vô com os tios... Eu não sabia o que era baguá. “É homem tornado bicho, tal boi, tal cavalo”, dizia vô, esmiuçando fumo, rolando cigarro, pitando.
Tia nos contava, então, a história de um certo Rufino condenado à morte porque não era “baguá” e deitou-se com a escravinha do senhor. Foi, no entanto, Afrânio, a quem chamavam professor, porque andava sempre com livro ou revista embaixo do braço e parecia uma enciclopédia ambulante, quem me explicou: “baguá era um termo usado para negros reprodutores. Eram, geralmente, escravos obedientes e serviçais, que por serem muito fieis aos senhores, chegando a denunciar os companheiros que tramassem rebelar-se, gozavam de certas regalias”.
“Para ser baguá”, lembrava Afrânio, “além de obediente e bajulador, o escravo precisava ser forte, robusto, habilidoso. Os senhores de engenho controlavam com que negrinhas ele deitava; observavam o ato sexual, para certificar-se que o escravo havia de fato “enxertado” a escrava; negociavam a futura cria ainda na barriga da escrava”. 
Para vô, baguá era escravo preso ao gozo do senhor que: “prazerava-se com o apego ao sofrimento de outro para não dar-se com da própria dor”.  Na sua função, o baguá e a escrava não eram gente, eram gozo do senhor. Em gaiolas, “pássaros deixam de ser pássaros e nos assemelhamos ao senhor que só encontra gozo na dor”.
Também Afrânio condenava o cultivo de pássaros em gaiolas: “O canto de pássaro preso é canto de injustiça, e quem comete o crime se apraz com a voz que reivindica o que lhe é de direito: a liberdade”. Afrânio, diferente de vô, não se furtava ao debate e se entusiasmava: “O canto preso é o lamento do voo perdido... como a dor do negro, de carne rasgada no açoite, gritando: Liberdade! Liberdade! Liberdade! E quem prende o voo, para gozar o canto, é como capitão do mato, descendo a chibata”. Para vô e para Afrânio: “era preciso não ter memória de nossos ancestrais para carregar gaiolas”.
Eu, como vô, aprecio pássaro solto, saltitando de uma árvore a outra, ciscando o terreiro, soltando seu canto quando lhe apraz cantar, sendo um com o céu. E vô insistia: “homens que prendem pássaros não têm memória da dor de seus ancestrais”. São desses dizia Afrânio que “acreditam em democracia sem chão para plantar, sem escola para seus filhos, sem direito de celebrar seus Orixás, sem liberdade para andar, ir e vir como se quer”.
Quando os homens, então, se gabavam do canto de seus pássaros, vô de seus debates não participava. Sentava no quintal, picava fumo, pitava: “Eu sou de quilombo, guerreiro de Zumbi! Gosto de canto e liberdade!” E vô repetia com Afrânio: “Canto sem voo é coisa de capitão do mato!”
Com ele se juntava Afrânio e tia que nos contava de um certo negro Sebastião: “... mão do senhor na senzala,  não perdoava, descia chibata, descia chibata, descia chibata, aprazendo-se das feridas abrindo o corpo escravo, como arado sulcando a terra... Sebastião, mão de seu senhor, se alimentava de dor  de sangue de lágrimas banhando o terreno; de negro se contorcendo, esvaecendo....” E tia dava razão a vô: “baguá não era homem pleno, era apenas uma função, um instrumento”. Para ela, canto de pássaro era bonito de se ouvir em copa de árvore: “Canto livre é cantiga com cores de saudade, histórias de amores, das lutas do povo, coisas de Afrânio, que não desiste”. E tia era emblemática: “Canto livre é canto da lembrança de um tempo que será amanhã”.
Os homens disputavam qual canoro melhor cantava. Mas aprendi com vô, tia, Afrânio que “pássaro é voo e canto”; que canto livre carrega esperança; que é por medo que se prende pássaros. O amanhã que se canta, no canto que o ontem relata é liberdade.
Tenho por demais vô, tia, Afrânio na cabeça: “Quem oprime teme liberdade. Seu gozo é desumanidade!” Eu escrevo e gostaria, como diz o poeta, que minha escrita fosse “canto e asas”, narrando as lutas de nossos ancestrais: lutas que será amanhã.

quarta-feira, novembro 23, 2016

TEU CANTO




Para Patrícia Nascimento

Teu canto é memória de uma história que nos querem negar. É a lembrança dos  milhões de homens e mulheres de Nigéria, Cabo Verde, Congo Moçambique, Daomei, Angola, Zaire, Quiloa, Zimbáue, extraviados de suas terras de seus pais, filhos, esposas maridos e traficados como mercadoria barata em porões de tormento e aflição. Teu canto é a memória da tenebrosa travessia atlântica em que muitos deles ficaram dispersos mar adentro por não resistirem a sua desumanização.

Teu canto é memória do ferro em brasa marcando a carne, tornando esses milhares de homens e mulheres iorubas, gegês, fanti-ashantis, fula, mandinga, haussas, tapas, bantus... propriedades de impiedosos senhores; da água da cristandade banhando seu rosto, negando, em nome da trindade, sua religiosidade, seus orixás: Nanã, Iansã, Oxala, Xangô, Oxossi, Oxun;  da chibata expropriando seu corpo, seu trabalho, tornando-o mercadoria, moeda, objeto de sádicos desejos.

Canta que teu canto é história dos que enfrentaram a opressão, organizaram os irmãos, fundaram quilombos e resistiram à escravidão. Teu canto é a luta de bravos guerreiros e guerreiras, tombados na luta por liberdade.

Canta para não nos deixar esquecer, pra ferida não cicatrizar, pra não nos dizerem que a harmonia se deu. Canta porque nosso irmão ainda agoniza devido a cor de sua pele, por cultuar seus ancestrais, por querer educação, moradia, trabalho, saúde, a segurança de caminhar e sorrir e não estar sendo filmado por olhares desconfiados... Canta teu lamento, tua dor, porque teus filhos ainda morrem executados, vitimas do tráfico, da polícia-milicia, da elite imperialista, da burguesia patriarcal, da intolerância de pastores-Senhores de um Deus que não se encontra em seus livros. Canta porque fazem da periferia senzala e nos transportam como gado, nos tratam como escória. Canta porque, em lautos jantares, dão curso ao golpe, restringem o direito dos pobres...


Canta que teu canto não é lamento (que chamem vitimismo); é  luta, é resistência. Canta porque em teu canto está a dignidade que haveremos de conquistar.  Canta porque teu canto é a dor de nossos avós, a ESPERANÇA de nossas crianças: Queremos o que é de todos: Não podemos parar de Cantar! A harmonia não se deu, não somos, ainda, uma democracia... 

sábado, novembro 19, 2016

ENCANTO




Foi Christine Ramos quem me ensinou tudo sobre flores enquanto podava suas rosas e adubava canteiros de jasmim. “Na China", diz-me Christine, “mistura-se flores de jasmim a folhas de chá e a combinação de sabor e aroma resultante é muito apreciado”. Passando a cuidar da orquídeas, foi Christine que contou-me a história de dois monges diante de uma flor. Os dois monges caminhavam em direção à capela do mosteiro para celebrar as vésperas, quando, contornando o jardim, vislumbraram uma rosa de especial encanto. Um dos monges logo se apressou a colhe-la: “vou ornar o altar do Senhor”, disse ao companheiro. O segundo monge interviu: “Irmão, o Senhor já a colocou no lugar em que ela o exprime. Não furte ao olhar do mundo o que o Senhor a todos doa.” O monge seguiu ao lado do companheiro entristecido, queria ter levado a flor consigo. O outro monge levou consigo a flor que contemplou, deixando-a no jardim onde a encontrou. Eu tentava dizer a Christine Ramos de meu ceticismo ateu: “meu caro, dizia-me Christine, sois ateu, mas não sois cego e se sois capaz de encantar-se com um sorriso belo, um olhar penetrante, uma lágrima sincera, se sois capaz de ver beleza numa flor que se abre aos raios do sol, há em ti religiosidade, e se sabes acolher o que te encantas sem o tolher, impedindo-o de ser, és humano, o sagrado no homem!” Depois disso, Christine falou-me Begônias. Escrevo isto porque hoje encantei-me com uma beleza sem igual. A colhi deixando-a ser, apenas ser. Graças à tecnologia e a era digital, pude registrar seu sorriso descomunal.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Estamos na volta do pêndulo!/ O retorno nunca é/ ao que era antes/ Isto permite o dessossego/ O eterno retorno,/ nunca é retorno ao mesmo/ é compressão em mola,/ que arremessa ao ponto oposto/ Estamos na volta do pêndulo/ a história não acaba/ Dará um salto!/ O resultado desconheço/ Eis meus receios,/ ou pior,/ medos!  

sábado, novembro 05, 2016

OS OLIVAS


Tinha lá Perseu, dado a fazer versos para enamorar Judithe. E Perseu se saiu com essa: “Minha amada, não te esmaeças/ É tempo que os olivas nos amargam a vida/ e seus espinhos/ ferem-nos a carne,/ Tira-nos os filhos/ Fruto novo a flor já anuncia/ Recolha o temor,/ altiva Rainha. O sombrio que nos encalça/é nuvem e já passa: Temer não é de nossa raça.”
Tinha lá uns gramáticos e riram-se: “os olivas, kkkkk! Vejam só!: não combina o artigo ao substantivo e quer versejar.  Kkkkkk!
Athilio socorreu o poeta: “homem do povo, não dê ouvido aos doutos, quando presos às regras, o sentido não enxergam, ou, como lhes convém, desprezam”.
Tinha lá um que se ofendeu com a defesa de Athilio: “Oh matuto! Quem tu pensas ser, para advogar contra nosso parecer?”
Athilio bicou uma cachaça, fiou seu fumo de corda, tomou a voz: “Sou matuto, homem de pouca fala, mas não sou estulto. E bem sabeis que o homem do povo não fala de azeitonas, mas dos homens de fardas e do regime que nos oprime e “amargam a vida”; fala que estes tratam-nos como escravos, tramam contra nós em lautos jantares, tira-nos o sono, a tranquilidade, enche-nos de incertezas, “ferem-nos a carne”, quando nos manifestamos e exigimos nosso naco de pão; “tira-nos os filhos”, exterminam nossos jovens e somem com seus corpos; “não esmaeças”, não percas o sentido de teu ser, de tua cor, de tua origem; “é nuvem e já passa”, todo governo que não tem no povo sua força, assombra, mas não vinga. Dura séculos, mas não vinga, é fruto temporão. Mas o fruto novo, o que sustenta a luta, o que mantém a resistência, a “flor o anuncia”: É o reinado do povo. E  “Temer não é de nossa raça”, diz que havemos de resistir, mas diz, sobretudo, que quem nos governa nós não o reconhecemos. Seu governo é desfaçatez e dissimulação, é engodo, preparação para o “sombrio que nos encalça”. Athilio bicou cachaça, pitou fumo e conjecturou consigo: “Judithe não é mulher; é um povo prenhe de seu reinado”...

Os gramáticos voltaram às redações de seus jornais e editaram “Fumo de corda e cachaça matam matuto”. Noutra pagina se pode ler: “poeta é preso: capitão achou de mau gosto ele não obedecer a gramática.”   

quinta-feira, novembro 03, 2016

SOBRE O DISCURSO DE ÓDIO

Pobre com inveja do rico (o comunismo segundo os liberais tupiniquins) é até certo ponto compreensível. Rico gosta de ostentar sua condição de "bem estar" e satisfação. O esnobismo do rico, embora seja uma afronta, tanto mais quando a riqueza é fruto de engodo,  é compreensível. Agora o ódio de determinados grupos, e pessoas que embarcam em sua ideologia, ao pobre (e tem muito pobre com ódio de pobre) é um caso preocupante. Contra a inveja se sugestiona o trabalho e a resignação; contra o esnobismo, a humildade e a caridade. Contra o ódio não há argumento. Ele tem suas origens no apego infantil pelo que resulta do processo digestivo. Pessoas que odeiam por odiar, geralmente tinham dificuldade para defecar, esta dificuldade subiu ao cérebro e ao coração. Pessoas que odeiam pobre são pessoas embotadas. Não há argumento que as demova. Experimente conversar com uma criança birrenta, é o caso dos grupos e pessoas que pregam e apoiam discursos de ódio...       

terça-feira, novembro 01, 2016

ANÁSTHACIO


Quando pai abria a vendinha, Anásthacio, cedo, manhãzinha, já seu rabo de galo pedia. “Era para ligar-se ao mundo”, dizia. Depois tomava rumo da estação, e já finzinho de tarde, junto com os operários da velha fábrica de tecidos, Anásthacio, encostava a jogar dominó e contar casos. “A quem couber o chapéu, faça uso!, era um seu bordão.” Todos davam o “galego”, assim o chamavam, por homem instruído, lia jornal, trazia consigo sempre uma revista, um livro. Não era de se embriagar, tomava seu rabo de galo, “pra se ligar ao mundo”, e outro “para o mundo abandonar”, quando pai, já noitinha, dispensava todos e a vendinha fechava.

Dos fregueses de pai, de Anásthacio, eu gostava. Gostava de ouvi-lo, e ele dizia que “ mal de pobre é revelar seus sonhos de riqueza perto de padre, político e banqueiro.” E completava: “riqueza de pobre não é grande coisa não, casinha cômoda, escola pros filhos, médico no posto, carteira assinada. Fora isso, pobre sonha com a loteria, mas pra coisa supérfluas: Casa na praia, carro bonito, sossego na rede. Mas vida de patrão não se ganha na loteria, se ganha extorquindo pobre.”  As pessoas riam de seus gestos com as mãos simulando destroncar galinha pro almoço, como vó fazia. Extorquir ganhava sentido.

Numa peleja com Zózimo, soldado do batalhão da polícia, que dava a ultima voz em tudo, até nas contas de pai, dado a chamar trabalhador de preguiçoso e pobre de sossegado e vadio, “tem é que matar”, dizia, invocando a proteção de Nosso Senhor Jesus Cristo, Anásthacio, sem perder a linha emendou: “desconfie (querendo dizer: não confie de maneira alguma) de quem não tendo nada, pensa primeiro no que pode perder. Geralmente, são pessoas que abraçam quem lhes pede o sacrifício por um algo impreciso: “vida melhor”, neste mundo, no futuro, porém, quando o bolo crescer, ou numa beata eternidade que não é certa, pois, depois de tanta penitência corre-se o risco de não a merecer. Tem quem humilha o empobrecido (sim, as pessoas são tornadas pobres) porque acredita ter vencido na vida, porque consegue pagar a crédito o naco a mais de carne no prato. Desconfie dessa gente, é capitão do mato, é capataz, porque come da mesa do senhor e não se acha servo... É comum a quem se desdobra para ser admitido como membro de uma classe que o desdenha a boa formação, o bom estudo, os títulos na parede – viseiras – escarnecer de quem já é humilhado e extorquido.”

“Comunista, fdp. Ateu do caralho...”, esbravejava Zózimo.

“Desconfie, meus amigos, desconfie, de gente que no meio de empobrecidos operários, se faz acima de tenente, mas sequer tem patente. Não digo quem é, mas se o chapéu couber, faça uso” .      

Pai, para evitar maior confusão, ia dispensando uns e outros e baixando a porta da vendinha.   Na manhã seguinte Anásthacio não apareceu para o tradicional rabo de galo. Zózimo sim, trazendo uma ordem judicial que proibia as reuniões e manifestação de teor político, autorizando a autoridade presente (no caso Zózimo, que mesmo sem patente achava-se mais que tenente), dar voz de prisão a quem imitisse opinião...



Tenho saudades de Anásthacio quando lei que mais uma global, não me interessei pelo nome, andou desdenhando nortistas e nordestinos e pedindo para deputados se calarem; que a policia de Santos andou prendendo artista; que houve manifestação pro Trump, na paulista; que o MBL está a combater adolescentes em porta de escola e o Malafalsa teve um gozo com o Crivella...

Eu sou esquerdopata, confesso. Isto significa que deveria, por questões dialéticas, ter os direitopatas. Mas, infelizmente não existe! E a direita brasileira, se existe, e quer ter algum respeito, tem que vir a público esclarecer que quem dá audiência a esses aloprados, não são nem arremedos do que poderia vir a ser os direitopatas. São apenas seres bizarros, que, por comer, a crédito, Mclanche Feliz, se acham príncipes de Mônaco.

Eu sigo a risca o que Anásthacio ensinou-me: desconfio de quem desdenha do empobrecido, seja do norte, do sul, da África,  dos EUA. Sim, as pessoas são extorquidas até de seus sonhos, por padres, pastores, políticos, juízes, banqueiros... Eu não dou a mínima a quem  sustenta a meritocracia da compra a prazo e, não passando de consumidor, se acha um com os que nos roubam: São seres sem patente com arroubos de presidente, deste embuste que nos governa.

Quando eu vejo cenas de policiais armados de cassetetes, bombas de gás, e a característica truculência e arrogância da força militar, tratando com adolescentes, não posso deixar de pensar no velho ANÁSTHACIO que costumava dizer: "Militar é de capitão acima! Abaixo é pobre fardado com ódio de pobreza". Quanto a um Deus de Brasilia, eu ainda estou com vó: "Juiz, meu fio", dizia, "é um terceiro que se locupleta das partes".

domingo, outubro 30, 2016

CRÔNICA DE DOMINGO




“Eu vejo o futuro repetir o passado” Cazuza


O relógio o despertou às seis horas da manhã. Seis e trinta já se encontrava todo paramentado. A garoa fina que observava cair não o desanimou. Tomou um copo de suco verde, um preparo de couve, laranja e mel. Fez alongamento, flexionou o corpo, esquentou os músculos. Desceu os cinco andares saltitante. Os companheiros já o esperavam, combinaram o percurso e deram partida. Enquanto corria, organizava mentalmente a semana. Às oito horas já estava debaixo do chuveiro. Depois do banho, tomou um café, comeu pão integral com uma fatia de queijo, comeu uma fruta. Folheou o jornal, deteve-se ao artigo que escrevera. Ficou contente com a matéria, a edição pouco interviu no conteúdo. O telefone tocou. Atendeu. Saiu em seguida... Não voltou para o almoço como prometera. Não apareceu para acompanhar a rodada do brasileirão com os amigos... Seu corpo foi encontrado na madrugada de segunda feira. Estava nu. Seu artigo tatuava a pele. No Matinal, no espaço de sua coluna, um artigo sobre a importância do silêncio para uma vida longa...  

sábado, outubro 22, 2016

ÁGABO E AGATÃO


      Uma das versões do infortúnio do jovem Tirésias informa que o mesmo pastoreava próximo Uma das versões do infortúnio do jovem Tirésias informa que o mesmo pastoreava próximo às fontes de Hélicon, e sentindo sede Tirésias procurou deter-se a tomar água, para sua surpresa a deusa Atenas ali se banhava em companhia de Cáriclo, ninguém mais que a mãe de nosso jovem pastor. Tirésias, segundo o cronista da época, “sem querer, viu o que não é lícito ver”. Por tal motivo, o jovem pastor, de imediato, foi punido à perda da visão. Abaixo de rogos da mãe, Atenas, que nada podia fazer, pois não podia revogar a lei de Cronos: “quem observar um dos imortais sem que o próprio deus concorde, paga alto por tê-lo visto”, bem observou: “o ato, quando se cumpre, não é mais revogável”. Mas diante do sofrimento materno, para consolar sua bela companheira, Atenas concedeu ao jovem Tirésias um dom inimaginável. “Ó companheira!”, disse, complacente, a divina Atenas, “não te lamentes por isso; a ele, por teu favor, muitos outros prêmios estão, por mim, reservados: farei dele um adivinho digno de ser cantado pelas gerações futuras, de certo, ele será muito mais notável do que qualquer outro”. Tirésias habitou em Tebas e chegou a viver oito ou nove gerações, sendo o mais respeitado clarividente de toda mitologia grega.
Menos afortunado que Tirésias foi, na mitologia latina, a sorte de Acteon. Conta a lenda que o jovem caçador, criado pelo centauro Quíron, perdeu-se de seus companheiros de caça e se deparou próximo à fonte onde Diana e suas ninfas banhavam-se. As ninfas percebendo sua presença, “gritaram e correram para junto da deusa, tentando escondê-la”. E Diana, enfurecida, longe de suas flechas, pegou um pouco de água e jogou na cara de Acteon e disse: “Agora vai e conta, se puderes, que viste Diana desnuda”. O jovem caçador transformou-se em cervo e foi perseguido e sacrificado pelos cães de caça da deusa, que o consumiram enfurecidos... Dizem serem tais cães caçadores inadvertidos, também apanhados a contemplar Diana em suas abluções...
Tia tinha sua versão para Ágabo e Agatão.
Nós ainda não sabíamos o que era realejo. Vimos um acompanhando tia à cidade. Um senhor coxo e cego manipulava uma maquina emitindo uma alegre canção. Sobre tal máquina, uma gaiola com um periquito e uma gaveta com vários papeizinhos. Um grupo de curiosos rodeava o velho com sua curiosa engenhoca. Tia também se deteve, aproximou-se, tirou uma moeda do bolso e a depositou na máquina: “Vamos lá Agatão”, falando com o periquito, “minha fortuna”. O periquito retirou um dos papeizinhos da caixa e o depositou na mão estendida de tia. Tia tomou o papelzinho e o guardou seguro dentro do sutiã para que, em casa, a prima o lesse. A tarde não passava tal nossa curiosidade para saber o que dizia o papelzinho. As horas se estendiam intermináveis e a noite não caia.
Finalmente veio o momento esperado, vó cerzia umas camisas de tio, quando tia, engomando, começou: “Em remoto tempo, lá pelas bandas de Santa Luzia, contam, vivia certa Diana, benzedeira e parteira respeitada e temida, acreditavam ser feiticeira. Tal Diana, contam, tinha vistosa filha de nome estranho, não me recordo bem, mas me parece, Algama se chamava a filha de Diana. Contam que tal moçoila era costumada a buscar água finzinho de tarde no ribeirinho próximo. E que a tal costumava aproveitar para banha-se... Tinha pelas bandas de Santa Luzia dois irmãos muito abusados, dados a traquinagens e invencionices. Combinaram expiar a bela moça no ribeirinho e esconder-lhe as roupas, esperando ela voltar nua para casa. Então, Agatão e o irmão Ágabo, que puxava uma das pernas, procuraram atuar o planejado. Não sabiam os malandros o que os esperavam. E foi Ágabo quem assim a história me contou: “Descemos ao ribeirinho, eu e Agatão, para pregarmos uma peça na bela filha de Diana. Nós nos escondemos atrás de umas pedras e a esperamos desnudar-se. Mas, nada! Vimos foi a jovem tornar-se uma bela cotiara. Estupefatos com o que víamos, não demos conta da enorme coruja que nos alcançava. Desfaleci. Acordei já em casa, cego. Agatão ficou um tempo sumido. Um dia posou em meu ombro, neste periquito. De Diana e da filha nada mais soubemos. Lembro-me apenas de uns olhos enormes de coruja sobre nós e da bela cotiara serpenteando as águas do riachinho... ”
Tia tomou prima de lado para ler-lhe a sorte. Curiosos aguardávamos. Tia pôs-nos a dormir com severa reprimenda: “no desejo e na fortuna de outrem, quem o olhar lança a vista perde”. E vaticinou contra prima: “e tu, mocinha, se contares, rã serás.” Até hoje prima se faz de muda, quando tocamos no assunto...
“Ei Agatão! Minha fortuna.” Estendo ao velho Ágabo uma nota de cinco reais...        

terça-feira, outubro 18, 2016

SOBRE EDUCAÇÃO

Eu acredito seriamente que apenas a EDUCAÇÃO nos fará uma nação autônoma. Mas não descuido em pensar que os que receberam as melhores oportunidades de ensino e que estudaram nas melhores escolas e universidades são os que mais   facilmente se tornam reacionários, defendem o Estado mínimo, mas se locupletam da corrupção e dos programas de governo que favorecem o sistema financeiro  e defendem com naturalidade o regime de exceção, o desmonte do Estado Brasileiro, o interrompimento das políticas de inclusão social, principalmente as de acesso à educação. Só a EDUCAÇÃO nos salva, mas quem as merece ter? Na acepção dos que ora usurpam o poder político, com o beneplácito apoio dos batedores de panela,  apenas os que podem pagar. A Educação que os "bem formados" pregam aos filhos dos trabalhadores é a eficiência. O trabalhador não precisa saber, não precisa pensar, refletir, se manifestar, questionar, precisa apenas desenvolver habilidades e competências que o torne eficiente e consumível. Para tanto, não é necessário se investir em educação, na valorização e formação de professorado... Na verdade, para os bem educados, que amam o verde-amarelo de nossa bandeira, investir em EDUCAÇÃO é gasto. Só a EDUCAÇÃO torna os homens autônomos, mas o que oferecem ao filho do trabalhador é a quimera de que ele também é consumidor... Os bem formados dessa nação, em geral, são fascistas. A EDUCAÇÃO também produz monstros, mas acredito que ela nos é a saída contra a egolatria de nossa tacanha elite diplomada...

domingo, outubro 16, 2016

O INCRÍVEL HOMEM DE DOMINGO


Acorda no rotineiro horário de todos os dias, mas concede-se um tempo a mais na cama. Pode contemplar o sono confiante da companheira. Percebe com satisfação os sinais de uma longa vida juntos. Uma lembrança de tempos remotos invade-lhe e o apraz. “Estamos envelhecendo”, pensa. Levanta, lava o rosto, escova os dentes, ajusta os cabelos. Circula pela casa e percebe que apenas o mais moço dormiu em casa. Prepara o café, folheia o matinal, liga a televisão, abre a porta recepcionando o efusivo Banzé, um vira-latazinho amarelado. Fazem festa, prepara-lhe a ração: “Vamos tomar um banho, rapazinho!” O animal parece entender; murcha as orelhas, baixa o olhar. Troca o pijama por um conjunto de moletom surrado. Vai à feira, encontra antigos companheiros, cumprimenta-os com cordialidade, com um ou outro estende um pouco mais a conversa, faz as compras da semana, nota a variação dos preços, come pastel, toma caldo de cana. Já em casa, encontra a companheira no banho, saúda-a com um selinho, evitando se molhar. Por jogo a companheira lhe faz respigar água da ducha. “Comprou tomates para o molho?” “Sim!” Prepara o banho de Banzé que se esconde atrás da maquina de lavar. Não o poupa, e contra sua vontade o joga na banheira... Agora cuida do carro, ouvindo Tim Maia, Tom Zé, Maysa... A companheira lhe trás suco, biscoitos, comenta algo acerca do mais velho: a família deve crescer... Ajustado o carro, toma banho, socorre na cozinha, limpando a louça, picando alho, cebola, beliscando o bacon dourando... Almoçam, a futura nora anuncia a vinda de Gusthavo ou Lhaila, brindam... Agora tira uma soneca, acompanhado de Banzé... O mais moço anuncia estar indo ao Shopping com os amigos... Acompanha o futebol na televisão, discute com os comentaristas, “quanta asneira numa só frase!” A companheira ri, meneando a cabeça: “não te ouvem!”... O domingo vai minguando, prepara um lanche rápido para si e para a companheira, tomam vinho. Ele lê para ela versos de Hilda Hilst, assistem um documentário sobre a Revolução Cubana... O mais moço anuncia estar em casa. O mais velho chega logo em seguida. A companheira corre a casa verificando portas e janelas, apagando as luzes... Prepara as coisas para a semana... Ele já deitado, espera a razão de seu ser, folheando um livro. Acolhe-a junto a si. Abraça-a ternamente, desejando uma boa noite e: “sonhos comigo!”. A companheira repousa a cabeça sobre seu ombro: “vencemos mais um domingo!”       

sábado, outubro 15, 2016

DAS DING




As alucinações visuais são frequentes nas histéricas mas podem, de fato, aparecer em qualquer estrutura clinica (neurose, psicose e perversão). Elas são como o sonho: representações inconscientes que, de repente, se acendem de desejo e se imaginarizam no mundo sensível do sujeito. Elas brilham de libido. (Antonio Quinet)


Meus fantasmas aparecem-me nas horas menos oportunas. Quando menos estou preparado, eis que de uma pagina de livro, salta-me Euripides dos Santos e sua melancólica sabedoria. Rodner Lúcio tinha o hábito de aparecer-me no meio da aula, reprovando-me, meneando a cabeça e levando as mãos à cabeça como se eu dissesse algum absurdo. Talvez dele eu tenha me livrado. Leopoldo gosta de atrapalhar-me em meus relacionamentos amorosos. Christine Ramos, uma flor em meu jardim, recita-me Adélia Prado, Hilda Hilst, Marguerite Yourcenar.
Desço à padaria, peço pão com manteiga na chapa, café puro, sem açúcar. E, enquanto aguardo, acompanho o noticiário na televisão afixada um pouco acima de minha cabeça. Espero por Mirandha, marcamos de ir à Capital, ela quer visitar uma exposição no MASP e convidou-me para acompanha-la.
O inconfundível aroma de loção de amêndoas anuncia sua chegada, atraindo meu olhar para a entrada da padaria. Das Ding a acompanha. Mirandha acena, sorri-me e vem a meu encontro, eu, indo a seu encontro, acolho-a em um abraço caloroso, beijo-a amigavelmente, atenho o olhar ao volume e ao regaço de seus seios acomodados em um top cavado azul turquesa, sob uma camisa transparente, desabotoada e amarrada na cintura. A calça legging preta, bem ajustada ao corpo, evidencia o “pacote”, como dizem os amigos. Desvio o olhar para seu sorriso. Digo-lhe amenidades, ofereço-lhe me acompanhar no matinal... Meus olhos voltam ao “pacote” e à fenda levemente anunciada. Dali, Das Ding sorri-me.
Das Ding não é, propriamente um fantasma, é um resquício, uma lembrança arcaica, uma silhueta terna, com halito de hortelã e um sorriso inibidor e provocativo ao mesmo tempo. Apresenta-se sempre sensual, atrai-me para o insinuado: o regaço, a fenda. Das Ding é desdobro do desejo (no) outro, inibe-me, retrai-me, desconcerta-me, instiga-me. Sorri-me.
Procuro desviar o olhar, correndo-o à televisão, mas ele escorrega ao olhar verde mar de Mirandha, à fenda. Mirandha parece perceber, move com sutileza a bolsa tiracolo cobrindo-se. Esboço um sorriso confuso. Tergiverso sob as expectativas do dia. Ela Sorri-me. Escorrego o olhar para o regaço dos seios.
Tomamos o café e tento acompanhar Mirandha explicando-me uma situação embaraçosa que se metera. Depois, fala-me de Michelangelo, motivo de nossa visita ao MASP, com entusiasmo e familiaridade.  Entre nós, Das Ding evoca memórias remotas, embebidas de fantasia.
Quando criança mãe costumava me levar com ela para o banho. Tinha medo que eu, só, me acidentasse. Eu brincava com seus óleos e shampoos enquanto ela massageava os seios, o clitóris; corria a navalha pela pele... Então, ela untava-se de uma loção de um aroma suave de rosas, tomava-me no colo e dava-me de mamar... Não sei se isso ocorria de fato, mas é assim que recordo... Das Ding cheira a rosa.
Eu e Mirandha deixamos a padaria e tomamos o trem. Animada, Miranda fala-me de seu curso de esteticismo, de técnicas de limpeza de pele, de depilação... Eu procuro acompanha-la, dissimulo mal, estou preso ao regaço de seus seios, ao “pacote”, à fenda, à Das Ding sorrindo-me brejeira.
O perfume de mãe invade o trem e convoca-me Martha, minha irmã. Eu tinha nove, dez anos, ela doze ou treze. Martha vestia-se com as peças de mãe e desfilava pela casa dando ordem como mãe. Desde que ela sangrou, mãe vetou-nos o banho juntos... Mãe pegou-me observando Martha pela fresta da porta... Martha tirava as peças como mãe e corria a navalha pelo corpo e se massageava parecendo saber observada... Pai castigou-me de cinta e proibiu-me sobremesa uma semana... Martha esperava tudo se aquietar, vinha deitar-se comigo, deixava-me sentir seus escassos pelos e massagea-la por baixo da coberta. Das Ding sorri-me e diz que “o desejo produz memória de coisas que nunca ocorreram, produz sombra de sombra, um episódico em cerca de gozo, sombra sem objeto”...
Durante o passeio, que muito agradou Mirandha, comemos pizza, pastel, sorvete, doces. Tomamos cerveja, café, licores. Andamos pela Paulista, fomos ao cinema.
Tudo memórias revestidas de sensualidade. Mirandha, suas formas, sua voz, seu sorriso, provocava-me, evocando-me cheiros, sabores, acalantos remotos e incertos... Produzia-me inquietação e desconforto. No fim da noite, despedi-me de Mirandha, tomando vinho, relembrando a jornada, comentando detalhes do filme, da exposição, de uma ou outra cena que capturamos na Paulista.
Das Ding evanesceu sem que eu a apreendesse. Mirandha sorria-me, eu era melancolia: o olhar preso à fenda de sua vulva e ao inconfundível aroma de hortelã misturado a óleo de coco, que as mulheres de minha família costumavam usar após o banho...
De meus fantasmas, Das Ding é lembrança de coisas que não vivi...  


quinta-feira, outubro 13, 2016

BRIGITTE BARDOT



Fora apenas uma alucinação... Olhos verdes claros, pele rosada, cabelos castanhos, lisos, escorridos, lábios finos, sorriso tímido, seios pequenos... Fora apenas alucinação, um sonho talvez.
Era uma manhã fria de terça-feira. Acordei nauseado. Levantei-me. Tomei um banho rápido. Vesti-me sem pressa. Liguei o radio. No lugar do café, tomei dois copos seguidos de conhaque. Abri a janela, a brisa úmida e fria bafejou-me o rosto. Não se via a cidade coberta pela névoa...
Brigitte era um sonho, a aluna exemplar. Tímida, sentava na primeira fileira, terceira carteira. Aplicada nos estudos, falava apenas o necessário... Brigitte era um sonho realizando-se...
Eu, de fato, não me sentia acordado. O banho, o conhaque no lugar do café, a manhã fria tomada de nevoeiro, não me era real. Brigitte não era real... Acendi um cigarro, acompanhava o noticiário, folheando uma revista tomada por acaso. Tomei outro conhaque...
Não era Brigitte naquele vestido curto, colado ao corpo, os seios saltando ao decote... Era uma alucinação, um sonho: “Professor, eu te quero em mim. Todo dentro de mim”... Brigitte a aluna perfeita, sorrindo-me, tragando de meu cigarro... Tomei outro conhaque, fumei outro cigarro... O corpo alvo, quente e perfumado de Brigitte pulsava sobre mim, a menina tímida dizia coisas obscenas em meus ouvidos; seus lábios, doces lábios, roçavam meu corpo, sugavam-me...
Brigitte não era real, sua voz chamando-me para o quarto “vem, volta pra cama, vamos brincar mais um pouco”, não era real...
Ouvi um estrondo, antes que eu reagisse, a porta veio abaixo... Dois policiais empunhando suas armas: “onde está a menina? A menina, onde está a menina?”
Não soube o que responder. Não entendia o que eles perguntavam...
Eu alucinava...
“A menina, a menina, a menina???”...
Aquele corpo nu, frio, plastificado... Não, não era Brigitte. Não era Brigitte...

*****

“Na manhã desta terça-feira, a polícia recuperou uma boneca de manipulação do Centro de Estudos Aplicados ao Esporte (CEAE), que estava desaparecida desde a última quinta-feira. Chamada “Menina” pelos acadêmicos do CEAE, a boneca foi encontrada em poder do professor Adhimanto Couto, titular do curso de Antropologia e Cultura do Esporte, em um quarto de motel. Em depoimento à polícia, o professor apenas perguntou por uma certa Brigitte Bardot, segundo ele uma sua aluna. Mas a direção do CEAE informou não haver nenhuma aluna matriculada com o correspondente nome.” (24 de maio de 2011, Diário da Manhã)