terça-feira, novembro 01, 2016

ANÁSTHACIO


Quando pai abria a vendinha, Anásthacio, cedo, manhãzinha, já seu rabo de galo pedia. “Era para ligar-se ao mundo”, dizia. Depois tomava rumo da estação, e já finzinho de tarde, junto com os operários da velha fábrica de tecidos, Anásthacio, encostava a jogar dominó e contar casos. “A quem couber o chapéu, faça uso!, era um seu bordão.” Todos davam o “galego”, assim o chamavam, por homem instruído, lia jornal, trazia consigo sempre uma revista, um livro. Não era de se embriagar, tomava seu rabo de galo, “pra se ligar ao mundo”, e outro “para o mundo abandonar”, quando pai, já noitinha, dispensava todos e a vendinha fechava.

Dos fregueses de pai, de Anásthacio, eu gostava. Gostava de ouvi-lo, e ele dizia que “ mal de pobre é revelar seus sonhos de riqueza perto de padre, político e banqueiro.” E completava: “riqueza de pobre não é grande coisa não, casinha cômoda, escola pros filhos, médico no posto, carteira assinada. Fora isso, pobre sonha com a loteria, mas pra coisa supérfluas: Casa na praia, carro bonito, sossego na rede. Mas vida de patrão não se ganha na loteria, se ganha extorquindo pobre.”  As pessoas riam de seus gestos com as mãos simulando destroncar galinha pro almoço, como vó fazia. Extorquir ganhava sentido.

Numa peleja com Zózimo, soldado do batalhão da polícia, que dava a ultima voz em tudo, até nas contas de pai, dado a chamar trabalhador de preguiçoso e pobre de sossegado e vadio, “tem é que matar”, dizia, invocando a proteção de Nosso Senhor Jesus Cristo, Anásthacio, sem perder a linha emendou: “desconfie (querendo dizer: não confie de maneira alguma) de quem não tendo nada, pensa primeiro no que pode perder. Geralmente, são pessoas que abraçam quem lhes pede o sacrifício por um algo impreciso: “vida melhor”, neste mundo, no futuro, porém, quando o bolo crescer, ou numa beata eternidade que não é certa, pois, depois de tanta penitência corre-se o risco de não a merecer. Tem quem humilha o empobrecido (sim, as pessoas são tornadas pobres) porque acredita ter vencido na vida, porque consegue pagar a crédito o naco a mais de carne no prato. Desconfie dessa gente, é capitão do mato, é capataz, porque come da mesa do senhor e não se acha servo... É comum a quem se desdobra para ser admitido como membro de uma classe que o desdenha a boa formação, o bom estudo, os títulos na parede – viseiras – escarnecer de quem já é humilhado e extorquido.”

“Comunista, fdp. Ateu do caralho...”, esbravejava Zózimo.

“Desconfie, meus amigos, desconfie, de gente que no meio de empobrecidos operários, se faz acima de tenente, mas sequer tem patente. Não digo quem é, mas se o chapéu couber, faça uso” .      

Pai, para evitar maior confusão, ia dispensando uns e outros e baixando a porta da vendinha.   Na manhã seguinte Anásthacio não apareceu para o tradicional rabo de galo. Zózimo sim, trazendo uma ordem judicial que proibia as reuniões e manifestação de teor político, autorizando a autoridade presente (no caso Zózimo, que mesmo sem patente achava-se mais que tenente), dar voz de prisão a quem imitisse opinião...



Tenho saudades de Anásthacio quando lei que mais uma global, não me interessei pelo nome, andou desdenhando nortistas e nordestinos e pedindo para deputados se calarem; que a policia de Santos andou prendendo artista; que houve manifestação pro Trump, na paulista; que o MBL está a combater adolescentes em porta de escola e o Malafalsa teve um gozo com o Crivella...

Eu sou esquerdopata, confesso. Isto significa que deveria, por questões dialéticas, ter os direitopatas. Mas, infelizmente não existe! E a direita brasileira, se existe, e quer ter algum respeito, tem que vir a público esclarecer que quem dá audiência a esses aloprados, não são nem arremedos do que poderia vir a ser os direitopatas. São apenas seres bizarros, que, por comer, a crédito, Mclanche Feliz, se acham príncipes de Mônaco.

Eu sigo a risca o que Anásthacio ensinou-me: desconfio de quem desdenha do empobrecido, seja do norte, do sul, da África,  dos EUA. Sim, as pessoas são extorquidas até de seus sonhos, por padres, pastores, políticos, juízes, banqueiros... Eu não dou a mínima a quem  sustenta a meritocracia da compra a prazo e, não passando de consumidor, se acha um com os que nos roubam: São seres sem patente com arroubos de presidente, deste embuste que nos governa.

Quando eu vejo cenas de policiais armados de cassetetes, bombas de gás, e a característica truculência e arrogância da força militar, tratando com adolescentes, não posso deixar de pensar no velho ANÁSTHACIO que costumava dizer: "Militar é de capitão acima! Abaixo é pobre fardado com ódio de pobreza". Quanto a um Deus de Brasilia, eu ainda estou com vó: "Juiz, meu fio", dizia, "é um terceiro que se locupleta das partes".

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