Da
vila, vô era um dos poucos que não tinha pássaro preso, e quando os homens se
gabavam de ter o melhor canoro e disputavam qual a melhor alimentação e
disciplina para manter o canto do pássaro, vô saia de lado. “Pássaro é voo e
canto”, insistia com pai que tinha em gaiola coleirinhas tui tui, canários, um
azulão... “Pássaro preso é baguá”, debatia vô com os tios... Eu não sabia o que
era baguá. “É homem tornado bicho, tal boi, tal cavalo”, dizia vô, esmiuçando
fumo, rolando cigarro, pitando.
Tia
nos contava, então, a história de um certo Rufino condenado à morte porque não
era “baguá” e deitou-se com a escravinha do senhor. Foi, no entanto, Afrânio, a
quem chamavam professor, porque andava sempre com livro ou revista embaixo do
braço e parecia uma enciclopédia ambulante, quem me explicou: “baguá era um
termo usado para negros reprodutores. Eram, geralmente, escravos obedientes e
serviçais, que por serem muito fieis aos senhores, chegando a denunciar os
companheiros que tramassem rebelar-se, gozavam de certas regalias”.
“Para
ser baguá”, lembrava Afrânio, “além de obediente e bajulador, o escravo
precisava ser forte, robusto, habilidoso. Os senhores de engenho controlavam
com que negrinhas ele deitava; observavam o ato sexual, para certificar-se que
o escravo havia de fato “enxertado” a escrava; negociavam a futura cria ainda
na barriga da escrava”.
Para
vô, baguá era escravo preso ao gozo do senhor que: “prazerava-se com o apego ao
sofrimento de outro para não dar-se com da própria dor”. Na sua função, o baguá e a escrava não eram
gente, eram gozo do senhor. Em gaiolas, “pássaros deixam de ser pássaros e nos
assemelhamos ao senhor que só encontra gozo na dor”.
Também
Afrânio condenava o cultivo de pássaros em gaiolas: “O canto de pássaro preso é
canto de injustiça, e quem comete o crime se apraz com a voz que reivindica o
que lhe é de direito: a liberdade”. Afrânio, diferente de vô, não se furtava ao
debate e se entusiasmava: “O canto preso é o lamento do voo perdido... como a
dor do negro, de carne rasgada no açoite, gritando: Liberdade! Liberdade!
Liberdade! E quem prende o voo, para gozar o canto, é como capitão do mato,
descendo a chibata”. Para vô e para Afrânio: “era preciso não ter memória de
nossos ancestrais para carregar gaiolas”.
Eu,
como vô, aprecio pássaro solto, saltitando de uma árvore a outra, ciscando o
terreiro, soltando seu canto quando lhe apraz cantar, sendo um com o céu. E vô
insistia: “homens que prendem pássaros não têm memória da dor de seus ancestrais”.
São desses dizia Afrânio que “acreditam em democracia sem chão para plantar,
sem escola para seus filhos, sem direito de celebrar seus Orixás, sem liberdade
para andar, ir e vir como se quer”.
Quando
os homens, então, se gabavam do canto de seus pássaros, vô de seus debates não
participava. Sentava no quintal, picava fumo, pitava: “Eu sou de quilombo,
guerreiro de Zumbi! Gosto de canto e liberdade!” E vô repetia com Afrânio:
“Canto sem voo é coisa de capitão do mato!”
Com
ele se juntava Afrânio e tia que nos contava de um certo negro Sebastião: “...
mão do senhor na senzala, não perdoava,
descia chibata, descia chibata, descia chibata, aprazendo-se das feridas
abrindo o corpo escravo, como arado sulcando a terra... Sebastião, mão de seu
senhor, se alimentava de dor de sangue
de lágrimas banhando o terreno; de negro se contorcendo, esvaecendo....” E tia dava
razão a vô: “baguá não era homem pleno, era apenas uma função, um instrumento”.
Para ela, canto de pássaro era bonito de se ouvir em copa de árvore: “Canto
livre é cantiga com cores de saudade, histórias de amores, das lutas do povo,
coisas de Afrânio, que não desiste”. E tia era emblemática: “Canto livre é
canto da lembrança de um tempo que será amanhã”.
Os
homens disputavam qual canoro melhor cantava. Mas aprendi com vô, tia, Afrânio que
“pássaro é voo e canto”; que canto livre carrega esperança; que é por medo que
se prende pássaros. O amanhã que se canta, no canto que o ontem relata é
liberdade.
Tenho
por demais vô, tia, Afrânio na cabeça: “Quem oprime teme liberdade. Seu gozo é
desumanidade!” Eu escrevo e gostaria, como diz o poeta, que minha escrita fosse
“canto e asas”, narrando as lutas de nossos ancestrais: lutas que será amanhã.
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