sábado, outubro 15, 2016

DAS DING




As alucinações visuais são frequentes nas histéricas mas podem, de fato, aparecer em qualquer estrutura clinica (neurose, psicose e perversão). Elas são como o sonho: representações inconscientes que, de repente, se acendem de desejo e se imaginarizam no mundo sensível do sujeito. Elas brilham de libido. (Antonio Quinet)


Meus fantasmas aparecem-me nas horas menos oportunas. Quando menos estou preparado, eis que de uma pagina de livro, salta-me Euripides dos Santos e sua melancólica sabedoria. Rodner Lúcio tinha o hábito de aparecer-me no meio da aula, reprovando-me, meneando a cabeça e levando as mãos à cabeça como se eu dissesse algum absurdo. Talvez dele eu tenha me livrado. Leopoldo gosta de atrapalhar-me em meus relacionamentos amorosos. Christine Ramos, uma flor em meu jardim, recita-me Adélia Prado, Hilda Hilst, Marguerite Yourcenar.
Desço à padaria, peço pão com manteiga na chapa, café puro, sem açúcar. E, enquanto aguardo, acompanho o noticiário na televisão afixada um pouco acima de minha cabeça. Espero por Mirandha, marcamos de ir à Capital, ela quer visitar uma exposição no MASP e convidou-me para acompanha-la.
O inconfundível aroma de loção de amêndoas anuncia sua chegada, atraindo meu olhar para a entrada da padaria. Das Ding a acompanha. Mirandha acena, sorri-me e vem a meu encontro, eu, indo a seu encontro, acolho-a em um abraço caloroso, beijo-a amigavelmente, atenho o olhar ao volume e ao regaço de seus seios acomodados em um top cavado azul turquesa, sob uma camisa transparente, desabotoada e amarrada na cintura. A calça legging preta, bem ajustada ao corpo, evidencia o “pacote”, como dizem os amigos. Desvio o olhar para seu sorriso. Digo-lhe amenidades, ofereço-lhe me acompanhar no matinal... Meus olhos voltam ao “pacote” e à fenda levemente anunciada. Dali, Das Ding sorri-me.
Das Ding não é, propriamente um fantasma, é um resquício, uma lembrança arcaica, uma silhueta terna, com halito de hortelã e um sorriso inibidor e provocativo ao mesmo tempo. Apresenta-se sempre sensual, atrai-me para o insinuado: o regaço, a fenda. Das Ding é desdobro do desejo (no) outro, inibe-me, retrai-me, desconcerta-me, instiga-me. Sorri-me.
Procuro desviar o olhar, correndo-o à televisão, mas ele escorrega ao olhar verde mar de Mirandha, à fenda. Mirandha parece perceber, move com sutileza a bolsa tiracolo cobrindo-se. Esboço um sorriso confuso. Tergiverso sob as expectativas do dia. Ela Sorri-me. Escorrego o olhar para o regaço dos seios.
Tomamos o café e tento acompanhar Mirandha explicando-me uma situação embaraçosa que se metera. Depois, fala-me de Michelangelo, motivo de nossa visita ao MASP, com entusiasmo e familiaridade.  Entre nós, Das Ding evoca memórias remotas, embebidas de fantasia.
Quando criança mãe costumava me levar com ela para o banho. Tinha medo que eu, só, me acidentasse. Eu brincava com seus óleos e shampoos enquanto ela massageava os seios, o clitóris; corria a navalha pela pele... Então, ela untava-se de uma loção de um aroma suave de rosas, tomava-me no colo e dava-me de mamar... Não sei se isso ocorria de fato, mas é assim que recordo... Das Ding cheira a rosa.
Eu e Mirandha deixamos a padaria e tomamos o trem. Animada, Miranda fala-me de seu curso de esteticismo, de técnicas de limpeza de pele, de depilação... Eu procuro acompanha-la, dissimulo mal, estou preso ao regaço de seus seios, ao “pacote”, à fenda, à Das Ding sorrindo-me brejeira.
O perfume de mãe invade o trem e convoca-me Martha, minha irmã. Eu tinha nove, dez anos, ela doze ou treze. Martha vestia-se com as peças de mãe e desfilava pela casa dando ordem como mãe. Desde que ela sangrou, mãe vetou-nos o banho juntos... Mãe pegou-me observando Martha pela fresta da porta... Martha tirava as peças como mãe e corria a navalha pelo corpo e se massageava parecendo saber observada... Pai castigou-me de cinta e proibiu-me sobremesa uma semana... Martha esperava tudo se aquietar, vinha deitar-se comigo, deixava-me sentir seus escassos pelos e massagea-la por baixo da coberta. Das Ding sorri-me e diz que “o desejo produz memória de coisas que nunca ocorreram, produz sombra de sombra, um episódico em cerca de gozo, sombra sem objeto”...
Durante o passeio, que muito agradou Mirandha, comemos pizza, pastel, sorvete, doces. Tomamos cerveja, café, licores. Andamos pela Paulista, fomos ao cinema.
Tudo memórias revestidas de sensualidade. Mirandha, suas formas, sua voz, seu sorriso, provocava-me, evocando-me cheiros, sabores, acalantos remotos e incertos... Produzia-me inquietação e desconforto. No fim da noite, despedi-me de Mirandha, tomando vinho, relembrando a jornada, comentando detalhes do filme, da exposição, de uma ou outra cena que capturamos na Paulista.
Das Ding evanesceu sem que eu a apreendesse. Mirandha sorria-me, eu era melancolia: o olhar preso à fenda de sua vulva e ao inconfundível aroma de hortelã misturado a óleo de coco, que as mulheres de minha família costumavam usar após o banho...
De meus fantasmas, Das Ding é lembrança de coisas que não vivi...  


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