Lincharam um homem
Entre os
arranha-céus,
(Li no jornal)
Procurei o crime do
homem
O crime não estava no
homem
Estava na cor da sua
epiderme
Solano Trindade, Civilização branca, nova Alexandria: 2007
Dia destes, meu filho chegou
triste da escola. Não quis comer, desinteressou-se do cachorro, exilou-se
acabrunhado, silente, em seu quarto. Algo incomum num menino vivaz, espontâneo,
falante. Procurei saber o que se passava: “Nada, quero ficar sozinho”. Deixei-o
na dele, precisava ocupar-me de uns relatórios, revisar um artigo. Um pouco
antes do café da tarde, ele se acostou a mim e ficou me observando terminar minha
revisão. Perguntei-lhe: “Tudo bem? O que houve?” Não obtive resposta. “Deve ter
balas ali na minha mala” apontei-lhe a mala acostada a uma estante. Pediu-me
colo. “O que é nefando? E lúgubre?”, perguntou-me com voz chorosa, olhar
apagado. “Lúgubre se diz de uma pessoa triste, de uma situação triste. Nefando
é algo indigno de nomear, é algo do qual não se fala, porque é algo muito
vergonhoso.” “Não quero ser negro!” falou-me com voz magoada. “E porque? O que
tem de errado ser negro?”, perguntei-lhe estupefato. “A professora disse...,
pediu pra gente pesquisar no dicionário. E o dicionário diz que negro é sujo,
encardido, lúgubre, nefando. Eu não sou sujo. Eu não quero ser negro...: não
quero ser negro!” “Querido”, disse-lhe, “você tem razão, nessas acepções nós
não somos negros e os dicionaristas deveriam rever-se.” Expliquei-lhe que, talvez
a professora não tenha alcançado seu objetivo, e procurei esclarecer-lhe que negro
não era uma condição, mas uma posição ante a vida e que a cor de nossa pele não
nos determina. [...]. Dormiu em meu colo. Enquanto me preparava um café, fiquei
elucubrando o tema, que me levou a produzir o que segue
***
“(…) O que
os racistas têm que fazer é tratar de encontrar em seus próprios corações em
primeiro lugar porque foi necessário ter um negro, porque eu não sou um negro
eu sou um homem (…) Se eu não sou o negro aqui, e vocês o inventaram, vocês os
racistas tem que descobrir por que. E o futuro deste pais depende disso, se
você é capaz ou não de fazer essa pergunta”. James Baldwin, 1963.
Nós somos humanos. Entre
humanos não há raças. Há diferenças de gênero, sociais, econômicas, culturais,
há desigualdades de oportunidades, de acesso aos bens produzidos, aos recursos
naturais, ao uso da terra,ao conhecimento. Desde sua origem, os humanos
espalham-se por todo planeta, ajustando-se a diversificados relevos geográficos
e variadas temperaturas e intempéries climáticas. Algumas bastante inóspitas.
As tonalidades de pele dos humanos são características de sua adaptação a essas
diferenças geográficas e climáticas, e à miscigenação. De tal modo a tonalidade
de pele dos humanos varia em uma escala de matizes consideráveis. Mas seja o
sujeito de pele mais clara possível, seja o de pele mais escura possível,
pertencem a uma e mesma espécie. E a espécie humana não se divide em raças.
A divisão dos homens em
raças é uma invenção covarde, maliciosa e, ela sim, nefanda, de homens sem
escrúpulos, gananciosos, orgulhosos de suas barbáries. Homens guiados pela
cobiça, pela torpeza, cegados pelo desejo de tudo possuir. Procuraram na
invenção das raças uma justificativa às suas ignomínias.
Os dicionaristas deveriam
rever o verbete Negro. Na verdade deveriam aboli-lo, pois o negro, como
condição, não existe.
O racismo existe e o
combato. Ele é responsável pelo extermínio dos povos nativos, ontem e hoje.
Pelo ingente tráfico de homens e mulheres do continente africano, aqui tornados
escravos. O racismo está presente na persistente negação à terra aos nativos e
quilombolas, no extermínio sistemático destes povos e de jovens de nossas
periferias, na indisfarçada insatisfação de setores da sociedade com o ingresso
de nossos filhos da nas universidades públicas. Na história recente da
humanidade não podemos esquecer Auschwitz,
sua face mais nefanda.
O racismo existe! O negro
não! O negro, como raça, é uma invenção, Na citação de James Baldwin eu usei racista, no lugar de branco do texto original. É
preciso considerar que nem todo homem branco é racista e que o racismo não é
uma peculiaridade de homens brancos. Também o branco é uma invenção. A raça não
existe, existe o racismo. A cor de minha pele não me define, a raça só existe
como disposição a lutar contra toda forma de ódio e contra toda tirania.
Neste
sentido, sem ser religioso, talvez se possa dizer, que ter raça é ser
instrumento de paz e levar amor onde há ódio..., esperança onde há desespero,
alegria onde há tristeza, luz onde há trevas, liberdade onde há opressão,
dignidade onde há humilhação, partilha onde há fome e exploração...
O que segue
escrevo para meu filho que tem razão: nós não somos negros, mas temos raça.
MENINO
NÃO CHORE A COR DE TUA PELE
Menino não chore a cor de
tua pele, não chore teus cabelos, o odor de teu suor. Não chore a ignorância dos
que odeiam a si mesmos antes de odiarem a ti.
Brinca, menino, com teus
sonhos. Faz do vento teu companheiro, da tarde caindo, uma canção. Corre ao
lombo de um cavalo, banhe-se nas águas do rio, converse com os pássaros e os
chame: irmãos. Cultive, menino, a paz.
Raça, menino, não é uma
condição. É postura firme, corajosa contra a opressão. É luta de quem luta
contra o ódio de quem primeiro se odeia e destila-se contra uma nação.
Menino não chore a cor de
tua pele. Ela é tua proteção. Não desdenhe os que, por pura mediocridade e
hipocrisia, destilam desinformações, cativam os ignorantes e os que desejam
poder e riqueza, e alimentam ódio em seus corações. Não os desdenhe, repito,
menino. Mas, dê conta dos que te amam e te ensinam a amar como escolha e
responsabilidade, como solidariedade...
Dê conta dos que te amam,
menino, e brinque com a esperança; arranque-a de teus livros. Não és a cor de
tua pele e se tens raça é coragem, é bandeira que se impunha contra a dor, a fome,
a humilhação. Tem raça quem se impõem contra a opressão.
Não chore a cor de tua pele
menino, não chore teu cabelo, o odor de teu suor. Não tenha vergonha do que não
és. Brinca, que é tempo de tua infância. Corre com o rio ou livre no lombo de
um cavalo, suba em árvores, converse com pássaros, cante às flores e imagine em
cada nuvem povos que se abraçam e dividem o pão. Lembre de teus ancestrais, de
seus grilhões, da expropriação de seus sonhos, seus desejos e paixões; da luta
que travaram, e mesmo sem condição de vencer a vilania, da resistência que
impuseram. Raça é fazer memória e resistir; não é uma condição, é uma postura
contra o extermínio de nossos jovens em terras quilombolas, nas reservas nativas
e nas periferias de nossos centros urbanos.
Não é a cor de tua pele que
te faz homem menino. É amar a vida, a liberdade, uma só humanidade. E raça é disposição
a lutar contra toda tirania, contra a insensatez dos que expropriam, dos que traficam
vida, negam direitos, produzem fome e sofrimento e executam homens e mulheres
por ambição.
Tenhas raça menino contra
toda opressão. Mas agora brinca, brinca e sonha, e veja nas estrelas ao redor
da lua homens partilhando o pão. Não és tua cor menino: és esperança em nosso
coração.