terça-feira, dezembro 26, 2017

QUEM MAIS NASCEU EM 25 DE DEZEMBRO?

Por esses dias entrei em uma polêmica devido um filme que não assisti, mas, o como me foi relatado, achei tratar-se de desinformação histórica, misturado com teoria da conspiração e uma pitada de desonestidade intelectual. Esses elementos fazem muito sucesso entre desavisados militantes de redes sociais. E bastou aproximar-se o natal para aparecer em minha linha do tempo representações gráficas divulgando que outros deuses de outras tradições religiosas teriam nascido em 25 de dezembro e nas mesmas condições do Galileu.  Um pouco e superficial conhecimento de história nos esclarece que o natal é uma convenção estipulada por Constantino em meados de século IV de nossa era, pois não é possível precisar a data de nascimento do Cristo que, para as tradições pré-catolicismo, teria ocorrido entre março e abril, supondo que as informações do Evangelho de Lucas sejam fidedignas. Para se dar importância a algo que deveria servir apenas como curiosidade, pois se trata do fantástico e do sobrenatural, é preciso uma forte dose de fanatismo. E os ateus não estão longe de serem fanáticos. Culturalmente sou cristão e, por resgate de minhas origens ancestrais, sou, também, filho de Ogum, filho de Oduduwa. Na tradição Iorubá, Oduduwa é quem criou a terra e todo o universo como o conhecemos e, ao lado de Obatalá, possibilitou o surgimento da vida. O tal filme que não assisti, não trata de Ogum. Fico feliz! No entanto não deixo de ficar especulando o nascimento de Ogum em 25 de dezembro. Mas acho que a data cabe mais a Oxalá que está sincreticamente relacionado a Jesus. Nas culturas maia e asteca, quem terá nascido em 25 de dezembro? Proponho-me pesquisar. 

domingo, dezembro 17, 2017

CONTO DE NATAL

Os fatos que ora narro ocorreram de recente numa cidade provinciana, nos limites da Capital.
Famílias de influentes religiosos e influentes políticos fizeram aliança para assumirem a gestão da singela cidade de Nova Jerusalém. Para selar o pacto acertaram, sem consultar os interessados, o casamento de Elis A Beth e um tal Cardoso. Ocorre que, numa certa, tarde Elis A Beth, encontrando-se só – os  pais viajavam – recebeu a visita de um parente sacerdote que pretestou portar noticias de uma tia distante. Elis A Beth o acolheu, “era parente, era sacerdote, trazia noticias de uma tia distante..., era gentileza oferecer-lhe ao menos um copo d’água...
Era tese central do pacto político entre os influentes religiosos e os influentes políticos a defesa da “família tradicional” e seus valores. E caberia ao tal Cardoso, distinto intelectual, elaborar as bases programática da futura campanha eleitoral, ressaltando os tais valores que garantiriam a sacralidade da família tradicional, os direitos dos cidadãos de bem, a responsabilidade da mulher-mãe, sob qualquer circunstância, em garantir os desígnios divinos.      
Elis A Beth ficou meses em viagem. Diziam ter ido assistir a prima distante. Quando retornou sucumbiu aos interesses de seu clã, casou-se com o tal Cardoso, que ciente do seu infortúnio, mas visando manter o pacto pela gestão da cidadela, acolheu-a distintamente.
Elisa a Beth, por completar 17 anos, apareceu na noite de Natal, num especial televisivo, discursando a respeito do dom da vida e da responsabilidade da mulher-mãe, sob qualquer circunstância, em garantir os desígnios divinos. Tomava por modelo a judia Maria.
Nos olhos de Elis A Beth se antevia, no entanto, que ela desejava outra narrativa, a sua narrativa. A narrativa de uma certa tarde sombria, em que um parente sacerdote, aproveitando a ausência dos seus pais... Aquela tarde povoa suas noites de sono, a sufoca de dor e o sofrimento, mas daquela tarde ela nunca pode falar. E, em frete as telas, é preciso sorrir e manter o pacto.

Elis A Beth, nos bastidores, chorou o filho que não nasceu, o menino Jesus abortado, exigência do tal Cardoso e assentido pelos influentes religiosos, para garantir a aliança pela governança da provinciana cidadela aos limites da Capital.     

sexta-feira, novembro 24, 2017

UM DIA EU E O MAR HAVEREMOS SERMOS UM



Flor de meu ser,


Há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa. Passo por uma rapaziada demasiado desalentada, desorientada, assumindo bandeiras que as aprisionam enganando-as com promessas de liberdade. Passo a diante e não acompanho o ódio em seus discursos. Sento em um banco de praça. O mar murmura sedutor sob um céu, ornado de estrelas e de uma tranqüilidade indiferente. Se você estive comigo, estaríamos localizando a carruagem de Odin ou falando de Calisto, Arcas, Zeus... As poucas pessoas com quem me relaciono me pedem que eu seja mais otimista. Dizem que “o pessimismo é um luxo de quem tem dinheiro”.  Não seria o meu caso. “Nada melhor que um dia após o outro”, o “tempo cura todas as feridas”. Retruco-lhes com certa arrogância “os dias se sucedem sem que nossos sonhos se realizem. É sempre uma frustração que nos arremata o dia. E “não há ferida que não deixe cicatriz e a dor desta é mais profunda que a da ferida. ” Mas eu não tenho feridas, e não carrego cicatrizes. Minha angustia esta estampada todas as manhãs nas primeiras paginas dos jornais.  Na televisão todo mundo quer ser outra pessoa e as pessoas vivem recordando um passado que não existiu. Tudo é sempre desejo e o desejo não se sacia. A realidade é apenas loucura e contradição.  Mas como diz o menestrel: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais...” A vida não tem uma vontade para mim. Eu não tenho o que lhe propor. Ficamos neste empate. A noite avança, um pescador entoa endechas soturnas (me permitas o pleonasmo) enquanto se prepara para enfrentar o mar. É nessas horas em que “não é noite, não é dia; não é dilúculo, não é crepúsculo” que conjecturo, por própria iniciativa, não mais ser. Sinto o aclamo do mar para que eu seja um com ele. Abraçado ao mar é a forma mais digna de não ser. Se você estivesse aqui, tomaríamos vinho e banho de mar e contemplaríamos o sol, seus primeiros raios, abençoando o Cristo Redentor indiferente a mais uma noite de assombros, descalabros, silentes sofrimentos nos morros e favelas. Para quem este Cristo abre os braços? Talvez viesse-lhe aos lábios, em murmúrios como do mar: “Estranho o teu Cristo, Rio/ Que olha tão longe, além/ Com os braços sempre abertos/ Mas sem proteger ninguém...”. O dia ainda ensaia sua jornada, crianças, pés descalços, já despontam nos faróis. De todas as loucuras é a que mais me incomoda, aflige, desnorteia... Um dia eu e o mar haveremos sermos um. 

domingo, novembro 12, 2017

A DEMÉTRIO MAGNOLI

Sr. Demétrio Magnoli,
Com a devida licença, me permito uma outra leitura do caso Waak, a partir de seu texto. Antes de tudo: Não se tinha notícia de uma manifestação política racista ou um gesto de injúria racial do jornalista. Agora, independente de sua vontade, se tem. E é constrangedor! Repisá-lo, de fato, não nos purifica, mas deveria nos ensinar algo. “Homens públicos, mesmo sós, são públicos!”
Depois, a uma criança, a um adolescente, a um tresloucado, relevamos certos comportamentos, certas expressões. Achamos mesmo graça devido a ingenuidade, imaturidade ou insanidade, em coisas que fazem ou dizem. Mas, a uma altura da vida, nem em pensamento deveríamos nos permitir determinadas especulações, fantasias, desejos, muito menos certas expressões, mesmo que “gracejos idiotas”. Minha avó sempre nos ensinou: “Modere a língua em casa, para não falar demais na rua”. Se Waak, traquejado que é do mundo em que vive, da profissão que exerce, do que representa com o papel que assume, ciente de que pontos e vírgulas fora de lugar destorcem fatos e noticiais, e arruínam carreiras, se ele considerasse o simples princípio de minha avó, talvez não fosse vítima, antes de si mesmo, depois do contemporâneo minotauro a que fazes alusão. És certo, as utopias totalitárias que o senhor apontou não produziram o “homem novo” que se esperava. No entanto, o homem que temos produzido, cultivado com “discursos políticos odientos”, encontra em tipos como Waak, que seguem a pedagogia social do neoliberalismo, que insiste na disputa entre indivíduos e não na solidariedade, seus mais estimados gurus. Para Waak, para deleite de nosso minotauro, o leite já derramou. Para nós, porém, homens públicos e educadores, fica, a partir do ocorrido, um antigo ensinamento não muito diferente do que dizia minha avó: “Estando só, vigia teus pensamentos, pois estes se convertem em palavras. Em sociedade, vigie tua língua; pois nos julgam não pelo que somos; mas por nossas palavras”.

Com desejos de uma boa semana,

Claudio Domingos Fernandes

sábado, novembro 11, 2017

OS TABULAS RASAS



O povo não é hegemônico. E há uma camada de nosso povo, diminuta, ciosa de sua bem formada ignorância. Digo isto, porque não são pessoas sem formação, pelo contrário, geralmente freqüentaram os melhores colégios, as melhores universidades. Algumas carregam imponentes títulos acadêmicos. Não obstante são tábuas rasas: nada sabem de seu país, de seus personagens, os que se projetaram e inscreveram seus nomes à história da nação e para além de nossas fronteiras. Tudo o que é da terra desdenham ou desconhecem. Conservam um orgulho fidalgo. Afagam a vã ilusão de serem herdeiros de alguma nobreza européia. È um tipo comumente presente em nossa literatura. Nelson Rodrigues e Lima Barreto o descreve com sutilezas. Como disse, são pessoas bem formadas, mas tabulas rasas. Sempre fizeram dos estudos motivo para se distinguirem socialmente, não para, de fato, conhecer e produzir conhecimento e tornarem-se sabedores de algo. Contentam-se em papagaiar ditos formadores de opinião – em geral, colunistas de jornais e revistas de grande circulação, que se dizem independentes em suas opiniões, mas, na verdade, se submetem a escrever o que seus patrões lhes impõem –. Outro dia, ouvi um distinto representante da categoria afirmar com a arrogância de um livre docente: “eu há bem quinze anos não sei o que é ler um livro, folheio vez ou outra uma ou outra revista, corro os olhos pelo noticiário, sigo um ou outro comentarista de política ou economia, e me dou por satisfeito. Depois, o brasileiro não produz nada que valha pena. Somos péssimos escritores...” Até recentemente o grosso desta categoria se sentia bem, alheando-se à política. Com os olhos voltados para a América do Norte ou sonhando uma vida cômoda no velho continente, contentavam-se a comparecer às urnas. A breve ascensão de uma fatia das camadas populares incomodou seguimentos importantes da sociedade e esta camada de bem formados tabulas rasas foram envolvidos em sua insatisfação. Sem perceberem nossos doutos boçais se viram a manifestar, com resultados desoladores. Daí que temos assistido nos últimos meses, após terem se envolvido no engodo-golpe que colocou à direção do país uma quadrilha de estelionatários, suas equivocadas manifestações contra atividades e exposições artísticas e contra artistas, cientistas e intelectuais da pátria e de além fronteira. Não fosse o discurso de ódio que acompanha suas manifestações, diria são dignos de pena. No entanto, assentados em interpretações equivocadas da sagrada escritura, referendadas por pastores e padres de intenções duvidosas e seguindo grupos com nítidos interesses políticos e econômicos, que manipulam informações, distorcem fatos e inventam supostas conspirações, nossos camaradas de tão especifica camada, embora acreditem estarem defendendo valores democráticos além da família tradicional, acabam por sustentar o joguete das elites políticas e econômicas que vilipendiam o país e o entrega à especulação financeira. Repito, não fosse o discurso de ódio que sustentam, seriam dignos de pena. Nossos doutos-boçais deixam a literatura para se tornarem nossa maior preocupação política, se tornaram a base de sustentação de ideários faci-totalitários.

sexta-feira, novembro 03, 2017

EU NÃO SOU NEGRO


Lincharam um homem
Entre os arranha-céus,
(Li no jornal)
Procurei o crime do homem
O crime não estava no homem
Estava na cor da sua epiderme

Solano Trindade, Civilização branca, nova Alexandria: 2007

Dia destes, meu filho chegou triste da escola. Não quis comer, desinteressou-se do cachorro, exilou-se acabrunhado, silente, em seu quarto. Algo incomum num menino vivaz, espontâneo, falante. Procurei saber o que se passava: “Nada, quero ficar sozinho”. Deixei-o na dele, precisava ocupar-me de uns relatórios, revisar um artigo. Um pouco antes do café da tarde, ele se acostou a mim e ficou me observando terminar minha revisão. Perguntei-lhe: “Tudo bem? O que houve?” Não obtive resposta. “Deve ter balas ali na minha mala” apontei-lhe a mala acostada a uma estante. Pediu-me colo. “O que é nefando? E lúgubre?”, perguntou-me com voz chorosa, olhar apagado. “Lúgubre se diz de uma pessoa triste, de uma situação triste. Nefando é algo indigno de nomear, é algo do qual não se fala, porque é algo muito vergonhoso.” “Não quero ser negro!” falou-me com voz magoada. “E porque? O que tem de errado ser negro?”, perguntei-lhe estupefato. “A professora disse..., pediu pra gente pesquisar no dicionário. E o dicionário diz que negro é sujo, encardido, lúgubre, nefando. Eu não sou sujo. Eu não quero ser negro...: não quero ser negro!” “Querido”, disse-lhe, “você tem razão, nessas acepções nós não somos negros e os dicionaristas deveriam rever-se.” Expliquei-lhe que, talvez a professora não tenha alcançado seu objetivo, e procurei esclarecer-lhe que negro não era uma condição, mas uma posição ante a vida e que a cor de nossa pele não nos determina. [...]. Dormiu em meu colo. Enquanto me preparava um café, fiquei elucubrando o tema, que me levou a produzir o que segue

***
“(…) O que os racistas têm que fazer é tratar de encontrar em seus próprios corações em primeiro lugar porque foi necessário ter um negro, porque eu não sou um negro eu sou um homem (…) Se eu não sou o negro aqui, e vocês o inventaram, vocês os racistas tem que descobrir por que. E o futuro deste pais depende disso, se você é capaz ou não de fazer essa pergunta”. James Baldwin, 1963.

Nós somos humanos. Entre humanos não há raças. Há diferenças de gênero, sociais, econômicas, culturais, há desigualdades de oportunidades, de acesso aos bens produzidos, aos recursos naturais, ao uso da terra,ao conhecimento. Desde sua origem, os humanos espalham-se por todo planeta, ajustando-se a diversificados relevos geográficos e variadas temperaturas e intempéries climáticas. Algumas bastante inóspitas. As tonalidades de pele dos humanos são características de sua adaptação a essas diferenças geográficas e climáticas, e à miscigenação. De tal modo a tonalidade de pele dos humanos varia em uma escala de matizes consideráveis. Mas seja o sujeito de pele mais clara possível, seja o de pele mais escura possível, pertencem a uma e mesma espécie. E a espécie humana não se divide em raças.
A divisão dos homens em raças é uma invenção covarde, maliciosa e, ela sim, nefanda, de homens sem escrúpulos, gananciosos, orgulhosos de suas barbáries. Homens guiados pela cobiça, pela torpeza, cegados pelo desejo de tudo possuir. Procuraram na invenção das raças uma justificativa às suas ignomínias.
Os dicionaristas deveriam rever o verbete Negro. Na verdade deveriam aboli-lo, pois o negro, como condição, não existe.
O racismo existe e o combato. Ele é responsável pelo extermínio dos povos nativos, ontem e hoje. Pelo ingente tráfico de homens e mulheres do continente africano, aqui tornados escravos. O racismo está presente na persistente negação à terra aos nativos e quilombolas, no extermínio sistemático destes povos e de jovens de nossas periferias, na indisfarçada insatisfação de setores da sociedade com o ingresso de nossos filhos da nas universidades públicas. Na história recente da humanidade não podemos esquecer Auschwitz, sua face mais nefanda.
O racismo existe! O negro não! O negro, como raça, é uma invenção, Na citação de James Baldwin eu usei racista, no lugar de branco do texto original. É preciso considerar que nem todo homem branco é racista e que o racismo não é uma peculiaridade de homens brancos. Também o branco é uma invenção. A raça não existe, existe o racismo. A cor de minha pele não me define, a raça só existe como disposição a lutar contra toda forma de ódio e contra toda tirania.
Neste sentido, sem ser religioso, talvez se possa dizer, que ter raça é ser instrumento de paz e levar amor onde há ódio..., esperança onde há desespero, alegria onde há tristeza, luz onde há trevas, liberdade onde há opressão, dignidade onde há humilhação, partilha onde há fome e exploração...
O que segue escrevo para meu filho que tem razão: nós não somos negros, mas temos raça.

MENINO NÃO CHORE A COR DE TUA PELE

Menino não chore a cor de tua pele, não chore teus cabelos, o odor de teu suor. Não chore a ignorância dos que odeiam a si mesmos antes de odiarem a ti.
Brinca, menino, com teus sonhos. Faz do vento teu companheiro, da tarde caindo, uma canção. Corre ao lombo de um cavalo, banhe-se nas águas do rio, converse com os pássaros e os chame: irmãos. Cultive, menino, a paz.
Raça, menino, não é uma condição. É postura firme, corajosa contra a opressão. É luta de quem luta contra o ódio de quem primeiro se odeia e destila-se contra uma nação.
Menino não chore a cor de tua pele. Ela é tua proteção. Não desdenhe os que, por pura mediocridade e hipocrisia, destilam desinformações, cativam os ignorantes e os que desejam poder e riqueza, e alimentam ódio em seus corações. Não os desdenhe, repito, menino. Mas, dê conta dos que te amam e te ensinam a amar como escolha e responsabilidade, como solidariedade...
Dê conta dos que te amam, menino, e brinque com a esperança; arranque-a de teus livros. Não és a cor de tua pele e se tens raça é coragem, é bandeira que se impunha contra a dor, a fome, a humilhação. Tem raça quem se impõem contra a opressão.
Não chore a cor de tua pele menino, não chore teu cabelo, o odor de teu suor. Não tenha vergonha do que não és. Brinca, que é tempo de tua infância. Corre com o rio ou livre no lombo de um cavalo, suba em árvores, converse com pássaros, cante às flores e imagine em cada nuvem povos que se abraçam e dividem o pão. Lembre de teus ancestrais, de seus grilhões, da expropriação de seus sonhos, seus desejos e paixões; da luta que travaram, e mesmo sem condição de vencer a vilania, da resistência que impuseram. Raça é fazer memória e resistir; não é uma condição, é uma postura contra o extermínio de nossos jovens em terras quilombolas, nas reservas nativas e nas periferias de nossos centros urbanos.
Não é a cor de tua pele que te faz homem menino. É amar a vida, a liberdade, uma só humanidade. E raça é disposição a lutar contra toda tirania, contra a insensatez dos que expropriam, dos que traficam vida, negam direitos, produzem fome e sofrimento e executam homens e mulheres por ambição.

Tenhas raça menino contra toda opressão. Mas agora brinca, brinca e sonha, e veja nas estrelas ao redor da lua homens partilhando o pão. Não és tua cor menino: és esperança em nosso coração.   

segunda-feira, outubro 30, 2017

NÃO SOU APENAS MINHA PELE


Negro, eu nego
as acepções de teu vocabulário
E de tua torpe teoria,
de minha inferioridade,
me liberto
Nefanda é tua desmedida cobiça
Sujas são tuas mãos, não minha pele
Elas se impregnam do sangue
de homens e mulheres
filhos destas terras,
 e da distante África,
 de meus ancestrais
Eu não tenho porque envergonhar-me
de mim, da cor de minha pele,
de meus cabelos pixaim
Negro, eu nego
as acepções de teu vocabulário
E de tua torpe teoria
Sou desejo, sou vontade, sou paixão
Lúgubre é teu coração
não meu canto:
celebração, resistência, afirmação
Negro,
não sou minha pele,

sou uma nação.

sábado, outubro 28, 2017

MENOS PAULO FREIRE, MAIS BOLSONARO

Em uma diáfana manhã parnasiana de um azul de soneto deparei-me com Nelson Rodrigues. Tomamos juntos o trem para a Capital. Sujeito de prosa boa esse Nelson. Tornou a viagem, geralmente um perrengue, menos incomoda. O tempo passou e não percebemos.  Não obstante torcedor do Fluminense, Nelson é um futebolista genial. Ufanista de nosso escrete canarinho, admirador confesso de Garrincha e Pelé, Nelson se mostra um profundo conhecedor de nosso estofo. Embora lamente, vez ou outra, nosso “complexo de vira-lata”, ele acredita no brasileiro e afirma: “o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem brasileiro entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem.” À medida que o trem avança, e os espaços vão sendo disputados, a cada nova estação, vou me deixando convencer que suas crônicas são “um dado fundamental para sociólogos, historiadores e políticos” e que “este país é uma descoberta contínua e deslumbrante”. Estamos quase chegando a nosso destino, quando ele me diz: “nossa resenha ensina mais sobre o país do que Os sertões, no princípio do século. Fazia referimento à clássica obra, de Euclides da Cunha. A viagem chega a seu destino, espanta-me não perceber o tempo passar. Tenho que despedir-me de Nelson e entregar-me ao dinamismo dos negócios humanos e seu tédio cotidiano.
Passo a jornada produzindo relatórios que serão assinados e engavetados sem serem lidos, tomando café, consultando o relógio, tentando certa sociabilidade, participando de um ou outro debate de natureza inútil. Alieno-me. Retomo e rumino fragmentos do agradável encontro com Nelson. Não precisa muito, o próprio Nelson está ao meu lado...,
O brasileiro não é um tipo único. Em Nelson, dois modelos se destacam: o “pau de arara”, o “subdesenvolvido”. “O pau de arara é um tipo social, humano, econômico, psicológico...” “Vamos imaginar”, diz-me Nelson, tentando ilustrar-me seu “pau de arara”, “Vamos imaginar esse pau de arara na beira da estrada. Que faz ele? Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com infinito deleite, a sua sarna bíblica... Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda acrescentam a humildade.” E tem mais: “o sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima.” O “subdesenvolvido” é o “brasileiro que não gosta de brasileiro”, um Narciso às avessas”, “vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia” (veio-me em mente um certo nosso deputado em recente viagem aos EUA). O “subdesenvolvido” tem vergonha de sua condição nacional,  cospe na própria imagem, desdenha o que produzimos, gostaria de ser um Lord inglês. Negam nossa história, negam nossos tímidos avanços, nossas poucas conquistas, nossos poucos homens e mulheres que se destacam na arte, na cultura, no esporte. Desdenham nossas potencialidades, vendem impotência e frustração. O subdesenvolvido de Nelson, são os “entendidos” que não têm um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos. Ressentidos com os fatos, os “entendidos” parecem dizer: “se os fatos não confirmam o que escrevo, pior para os fatos”. Os “subdesenvolvidos” de Nelson limitam-se a vender depressão, demonstram pouco apreço a nosso povo. Sonham com uma sociedade restrita. Nela não há “um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo...” (ou do Corinthians, ou do Bahia). No Brasil dos subdesenvolvidos não cabem “paus de arara”, só há lugar para “os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites”.     
Quando deixo a repartição, a tarde declina anunciando uma noite parnaziana, com um luar de soneto. Decido caminhar pela cidade contemplando figuras de Portinari, assumindo as marquises, revirando lixos, homens-bichos, dos versos de Bandeira. , me perguntando: não obstante seu realismo, nos é possível, como em certas passagens de Nelson Rodrigues, acreditar no brasileiro e deixar de ser esse embate de subdesenvolvidos e paus de arara?

Chego em casa, desfaço-me da bolsa, do paletó, desato o nó da gravata. Descanso Nelson Rodrigues entre Borges e Murilo Rubião. Ligo a televisão, passo o canais entediado. Em uma estação qualquer, um subdesenvolvido, um lorpa, rosna: “menos Paulo Freire, mais Bolsonaro”. E o pascácio continua: “menos diálogo, menos amorosidade, menos confiança no ser humano, menos esperança... Menos negros, menos homossexuais, menos direitos”. Como diria Nelson: é um “quadrúpede de 28 patas!”. Para evitar a insônia ou a hipótese de um pesadelo, tomo os remédios. Durmo, não hei de sonhar... 

domingo, outubro 01, 2017

MOURA TORTA

Tínhamos medo da “Moura Torta”. Seus cabelos desgrenhados, os olhos esbugalhados, apagados de sentido, a ausência de dentes no sorriso melancólico. Arrastava a perna esquerda, caminhava maltrapilha, catando bitucas de cigarro e mendigando. Era tia que nos colocava medo: “Arruma esse cabelo menino! Moura Torta vem te catar piolho”. E tia nos contava a história da Moura Torta. Celesthina Álvares, era seu nome de batismo. Filha do coronel Sebastião Salgado, cresceu formosa e gentil. Veio certa vez da cidade um reporte de jornal importante fazer matéria sobre uma certa galinha que andava de fasto e se achava galo. “Tanta coisa que se deve acontecer, lá na capital, e esse aqui, querendo saber de galinhas”, comentavam na venda de seu Quinzinho. Era moço educado, bom de prosa que, com paciência explicava: “Na capital não se pode publicar de tudo. Tem censura”. Dizia o moço, bebericando com os homens de Coronel, que na capital “homens e mulheres sumiam ou eram presos sem muitas explicações”. Contava de um que fora preso em uma mesa de bar por discordar de um certo tenente sobre criação de galos de rinha. “O tenente impôs sua razão, com voz de prisão”. Na capital, “tinha-se que tomar cuidado com que se dizia e, principalmente, se escrevia”, completava a conversa. Foram se ver, o moço e Celesthina, para despertar entre eles o mais fervoroso sentimento, para desconforto de coronel Sebastião Salgado e descontentamento de um certo Julio Batista, preterido por Celestina. Como o moço apareceu, desapareceu. Diziam uns que fora coronel, outros que fora o tal Batista, outros, a boca miúda, diziam que tinham sido homens da capital. Tínhamos medo da “Moura Torta”, de suas convulsões, seus arribar as vestes, mostrando-nos suas intimidades. Celesthina perdera a criança no trabalho de parto, entristeceu-se até a loucura, e quando a mãe morreu, abandonada à sorte e à caridade alheia. Tínhamos medo da “Moura Torta”, de Celesthina, com tia, aprendemos a ter piedade. Todos esconjuravam Celesthina, tia a acolhia, dava-lhe banho, trocava-lhe as roupas, penteava-lhe os cabelos. Celesthina sorria, sua falta de dentes, olhando-se no espelho. O sorriso de Celesthina eu jamais temera.          

SOBRE COISAS ÓBVIAS

“os homens em absoluto não são naturalmente inimigos. É a relação entre as coisas e não a relação entre os homens que gera a guerra...” J.J. Rousseau

Meus poucos leitores sabem de meu amigo Leopoldo, um fantasma de família, que diz ter sido mordomo na corte de D. Pedro II, e que tem o prazer de me sacanear, aparecendo-me nos momentos mais impróprios. Por estes dias tive o grato desprazer de sua visita. Leopoldo portava com sigo um exemplar Du Contrat social, de Rousseau, do ano de sua primeira publicação. Apresentou-me também um manuscrito que ele jura ser do genebrino, que, a época, não ousou colocar em circulação. Duvido que tal manuscrito seja de fato do mestre de Emílio. Não obstante, coloco tal manuscrito a disposição de meus poucos leitores, alertando-os que a tradução é de meu importuno, mas estimado, amigo Leopoldo, um sujeito nada confiável.
     
“[...] “A loucura não cria direito”. Isto é uma constatação óbvia, como é obvio que “a desigualdade social gera conflitos sociais”. Dizer obviedades é uma forma de filosofar sobre problemas graves. Diz-se o óbvio para que se trate de coisas que nos cercam e de nós mesmos. Por muito obvia que pareça uma assertiva, ela mascara a realidade. Dizer o óbvio atrai o olhar e desperta o pensamento, a capacidade de se compreender e compreender a realidade. Se vamos aceitar ou não nossa compreensão é uma outra história. O fato é que dizer o óbvio não é só uma estratégia filosófica, é um risco que se corre. Dizer o óbvio: “fazeis de minha casa em um covil de ladrões”, por exemplo, pode condenar-te à morte.
Então, é óbvio que a carência material incide consideravelmente sobre o desenvolvimento intelectual e moral dos indivíduos. É óbvio que onde falta o alimento, abunda a indolência, mãe de todo crime.
[...] É óbvio que é da desproporção da distribuição dos recursos, dos serviços e bens produzidos a causa dos conflitos sociais. Onde uns abundam no desfrute e no gozo dos desejos, e outros apenas nas satisfações das necessidades, não pode haver paz e tranqüilidade.
[...] é óbvio, mas há resistência em se aceitar, que a penalização cada vez mais severa dos carecidos dos bens produzidos para proteger o gozo escandaloso dos opulentos, não apagazigua a realidade social. Penalizar o expropriado é combater fogo com combustível... “
Todo acumulo, todo excesso é expropriação, é roubo. O mérito divino, de sangue, convencionado, todo mérito, em suma, favorece a desigualdade e a injustiça; é mola da corrupção...
[...] só há crime do bem estante, do opulento, do esbanjador. Só há crime do que expropria e goza sobre a carência, a indigência vil... A violência do homem sem recursos é resistência, luta de sobrevivência. Só há crime em quem expropria indiferente, sem indulgência. “Quem come dois pães, come o pão de alguém. Por isso dorme de olhos abertos”. Toda violência, todo conflito é fruto na desigualdade, na desproporção na distribuição dos bens produzidos. Não há pena que reduza a violência. Não é aprisionando o faminto que se produzirá a paz entre os homens. Apenas partilhando o pão se promove a paz.

[...] Todo acumulo é roubo. O roubo do expropriado leva-o a roubar, seu ato é resistência, sobrevivência, o crime esta antes, contra ele...

domingo, setembro 17, 2017

PRIMEIRA NAMORADA




Minha primeira namorada foi um misto de minha irmã, Claudia Ohana – a encontrei numa mala que tio mantinha sobre o guarda-roupa, e Anna Helisa, do 6 ano. Foi num fim de noite de verão, um sábado, que ela me surgiu. Eu assistia ao Viva a Noite com o Gugu Liberato.  Num correr da câmera pelo auditório, ela me sorriu, acenou-me, mandou-me um beijo.  Senti-me ereto, úmido, sem jeito – tia e prima dividiam o sofá comigo. Encolhi-me abraçado à almofada. Fomos dormir. No meio da noite acordei transpirando, ofegante, sedento. Ao meu canto ela ascendia um cigarro, tragou-o e soltou a fumaça em meu rosto. Beijou-me um beijo longo. Senti um suave hálito de menta, misturado a lavanda. Passamos a nos ver com freqüência nos fins de tarde depois da escola. Caminhávamos pela orla, assistíamos ao por do sol da Pedra do padre.  À noitinha, ela se deitava ao mesmo lado e me carinhava até o sono me alcançar.  As pessoas diziam-me eu ser uma pessoa estranha, taciturna, alienada. Num fim de tarde, um domingo, voltávamos da capital, ela me disse adeus. Acompanhei-a perder-se de vista à medida que o ônibus seguia seu destino. Esta semana, em um sebo, folheava a mesma Playboy que tio mantinha em sua mala sobre o guarda-roupa. Tive a impressão de estar sendo vigiado. Um misto de menta e lavanda preencheu o ar. Tomando o rumo do metrô a vi cruzando a faixa de pedestre, quis acompanhar seus passos. Ela se perdeu na multidão. Tirando as chaves do bolso para abrir a porta, veio junto um bilhete: “Rua dos Marines, 68, sábado 18h”. Tomo um conhaque, os comprimidos, procuro dormir. “Não pude esperar até sábado”, sorri-me...  

sábado, setembro 16, 2017

SOBRE A ARTE

A arte se passa despercebida é apenas mercadoria a ser consumida” (Rodner Lúcio)
“A arte incomoda, quando nos faz questões, cujas respostas sabemos e das quais temos medo” (Euripedes dos Santos)

A arte é representação do imaginário, do simbólico, do real. É algo do representado, mas não o representado. Envolve saberes, habilidades, técnicas, sentimentos, sensibilidade, sensações, emoções, paixões, desejos e razões. Envolve a memória, a imaginação, a intuição, a reflexão. É dramática, é cômica, irônica, sarcástica, cínica. É plástica, é performática, é sensual, é erótica, é obscena, pornográfica, amoral. É didática, reflexiva, provocativa, combativa, libertina, libertaria, religiosa, mundana e política. Exprime o sublime, o grotesco, o sagrado: divino-diabólico, e o humano, demasiado humano: suas errâncias, suas desmedidas, suas paixões e desabores, a aventura e as desventuras de seu desenvolvimento. A arte desestabiliza, incomoda, desconforta, confronta, desaponta, estarrece. Também diverte, alegra, emociona, conforta, informa, forma, liberta. Cabe muita coisa à arte, gostemos ou não gostemos, só não cabe o fomento ao ódio e à violência.

domingo, setembro 03, 2017

FOTOGRAFIA



A semana fora toda chuvosa e invernal. O fim de semana prometia ser de encolhimento debaixo das cobertas. Mas o sábado abriu-se outonal: um sol morno entre nuvens, que foi se tornando primaveril. Passamos a manhã lendo e largatinhando. Folheavas o Caderno de Cultura. “Tem uma mostra de cinema italiano rolando, podíamos ir!”, você propôs. A princípio não me entusiasmei com a idéia, preferia ficar em casa lendo, assistindo, dormindo. Você insistiu. “Podemos comer alguma coisa no Frigotto e descer caminhando pela Inconfidência, entre as galerias e antiquários e tomar o ônibus na Pedro Américo. Podemos parar no sebo da Major Diego Mendes”... Você era animada, cantarolava, e comentava sobre um ou outro objeto que íamos observando nos antiquários, um quadro qualquer te lembrou nossas tardes em São Paulo, o parque do Ibirapuera, as escadarias do Municipal, a vista do Terraço Itália... Preferimos Fellini a Pasolini... Encontramos casualmente os Conovanni. Gilberto fotografou-nos. Ao fundo podemos ver o cartaz ilustrativo da mostra, em primeiro plano eu ladeio-te com o braço. Ao centro, você sorri. Lisa esta apoiada a teu ombro esquerdo... Os Canovanni nos deixaram à porta de casa. Combinamos pro final se semana seguinte voltarmos á mostra, dando vez ao Pasolini. Encontrei a foto entre as páginas de um livro: A idade da Razão, de Sartre, que compramos em um outro momento, quando estamos para dar à luz nosso primeiro “gigante”.    

terça-feira, agosto 08, 2017

ADEUS A MELODIA


Se alguém perguntar por mim/ Diz que fui por aí...


Jhohhana tinha sempre uma canção nos lábios. Chovesse, fizesse sol, Jhohhana se resolvia cantando. Ensaiei muitas vezes dizer-lhe de o quanto me ligava nela. Nunca tive a coragem do último gesto, da pronuncia do: “te quero, te amo”. Havia dias que me exasperava ouvir sua voz, do fundo da sala, sibilando uma canção qualquer, enquanto resolvia equação e teoremas. “Está ai você acabrunhado, vem, me ajuda nesta redação”, convoca-me puro sorriso. Não nos separávamos. O ano terminava, a formatura se aproximando, nossos rumos futuros incertos. Era o sorteio para o amigo secreto, eu desejando o nome de Jhohhana, Jhohhana cantarolando Luiz Melodia. Peguei o papelzinho, desembrulhei-o apreensivo. “Vixe, que desapontamento foi esse? Por acaso não me tirastes?”, e Jhohhana sorriu-me, abraçou-me, beijou-me a face: “já somos amigos e o seremos para sempre!”. Jhohhana voltou a cantarolar: Eu fico com essa dor/ Ou essa dor tem que morrer/ A dor que nos ensina/ E a vontade de não ter...” Jhohhana, eu deitado em seu colo, desalinhava meus cabelos, falava da viagem que faria, sibilava Melodia: “Tente me amar pois estou te amando/ Baby, te amo, nem sei se te amo...” Ela sabia, sorria-me. Faltou-me o risco do último gesto. Não fui justo com Jhohhana. Ficamos amigos. Falta-me seu sorriso neste adeus a Melodia!... “Eu estou por aí sempre pensando nela”

POR HOJE


“o suicida é como o prisioneiro que, vendo armar-se uma forca no pátio, imagina que é para ele – foge de sua cela, à noite, desce ao pátio e pendura-se ao baraço”.
 Franz Kafka.


Mastigo pão com manteiga e solvo café amargo. Sob minha pele, o descanso de sol tênue de inverno. “Viver não me é um imperativo categórico”. Respirar é fugaz. Não insisto por existir, existo sem propor-me motivo. Nossa época exige posicionamentos claros, eu não os tenho. Sei para que lado pendo por simples axioma: todo acumulo é furto; uma fugaz harmonia é fruto de sofrimentos perenes.  Mastigo pão com manteiga e solvo café amargo: quantas bocas insaciadas e sedentas propiciam-me o que me escapa sob um sol morno de inverno? O que me escapa, uma frugalidade banal, torna-me ainda existente. Ensaio, porém, uma saída a qualquer momento. É uma questão de time, um kairós, um momento propício, diria Paulo. A sentença esta posta me falta a corda, uma manhã fria, uma tarde de tédio, um fim de festa, a ausência de um sorriso, a pressão por um resultado que não se terá, o excesso de uma fantasia, um desencanto, uma desilusão, o ápice de uma euforia... Colho migalhas da mesa; jogo-as aos pássaros. O que me escapa, torna-me, por hoje, existente...   

quinta-feira, junho 22, 2017

ELUCUBRAÇÕES DE UM ESPECTADOR


Há coisas que são politicamente planejadas para não darem certo. A escola pública, a saúde pública, a segurança pública, a justiça pública, são dessas coisas. Se o público der certo, o privado perde a razão de ser, e políticos atrelados ao poder econômico deixam ter serventia aos interesses dos senhores do mercado. A mão do mercado que regula a produção, o consumo, os desejos e suas fruições é engendrada em uma razão empreendedoramente mesquinha. O público não é para dar certo, é econômica e politicamente programado para o fracasso. Os poucos “sucessos”, revestidos de ares de superação, esforço, prodigiosidade etc, estão na planilha: É preciso fazer crer que o problema é do indivíduo não da estrutura. Então há este desgaste dos trabalhadores da coisa pública, desgaste que os enlouquecem, porque querem que a coisa pública funcione como prega a propaganda oficial, ou seus devaneios de justiça, igualdade, felicidade. Se a atividade empresarial é alienante, pois aparta o sujeito de sua produção, o serviço publico é adoecedor, produz doentes mentais. Tenho pena de professores, policiais, agentes de saúde a serviço do poder público, em especial do desgoverno de São Paulo, principalmente daqueles que acham que estão fazendo o melhor, que o seu esforço está fazendo a diferença, que está produzindo uma andorinha que apagará o incêndio da floresta (vocês conhecem está parábolas): são os mais doentes. A política, a economia, nossa miserável vida é regida pela mão do mercado, sua razão é prosaica, é egoísta, é amesquinhada. É esta razão que pensa e administra a coisa pública, e a pensa e administra para não funcionar. Somos loucos, todos loucos, se acreditamos que pode dar certo o que esta planejado para dar errado...

domingo, junho 11, 2017

TATURADOR

Achou que praticava justiça, mas apenas passou de tatuador a torturador. Se tivesse compreendido as relações promiscuas  entre políticos, empresários e magistrados bem ilustradas no resultado do processo da chapa Dilma-Temer não teria se metido nesta situação. É também vitima, como a pessoa que tatuou. De cidadão de bem, achando estar fazendo algo bom, tornou-se autor de crime hediondo, porque vivemos dias   de impotência. Queremos fazer algo para "limpar" o Brasil, mas somos diminutos, os Perrellas, os Neves, Os Cunhas, os MENDES, os Temer, nos são inatingíveis, nos voltamos contra o empobrecido, o marginalizado, o viciado, tornamo-os viáticos de nosso ódio impotente. Um "homem de bem", por achar estar fazendo algo bom, tornou-se criminoso. É tão vítima quanto a vítima de seu ato.   É um caso de estudo, não de condenação...


sexta-feira, maio 19, 2017

DEZENOVE


“Eu sou de uma tradição que celebra o dia de morte do individuo, quando se pode narrar o que foi sua fugaz aventura na existência, se se tornou exemplar, merecedor de ser narrado ou esquecido por seus feitos. À vida, à existência, se sobrepõe a História. E a História é produto de nossas sandices. Só os loucos têm suas histórias contadas.” (Euripedes dos Santos)

 

Era um maio noturno, frio, chuvoso. Um maio de chumbo. O ano 1968. As entranhas da mãe, cumprindo o ciclo biológico, lutava para o expulsar do útero que até então o acolhia. A mãe, entre apreensões, incertezas, receios – o momento não era para ter mais um filho – sofrendo dores da luta, seguia os incentivos da parteira e das mulheres que a auxiliavam, e forçava o expelir do ansiado rebento. A luta era dele contra as forças que o expeliam. Ele queria não nascer, queria não entrar no mundo, não ter que assumir a existência. Sabia ser o útero o seu lugar. Venceu a natureza e viu-se jogado ao colo da mãe, adoentado de morte. Era frágil o fio que o ligava a vida. “Não vingaria!” ouviu com contentamento. Não teve tempo de alimentar-se da mãe apreensiva. Embrulharam-no em panos e correram com ele ao hospital. Incubaram-no por dias. A técnica venceu o seu não querer ser e, mirrado e incerto, vingou. Pegou gosto pela incerteza de uma existência longa, apegou-se ao que é mórbido, ao lúgubre. Em nada se mantém, deriva como barca sem leme.  Nutre o não ser: “o ser é ilusão e faina”. Tudo lhe é vão, sem sentido. Lamenta as pessoas apegadas a alcançarem um lugar fugaz num mundo. Quanta labuta por conquistas não fruídas, porque tênues e ilusórias. Não tem apego ao mundo sempre em desordem, sempre ruindo. São-lhe como resquícios de sol entre outono e inverno os avanços que a humanidade alcança. É tudo sempre destempero e tempestade. Os que riem, riem sobre cadáveres. Existir é-lhe um fardo. “Nunca esforçou-se pela vida, por esse mundo, por ser”, sua epigrafe. Em todas as suas lutas é vencido... Era um dezenove quando saltou cumprindo-se.   

domingo, abril 30, 2017

BELCHIOR


Tenho ouvido muito disco, conversado com pessoas, caminhado meu caminho... Belchior

 Eu conheci Belchior numa tarde de junho. Preparávamos fogueira para tio Antonio e o santo de mesmo nome. Ju trouxe o violão e algumas revistas de músicas. Enquanto amarrávamos bandeirolas, Ju passava com tia alguns hinos e reizados. Foi primo quem indagou: “você também toca Belchior? Ju olhou-o e solto um tímido sorriso. Foi neste brilho encontrando o sorriso de primo que Belchior me foi apresentado. Veio o terço, os fogos, os doces, os salgados e sucos. E quando vó permitiu então, primo tomou de empréstimo o violão de Ju. Belchior reinou em dia de santo Antonio. Os olhos de Ju brilhavam aos olhos de primo, o sorriso-canto de primo sorria-cantava para Ju. Belchior, o infinito, onde paralelas se encontram, era o festeiro.

“Ano passado eu morri, este ano eu não morro”. Belchior torna-se imortal, o Corcovado de braças abertos se eterniza.

TEU NOME


 
E no apartamento
 ante o porta retrato
prendo-me ao
 vazio moldurado
corro o olho
aos fragmentos
de teu sorriso
ao chão
fragmentado
Angustiado
Procuro algo de ti
Que tenha
Distraída
Deixado
A noite nua
Cinza-úmida
Me clama
Abro a janela e
Sua brisa me
Envolve
E eu grito,
Eu grito
Eu apenas
Grito
Teu nome
 
 

domingo, abril 16, 2017

A CRUZ QUE EU CARREGO ESTÁ VAZIA: O QUE NELA JAZIA RESSUSCITOU


À Produção e ao Elenco de Passos da Paixão 2017

O Passos da Paixão 2017 nos convidou a pensar nossas práticas pessoais em nosso cenário político cotidiano. Diante da enxurrada de delações premiadas, vazamentos de denúncias de corrupção, desvio de recursos públicos, retirada de direitos, avanços contra políticas sociais, sob o mando de um governo ilegítimo, golpista e impopular, nos colocamos o desafio de retratar a história do Cristo, seu julgamento, seu suplício, sua morte cruel e infame, questionando e submetendo as razões do sofrimento e dor de milhares de homens e mulheres, que compõem a cruz que suporta a aniquilação do Cristo, na ação desmedida dos poderosos deste mundo e sua vão ilusão de que tudo podem. “A cruz que você carrega”, lema-tema condutor de toda a trama que se construiu nos provoca uma resposta à pergunta: “E você, qual a sua cruz?”. Ao lado de quem você caminha: dos "homens de bem", que se acham os merecedores de toda riqueza e que de tudo se apropriam, até de vidas humanas, escravizando-as, ou do Cristo que não cessa de clamar pelos pecadores. À primeira vista, porque o Cristo disse que cada qual tem sua cruz, e que ele se imola pelos pecados do mundo, acreditamos estar a seu lado. Mas desde inicio vamos tomando conta de que ao lado do Cristo também havia ladrões, mentirosos, interesseiros, traidores. Eu estou ao lado do Cristo. Mas em que condição? É uma pergunta que me faço sempre. Mas, enquanto produzimos o espetáculo, eu penso na cruz das ilusões do poder que conduz “homens de bem” a espoliar o trabalhador, o pobre, até o tornar miserável, no sentido econômico e no sentido moral, quando esse se espelha em seu algoz.  Quando a Sagrada Escritura fala de pecadores, não fala de todos os homens, estes pecadores têm um rosto: são os doentes, os inválidos, os empobrecidos, as mulheres (viúvas, prostitutas, adulteras) os gentios (numa linguagem de hoje: os que não pactuam de minha fé), o estrangeiro, os presos sem condenação. Isto está explicito em Mateus, 25, 35-36: "Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver." São os destituídos, os espoliados, os extorquidos, vitimas (sim vitimas) dos meritocratas opulentos, os destinatários do sacrifício de morte que o Cristo nos oferece. Os donos do mundo, os que com eles comungam, riem ante o fracasso do Cristo, continuam sua marcha de mandos e desmando, submetendo parcela considerável de homens e mulheres sob o julgo de seu sádico sistema econômico, seduzindo com seu canto mediático, oportunistas das mais variadas ideologias. Os poderes do mundo rejubilam a morte do Cristo. No entanto, todo o atroz sofrimento do Cristo, sua dor extenuante, sua agonizante morte é uma denuncia do julgamento orquestrado, ajustado aos interesses de juízes e políticos associados ao poder econômico e midiático, que criminaliza e penaliza os já penalizados por seus desmandos. O Cristo carrega em sua dor a expectativa de que faremos dos pecadores de nosso tempo (basta apenas um pouco de sensibilidade social para os perceber) o motivo de nossa cruz. Todos os condenados pelos “homens de bem”, todos os que padecem à ordem da "Família, da Pátria e de Deus”, todos os que não se enquadram no conservadorismo tacanho patriarcal, todos os que vêem suas potencialidades esvaídas por sistemas de castas eufemisticamente meritocráticos. O rosto dos marginalizados, dos empobrecidos (repetimos empobrecidos), dos aprisionados e ou executados sem direito a um processo legal e um julgamento isento, dos desempregados, dos muitos doentes e idosos a quem faltam recursos médicos e assistência social e econômica, compõem a cruz que o Cristo carrega, são os pecadores de ontem e de hoje pelos quais ele se imola. Diante da opulência dos "homens de bem" e das mazelas dos que lotam ônibus e composições de trens e metrôs, de trabalhadores informais e assalariados uma pergunta fica: Quem produz a Cruz do Cristo? A agonia do Cristo atravessa a longa noite de nossa História que resiste à luz do terceiro dia. Tanto sofrimento não pode ser em vão. O silêncio de sua morte atroz nos imobiliza, entregamo-nos às incertezas de nossas ações, quanto mais lutamos contra os senhores do mundo, mais vitimas nos tornamos de suas sádicas injustiças, mais nos vemos extorquidos, alijados de nossas tão sempre incertas conquistas. A cruz do Cristo: os milhões de rostos desfigurados do CAPITALISMO, nos titubeia. Nossa fé (a minha não é religiosa) ousa dizer que não, que a luta é insana e inútil! Mas a cruz do Cristo: o humilde humilhado não comporta a grandeza do Cristo. O Cristo a esvazia de sentido, não é a arrogância disfarçada das elites em programas eleitorais que há de vencer. A longa noite de nossa história é só uma noite longa: Já a luz da ressurreição desponta e com ela a esperançosa mensagem do Cristo: “Ide e contai a João o que estais ouvindo e vendo: Os cegos enxergam, os mancos caminham, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as Boas Novas estão sendo pregadas aos pobres.” Os pobres hão de se levantar, hão de empunhar a luta, hão de tornar a cruz do Cristo, a cruz da vitória. A dor do Cristo é a dor de quem acredita em sua causa. E o Cristo que morre por nossos pecados acredita que os pecadores: os marginalizados, os expropriados, os extorquidos, os perseguidos, os aprisionados, hão de narrar uma nova história, em que todos hão de ter vida plena. Se a morte infame do Cristo é para os opulentos e poderosos motivos de alegria, a Ressurreição é a garantia de que o Cristo rompe o ciclo de desmandos e inaugura um novo tempo e um novo reinado. Reinado em que os pecadores, figurados no publicano e na prostituta (Mt 21, 31) serão os primeiros. Ainda os raios dessa subversão não nos atingiu. A longa noite de nossa história é apenas uma noite longa. A cruz está vazia: O Cristo venceu o sistema de morte. A Ressurreição há de ser o governo dos pobres e dos empobrecidos, dos marginalizados e dos injustiçados. Este dia atemoriza os poderosos, os "homens de bem", os reacionários, os meritocratas. Eu, como diz a canção, "já escuto os teus sinais. Boa Páscoa a todos!

Grato a todos que tornaram possível o Passos 2017.

Sem nenhum direito a menos!!! FORA TEMER!!!


Claudio Domingos Fernandes

domingo, fevereiro 19, 2017

PASTÉIS E FRUTAS




Vestiu o vestido de ir à rua.

- Onde você vai?

 - Vou levar as meninas à estação. Elas passarão uns dias com a avó!

- Não esquece de mandar-lhe o doce de figo, e peça que envie pela meninas daquela cachaça.

- Ela mesma deve trazer. Ela vem no fim da semana comas meninas. Tem exames para fazer.

- Você tem algum?

- Uns trocados! Porque?

- Quando voltar, passa na feira, trás pastel e um pouco de frutas.

- Você prepara o almoço?

- Somos só nós?

- Se a Palmira não vier com as crianças! Ela vai ligar avisando!

-Se for só para nós dois eu prefiro ligar no Corniglio e encomendar algo.

- Por mim tudo bem! Agora eu vou que as meninas já estão impacientes. Tchau!!

- Elas são impacientes. Beijos!!! Não esqueça os pasteis e as frutas...

terça-feira, fevereiro 14, 2017

EU VIM PARA QUE TENHAM VIDA E A TENHAM EM ABUNDÂNCIA.  


“O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10,10)



Teologicamente vida em abundância significa vida para além da vida cotidiana, da vida terrena, isto é, significa vida eterna como explicita documento da Igreja Católica: “O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus. [Evangelium Vitae].



Assim, “ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida “nova” e “eterna” que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal “vida” que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.” (Idem)



No entanto, associado ao âmbito econômico, uma certa teologia, uma certa visão deturpada, tende a entender abundância como riqueza, prestígio, privilégios, posição de poder. Desta visão, muitos representantes religiosos aproveitam-se para vender um mundo de ganhos materiais exorbitantes e uma vida de honrarias, prestígio social, posições políticas de comando etc., a seus fiéis. E se muitos perseguem está abundância, a do acúmulo de bens matérias, do luxo e da ostentação de uma graça que não corresponde às promessas evangélicas , é porque seus guias religiosos são, na verdade aqueles lobos em pele de cordeiro, que o Cristo anteviu: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores.” (Mt, 7, 15).



Neste mundo, o Cristo não promete vida fácil aos que o seguirem pois: “Se me perseguiram também vos perseguirão” e “o mundo vos tratará mal por causa do meu Nome, pois eles não conhecem Aquele que me enviou” (Jo 15, 20;21). E depois, ele anuncia que seu reino é dos pobres, dos humilhados, dos explorados: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”.

Por isso, os evangelhos te impõem um compromisso: acolher os que sofrem e ou são perseguidos, reconhecendo neles o Cristo: “porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me” (Mt 25,35-36). São a estes, em especial, que o Cristo oferece sua morte sacrifical.



Na ordem dos direitos, podemos alinhar “vida em abundância”  ao desenvolvimento pleno, à integridade, à dignidade de cada pessoa humana.



Nestes tempos de política de exceção, em que o atual governante, como ladrão, entra pela janela da história, assume de forma vergonhosa o governo e arranja em torno de si uma equipe de governo interessada em salvaguardar seus próprios interesses e de grupos políticos e econômicos com os quais são comprometidos. Para estes usurpadores de nossos votos e destino político,   o pleno desenvolvimento, a dignidade e integridade dos menos favorecidos e da classe trabalhadora se acham ameaçados. Os esquemas de corrupção e alienação política escancaram os interesses das elites abastadas e dos iludidos de a elas ascenderem, que, em nome de um falso moralismo, fecham os olhos aos que se apropriam do poder em beneficio próprios ou de seus aliados e perseguem os que continuam a árdua tarefa de defender direitos sociais e trabalhistas arduamente conquistados.



Nesta perspectiva, milhões de pessoas são colocadas à margem todos os dias, impossibilitadas de atenderem ao que se considera mínimo para sua inclusão entre os seres humanos, sem acesso algum aos benefícios das novas tecnologias e dos avanços econômicos e científicos, que deveriam ser de alcance universal.



Crer em uma vida abundante é defender e promover os menos favorecidos, os injustiçados, o estrangeiro expulso de seu território de origem e lembrar que o Direito á vida plena não é privilégio dos abastados, mas dever do Estado para com todos os que estão à margem, explorados, humilhados, destituídos de seus plenos direito de cidadania e de pessoa humana.

Não creio no Deus de Francisco, mas, como ele, acredito que  “o sentido pleno da vida individual e coletiva se encontra no serviço desinteressado em favor do outro e no uso prudente e respeitoso pela criação, pelo bem comum” e que a “medida e o indicador mais simples e adequado de realização da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade de espírito e educação” (Papa Francisco em discurso na ONU, em 25 de setembro de 2015).

domingo, fevereiro 05, 2017

ELE NÃO TINHA ONDE RECLINAR A CABEÇA


“E Jesus, vendo em torno de si uma grande multidão, ordenou que passassem para o outro lado; E, aproximando-se dele um escriba, disse-lhe: Mestre, aonde quer que fores, eu te seguirei. E disse Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. (Mt 8,18-20)



Se é consoante tomar a acima referida passagem evangélica como um alerta a quem se coloca a seguir Jesus, que este não encontrará conforto em sua jornada e ao fim dela não terá onde se recolher e restituir em segurança suas forças, a situação a qual Jesus aponta ao escriba, o de não ter onde reclinar a cabeça, pode muito bem caber não só a ele mas também à multidão diante dele e do escriba, multidão que, numa passagem anterior, o Cristo ordenara a seus discípulos assistir (Mt 14, 16).

Como é visto, então, o problema da moradia, como o da fome, não é um tema atual, mas atravessa séculos de uma história de desigualdades sociais.

Concentrados aqui no direito à moradia, verificamos que o mesmo é um direito reconhecido como direito humano universal apenas em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E está presente em nossa constituição, em seu artigo 6º, como direito social. Ele corresponde ao direito a um padrão de vida adequado. Mas ele representa mais que isto.

Nossa história só tem sentido a partir de um lugar que possamos dizer meu, não como posse,  mas como referente, um ponto onde estabeleço minha identidade e minha identificação. De tal modo o lugar onde moro, minha casa, uma moradia, lugar onde recostar a cabeça é mais que o direito a ter quatro paredes e um teto.

- É o lugar onde me recolho, me refaço do cansaço, da fome, do sono, onde me protejo das ameaças externas, das intempéries...

- É o lugar onde acolho, recebo os amigos e com eles celebro minhas vitórias, significo e resignifico minhas perdas...

- É um ponto certo de partida e de retorno, sendo minha referência no mundo, o ponto onde me situo e de onde me lanço no existir, no persistir, no insistir viver...

- É o lugar onde se recosta a cabeça e se revê, se reestabelece,  se reorganiza os desejos, os projetos, as decisões, se estabelece os passos seguintes, os desafios à frente.

- É mais que quatro paredes e um teto é lar, lugar dos conflitos interpessoais e da afetividade que sustenta as relações, restabelece os ânimos evoca o passado, projeta-se o futuro.

- É o lugar de minha identidade e minha identificação com um lugar e sua gente que se assoma a mim e eu a eles me cativando, motivando, impulsionando a ser mais sem ser apenas mais um.

Daqui a importância de se lutar para que todo ser humano tenha seu espaço, sua moradia, seu lugar de intimidade, de privacidade, para ser para si, para os seus, para o mundo... Não se trata de um direito por um teto apenas, uma propriedade, é luta para que ao termos um abrigo, uma morada, não fechemos nossos corações, mas sejamos morada, abrigo (Vós sóis morada do Espírito Santo, nos Lembra Paulo de Tarso) a outros que desejam e lutam por dignidade, por respeito, por justiça social... Que nosso desejo de um lugar que nos acolha seja também desejo de acolher o outro onde quer que estejamos e façamos desse lugar nosso lar: algo mais que quatro paredes e um teto...