terça-feira, setembro 06, 2016

DESCRIÇÃO DE UMA JORNADA


... Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender... (Legião Urbana)


I
Você acorda de manhã, faz a barba, toma banho, liga o rádio e acompanha o noticiário.  Os filhos se preparam para ir à escola, a esposa ao trabalho. Depois de acompanhar o mais novo à escola, você se dedica a cuidar do jardim, ler um livro, produzir uma crônica, um artigo... preparar o almoço. Você faz planos de viagem, especula um presente para a esposa, cogita levar os meninos na praça ao fim da tarde.
No período da tarde você se dedica ao projeto de mestrado, confere anotações, formula suposições, elabora opiniões, busca referências. Navega por seus emails, por paginas de noticias, pelo Face. Os meninos brincam no quintal. Prepara-lhes  o lanche. A ideia de os levar à praça se prorroga. A mãe está para chegar. Você vai deixar para que ela prepare a janta. Coloca os meninos para tomar banho, fazer o dever de casa, assistir televisão. Toma um livro, folheia-o, aproxima-se da janela, contempla os girassóis ensaiando o desabrochar.  Um pássaro pousa em seu jardim. Cisca aqui, ali; faz pequenos voos de uma galha da roseira ao ipê, deste para uma haste de ferro, depois ao chão e, por fim alça um voo infinito.  
O vento, ou algo que vem de dentro, sussurra-lhe versos de Leopardi: “Non gli uomini solamente, ma il genere umano fu, e sarà sempre, infelice di necessità. Non il genere umano solamente, ma tutti gli animali. Non gli animali soltanto ma tutti gli altri esseri a loro modo. Non gli individui, ma le specie, i generi, i regni, i globi, i sistemi, i mondi...  è in stato di souffrance, qual individuo più, qual meno”
O colorido do dia esvanece, o abismo se abre...

II

Não é desemprego, não é conflito amoroso, não é ambiente estressante de trabalho, não é medo ou covardia diante de um mundo conturbado, angustiante, não é a falta de expectativa, de empatia, de desejo de vida... Tudo é meio, não motivo. Um salto do décimo quinto andar é in-causado. É sintoma, não sofrimento.

III

Desceu ao jardim, limpou-o. Ajustou uma cova rasa. Semeou-lhe sementes. As cobriu de terra, que logo regou. Acocorou-se. "O que fazes?” perguntou-lhe voz de dentro, concluindo: “é noite ainda!”. "Vigio a flor que ei de contemplar!", respondeu. Tinha desejos de cicuta.

IV

O desejo de morte é uma conturbada esperança!

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