Sexualmente falando, entre quatro
paredes, nem tudo é sexo, nem mesmo o ato sexual
(Christine
Ramos)
Tudo o que fazemos é obvio, é sobre o
porque fazemos que meditamos.
Rodner
Lúcio
De
acordo com Gianni Vattimo (Addio alla Verità) um fato é um fato, isto é,
“produto do sujeito humano que manipula e modifica indefinidamente as coisas”.
Este caráter de manipulação e modificação indefinida das coisas não nos permite
afirmar, dizer o que uma coisa é. Isto não nos deve impedir de entender,
procurar saber o que de nós podemos apreender no fato quando ele se apresenta.
Uma cena de estupro, que amanhã cederá lugar a um garoto morto em confronto com
a polícia, que cederá lugar à uma nova delação, que cederá lugar à derrocada de
um governo que nos emperra, e assim por diante, o que essa sucessão de fatos
aparentemente desconexos pode diz-nos de nós?
O
humano não é um ser natural, é uma manifestação histórico-cultural centrada no
desejo. Os seres naturais são encerrados aprisionados em si, o humano é uma
viabilidade que comporta seja sua perfectibilidade, seja o risco de sua própria
extinção. A desumanização é tão viável quanto a humanização. No cerne das ações
humanas está o desejo de realizar-se. Não há ato humano que não seja um desejo
de firmar-se, de ser.
Na
linguagem psicanalítica, o desejo é um vazio que não se preenche, pelo
contrário, é um vazio que se esvazia. É um “quase”, porque é um desejo sem
objeto, lançado na ordem simbólica. Quando desejo o corpo de outrem, não o
desejo no sentido biológico de uma finalidade: a perpetuação da espécie. Quando
desejo o corpo de outrem, desejo algo que não é só seu corpo, mas o que ele
representa para mim: conforto, segurança, confiança, reconhecimento...
Em
psicanálise, como ensina Garcia-Roza (Freud e o inconsciente, p. 148): “O que
aprendemos com Freud foi que o objeto do desejo é um objeto perdido, uma falta,
e que esse objeto perdido continua presente como falta, procurando realizar-se
através de uma série de substitutos que formam uma rede contingente mantendo a
permanência da falta.”
Diferentemente,
então, da vida natural, o humano não possui um objeto fixo com o qual saciar
seu desejo. “De objeto a objeto, o desejo desliza como uma série interminável,
numa satisfação sempre adiada e nunca atingida” (Garcia-Roza). Esse objeto pode
ser sapatos, cores de cabelo, corpos estilizados, carros, obras de arte, livros,
objetos raros, etc. A variação dos
objetos que nos provocam desejo e nos quais buscamos satisfação é quase
infinita. No campo da sexualidade, a realidade não é diversa. O ato sexual
humano é simbólico. Quando os parceiros sexuais se enlaçam cada um está
interessado não no outro em si, mas naquilo que no outro lhe provoca desejo! Depois, o ato sexual nem sempre busca
satisfazer desejos sexuais.
Erich
Fromm (Coração do Homem, 40ss) coloca que o humano situa-se entre os que amam a
morte e os que amam a vida, entre biófilos e necrófilos, e explica: “Literalmente,
“necrofilia” significa “amor aos mortos” (assim como “biofilia” significa “amor
à vida”). O termo é costumeiramente usado para designar uma perversão sexual,
qual seja o desejo de possuir o corpo morto (de uma mulher) para relações
sexuais, ou um desejo mórbido de estar na presença de um cadáver”.
Como
ilustração, encontramos em Slavoj Zizek (Como ler Lacan, p 124) um breve
comentário de que “voltou à tona recentemente em alguns círculos nos Estados
Unidos: “repensar-se os direitos dos necrófilos”. Neste sentido, “foi lançada
a ideia de que, assim como pessoas autorizam que seus órgãos sejam usados para
finalidades médicas no caso de sua morte súbita, deveria lhes ser permitido
também autorizar que seus corpos a necrófilos...”
Nas
descrições de Fromm: “a pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada
por tudo o que não é vivo, tudo o que
está morto: cadáveres, decomposição,
fezes, sujeira. Necrófilos são pessoas que gostam de falar de doença, de
enterros, de morte... São frios, distantes, devotos da lei e da ordem... Para
ele, a máxima realização do homem não é dar vida, porém destruí-la; o uso da
força não é uma ação transitória que lhe é imposta pelas circunstancias – é um
meio de vida... É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico,
de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas vivas fossem
coisas. Todos os processos e sentimentos e pensamentos vivos são transformados
em coisas. Memória em vez de experiência; ter em vez de ser, é o que
interessa.”
Entre
os seres sexuados, só o humano, homem, estupra. E Contardo Calligaris, em sua
coluna na Folha de São Paulo, de 02/06/2016, procura resenhar motivos para tal
ato. Assim, ele aponta que “um caso, não muito frequente, é que o estuprador se
excite com uma fantasia necrofílica.” E seria “provavelmente um sonho de
controle sobre o corpo materno”. Contardo parte de uma cena americana em que
três amigas assistem um sujeito batizando a bebida da companheira para entrar na
cena do estupro do Rio de Janeiro, lançando a pergunta: “na cena do estupro do
Rio de Janeiro, onde está o gozo?” E após breve passagem pela psicologia
social, retorna à resposta freudiana: “o estupro não é um jeito de gozar de uma
mulher desejada, é um jeito de gozar", centrado na violência. E adverte: “A
resposta freudiana não é para principiantes: a crueldade e o sadismo são formas
invertidas de masoquismo. Ou seja, na hora de violentar, os caras se excitam
imaginando ser a menina que eles estão abusando. Eles se sentem muito machos
bem na hora em que sonham ser estuprados.”
De
fato, Freud não é para principiante. Não é também o único caminho de
interpretação.
Dissemos
que o humano não é natural, é tanto viabilidade para humanização (biofilia)
quanto para desumanização (necrofilia).
Dissemos também que nem todo ato sexual visa satisfação sexual. Acrescento
aqui uma observação de Christine Ramos: “Um discurso genérico não é um discurso
universal. Falando genericamente, não falamos de todos.”
Neste
sentido, penso que, associado ao caráter necrófilo que orienta o existir de
parcela considerável do humano, o estupro não é um crime sexual apenas; não
consiste na satisfação de um desejo sexual exacerbado ou pervertido ou oriundo
de uma psicopatia. O estupro não se orienta por uma energia libidinal, ele é
resultado de uma construção conceitual da mulher e não de desejos. O que
orienta o estupro é a aversão sexista e ideológica à mulher. No estupro não há
gozo, há a demarcação de papeis: de quem faz como bem entende e de quem deve
sujeitar-se a qualquer papel, até mesmo o de ser humilhada. O estupro desumaniza.
De base misógina, então, o estupro não tem nada que ter com desejo, mas com um
discurso sobre a mulher e seu papel social. Em extremo, o estupro é um ato
bélico de caráter higienista. O pênis não é falus, é arma de assediamento.
Para
finalizar, a certa altura Gianni Vattimo (Addio alla Verità) diz que “nem todos
os metafísicos foram violentos, mas diria que quase todos os violentos de
grande dimensão foram metafísicos”. Isto para dizer que a dimensão da cena de
estupro no Rio de Janeiro trouxe à ordem dos debates a questão da Cultura do
estupro, que o que ocorreu não foi uma orgia sadeana. Foi uma hedionda
manifestação de nosso machismo patriarcal. O fato, no entanto, de existir uma
Cultura do Estupro, não torna todo homem um estuprador.
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