sábado, junho 04, 2016

ESTUPRO: UMA INTERPRETAÇÃO





Sexualmente falando, entre quatro paredes, nem tudo é sexo, nem mesmo o ato sexual

(Christine Ramos)

Tudo o que fazemos é obvio, é sobre o porque fazemos que meditamos.

Rodner Lúcio



De acordo com Gianni Vattimo (Addio alla Verità) um fato é um fato, isto é, “produto do sujeito humano que manipula e modifica indefinidamente as coisas”. Este caráter de manipulação e modificação indefinida das coisas não nos permite afirmar, dizer o que uma coisa é. Isto não nos deve impedir de entender, procurar saber o que de nós podemos apreender no fato quando ele se apresenta. Uma cena de estupro, que amanhã cederá lugar a um garoto morto em confronto com a polícia, que cederá lugar à uma nova delação, que cederá lugar à derrocada de um governo que nos emperra, e assim por diante, o que essa sucessão de fatos aparentemente desconexos pode diz-nos de nós?  

O humano não é um ser natural, é uma manifestação histórico-cultural centrada no desejo. Os seres naturais são encerrados aprisionados em si, o humano é uma viabilidade que comporta seja sua perfectibilidade, seja o risco de sua própria extinção. A desumanização é tão viável quanto a humanização. No cerne das ações humanas está o desejo de realizar-se. Não há ato humano que não seja um desejo de firmar-se, de ser.

Na linguagem psicanalítica, o desejo é um vazio que não se preenche, pelo contrário, é um vazio que se esvazia. É um “quase”, porque é um desejo sem objeto, lançado na ordem simbólica. Quando desejo o corpo de outrem, não o desejo no sentido biológico de uma finalidade: a perpetuação da espécie. Quando desejo o corpo de outrem, desejo algo que não é só seu corpo, mas o que ele representa para mim: conforto, segurança, confiança, reconhecimento...   

Em psicanálise, como ensina Garcia-Roza (Freud e o inconsciente, p. 148): “O que aprendemos com Freud foi que o objeto do desejo é um objeto perdido, uma falta, e que esse objeto perdido continua presente como falta, procurando realizar-se através de uma série de substitutos que formam uma rede contingente mantendo a permanência da falta.”

Diferentemente, então, da vida natural, o humano não possui um objeto fixo com o qual saciar seu desejo. “De objeto a objeto, o desejo desliza como uma série interminável, numa satisfação sempre adiada e nunca atingida” (Garcia-Roza). Esse objeto pode ser sapatos, cores de cabelo, corpos estilizados, carros, obras de arte, livros, objetos raros, etc.  A variação dos objetos que nos provocam desejo e nos quais buscamos satisfação é quase infinita. No campo da sexualidade, a realidade não é diversa. O ato sexual humano é simbólico. Quando os parceiros sexuais se enlaçam cada um está interessado não no outro em si, mas naquilo que no outro lhe provoca desejo!  Depois, o ato sexual nem sempre busca satisfazer desejos sexuais.

Erich Fromm (Coração do Homem, 40ss) coloca que o humano situa-se entre os que amam a morte e os que amam a vida, entre biófilos e necrófilos, e explica: “Literalmente, “necrofilia” significa “amor aos mortos” (assim como “biofilia” significa “amor à vida”). O termo é costumeiramente usado para designar uma perversão sexual, qual seja o desejo de possuir o corpo morto (de uma mulher) para relações sexuais, ou um desejo mórbido de estar na presença de um cadáver”.

Como ilustração, encontramos em Slavoj Zizek (Como ler Lacan, p 124) um breve comentário de que “voltou à tona recentemente em alguns círculos nos Estados Unidos: “repensar-se os direitos dos necrófilos”. Neste sentido, “foi lançada a ideia de que, assim como pessoas autorizam que seus órgãos sejam usados para finalidades médicas no caso de sua morte súbita, deveria lhes ser permitido também autorizar que seus corpos a necrófilos...”

Nas descrições de Fromm: “a pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é vivo, tudo  o que está morto: cadáveres,  decomposição, fezes, sujeira. Necrófilos são pessoas que gostam de falar de doença, de enterros, de morte... São frios, distantes, devotos da lei e da ordem... Para ele, a máxima realização do homem não é dar vida, porém destruí-la; o uso da força não é uma ação transitória que lhe é imposta pelas circunstancias – é um meio de vida... É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas vivas fossem coisas. Todos os processos e sentimentos e pensamentos vivos são transformados em coisas. Memória em vez de experiência; ter em vez de ser, é o que interessa.”

Entre os seres sexuados, só o humano, homem, estupra. E Contardo Calligaris, em sua coluna na Folha de São Paulo, de 02/06/2016, procura resenhar motivos para tal ato. Assim, ele aponta que “um caso, não muito frequente, é que o estuprador se excite com uma fantasia necrofílica.” E seria “provavelmente um sonho de controle sobre o corpo materno”. Contardo parte de uma cena americana em que três amigas assistem um sujeito batizando a bebida da companheira para entrar na cena do estupro do Rio de Janeiro, lançando a pergunta: “na cena do estupro do Rio de Janeiro, onde está o gozo?” E após breve passagem pela psicologia social, retorna à resposta freudiana: “o estupro não é um jeito de gozar de uma mulher desejada, é um jeito de gozar", centrado na violência. E adverte: “A resposta freudiana não é para principiantes: a crueldade e o sadismo são formas invertidas de masoquismo. Ou seja, na hora de violentar, os caras se excitam imaginando ser a menina que eles estão abusando. Eles se sentem muito machos bem na hora em que sonham ser estuprados.”

De fato, Freud não é para principiante. Não é também o único caminho de interpretação.

Dissemos que o humano não é natural, é tanto viabilidade para humanização (biofilia) quanto para desumanização (necrofilia).  Dissemos também que nem todo ato sexual visa satisfação sexual. Acrescento aqui uma observação de Christine Ramos: “Um discurso genérico não é um discurso universal. Falando genericamente, não falamos de todos.”

Neste sentido, penso que, associado ao caráter necrófilo que orienta o existir de parcela considerável do humano, o estupro não é um crime sexual apenas; não consiste na satisfação de um desejo sexual exacerbado ou pervertido ou oriundo de uma psicopatia. O estupro não se orienta por uma energia libidinal, ele é resultado de uma construção conceitual da mulher e não de desejos. O que orienta o estupro é a aversão sexista e ideológica à mulher. No estupro não há gozo, há a demarcação de papeis: de quem faz como bem entende e de quem deve sujeitar-se a qualquer papel, até mesmo o de ser humilhada. O estupro desumaniza. De base misógina, então, o estupro não tem nada que ter com desejo, mas com um discurso sobre a mulher e seu papel social. Em extremo, o estupro é um ato bélico de caráter higienista. O pênis não é falus, é arma de assediamento.

Para finalizar, a certa altura Gianni Vattimo (Addio alla Verità) diz que “nem todos os metafísicos foram violentos, mas diria que quase todos os violentos de grande dimensão foram metafísicos”. Isto para dizer que a dimensão da cena de estupro no Rio de Janeiro trouxe à ordem dos debates a questão da Cultura do estupro, que o que ocorreu não foi uma orgia sadeana. Foi uma hedionda manifestação de nosso machismo patriarcal. O fato, no entanto, de existir uma Cultura do Estupro, não torna todo homem um estuprador.

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