quinta-feira, dezembro 31, 2020

DESLUMBRE

 

Eu não celebro o Natal, o Natal é uma invenção do comercio pra gente gastar dinheiro. Jesus nem nasceu no dia 25 de dezembro. Acho que ele nem existiu. É tudo invenção, só pra nos fazer gastar dinheiro...  A passagem de ano não, a passagem de ano eu celebro. Todo ano faço questão de comprar uma roupa nova, de preferência branca, de viajar pro litoral, estourar fogos. Em fogos não economizo. Quanto mais estouros e luzes no céu, mais me animo pro ano que começa. Depois é só bebemorar. Papai Noel podia vir trazer presentes na passagem de ano, não no Natal. O Natal não tem nada a ver... É mesmo, é? Eu não sabia!!! Então estamos indo para 2021, devido o nascimento de Jesus? Nosso calendário é cristão, é? Bobagem! Eu continuo achando que o Natal é só pra gente gastar dinheiro... Você não quer as pecinhas de roupa e o par de brincos que eu comprei pra passar o Réveillon? Menina, vou deslumbrar!!!

quarta-feira, dezembro 30, 2020

DA AMIZADE

Os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não acidentalmente.

Aristóteles

 

Aristóteles dispunha a amizade em três categorias: segundo a utilidade, segundo o prazer, segundo a virtude.

Segundo a utilidade e segundo o prazer, a amizade é acidental, se dissolve quando uma das partes deixa de ser útil ou agradável e a outra parte a deixa de amar. Sustentada no interesse ou no prazer, a amizade é efêmera, passageira.

A amizade perfeita para Aristóteles não abole a utilidade e o prazer, mas não se sustenta em uma ou outra. A rocha em que se funda a amizade verdadeira é a rocha da virtude. Ela se estabelece entre pessoas que “são boas e desejam o bem uns dos outros”.  Pessoas boas têm a justiça como cerne de suas experiências e procuram o bem, não por algum tipo de vantagem, mas pelo bem em si mesmo. Quando duas pessoas com tais características se unem, ensina Aristóteles, tem se a amizade perfeita. Este tipo de amizade é rara, porque pessoas que visam o bem em si mesmo e tem a justiça por critério de ação são raras. Ela requer tempo e convivência.  Se a amizade fundada na utilidade e ou no prazer é evanescente, a amizade fundada na virtude é duradoura, ela perdura às contrariedades e turbulências que a existência nos coloca dia-a-dia.

Deixando Aristóteles, encontramos Cícero que diz: “Prefiro a amizade a todos os bens desta terra; com efeito, nada se harmoniza melhor com a natureza, nada esposa melhor os momentos, positivos ou negativos, da existência.”

E como Aristóteles, insiste Cícero: a verdadeira amizade de dá entre pessoas éticas, justas, que buscam a retidão de conduta e sempre o bem estar do amigo.

De minha parte, não sei se sou bom amigo, desconfio que não. Mas se insisto em existir quando o que desejo é não ser, é devido ter amigos. Destes prezado por Aristóteles e Cícero.

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Relatinho de roça


Manhanzina de verão, as mulheres lavam o pano nas águas do ribeirão. Conversam das últimas do arraial. “Coroné, se viu menina?” “Coroné, mando capar padre Inácio”. “Coroné, tem coração não, muié”. “E padre Inácio?... É sacrilégio, muié! É sacrilégio” “E a madama que o senhor prefeito arredou asa? Se viu?” “Dispensou o prefeito! Preferiu a filha!” “O mundo é fora dos eixos, muié! É fora dos eixos!” “E num é que é: padre de bobiça com cabritas e as madama trocando nabo por mexerica” “É fim dos tempos muié, é fim dos tempos!” “E Rufino, comadre, aquele mão de vaca?” “Mofino como é, achou de se engraçar com Ritinha de Lourdes Maria”. “Logo com quem! Aquela só se oferece por vintém”. “Agora, anda lá todo emputado, falando de prejuízo, que empatou cobre em bolso furado”... O alarido de vozes se alterna a risarias e cantorias de benditos, enquanto as mulheres batem os panos no ribeirão... Antes de levantar trocha e dar destino ao dia, Jaciara se lança às águas e se refresca.  Desce as águas do ribeirão o caboclo Romildo. Jaciara suspira: “Ah, Romildo, Romildo, que piroga formosa a de Romildo... Ah, não fosse o almoço por preparar, eu montava sua piroga e, contigo, Romildo, perdia o dia em desatino.” 


segunda-feira, dezembro 21, 2020

HOMENS QUE AMO

Desta mistura equilibrada

de seriedade e galhardia

de sonhar mundos outros,

não como utopias,

mundos possíveis

e desta mistura equilibrada

de não se perderem,

por seus sonhos,

nas tramas que tecem os dias

tecendo-se nelas,

histórias vivas

um é artista, o outro filósofo e o outro político.

Desta mistura equilibrada

De não abrirem mão da responsabilidade

E de seguirem o que é preciso

da burocracia,

sem deixarem de acreditar

na esperança que tornam ato

em suas mestrias:

Senna, Maida, Garippo

Destas grandezas não se encontra

Fácil na freguesia.

BOSSONALIDADES

Sempre foi assim,

Mas no meu tempo

Não tinha todo esse mimimi

Eu nunca sofri,

Mas sempre foi assim

Tudo agora é racismo,

Homofobia,

Assédio, em fim.

A gente chamava o crioulo

De macaco e ele sorria

Descia o cacete no viado

Ele agradecia

Bulinava uma mina aqui

Outra ali

E ela se sentia

Agora coisa boba

Uma expressão besta qualquer

Uma piada pra fazer rir

Passar a mão na bunda de uma guria

É muito mimimi

Para algo que sempre foi assim

Conjecturou um comentarista

Em rede de televisão

Do alto de sua bossonalidade.

 

segunda-feira, dezembro 14, 2020

BOBIÇA

[...]

Ana pé de cana

João pé de feijão

José pé de café

Joana pé de banana

Antonio pede matrimônio

Não! Não vale, não vale! Matrimônio não vale

Vale sim, claro que vale tá na música!

Que música?

Aquela assim oh:

“eu pedi numa oração

ao querido são João

que me desse um matrimônio

são João disse que não!

são João disse que não!

Pede lá pra santo Antônio!”

Mas nós não estamos brincando assim! Nós estamos brincando de rimar nome com pé de planta. Matrimônio não é planta.

É sim!

É não!

É sim!

Não é não!

Não é não? Não é não? Então porque quando Tio Tião e Maria Rita se casaram o padre disse: “que este matrimônio, abençoado por Deus, floresça e dê bons frutos para a glória do Senhor?”

É modo de falar seu bobo! É modo de falar! Vamos brincar de outra coisa...  De quem disse?!

Como?

De quem disse?

Quem disse o que?

A brincadeira Antônio, a brincadeira é “quem disse?” Por exemplo: Eureka!”

Eu, o que?

Eureka, Antônio. Eureka! Quem disse: “Eureka!”

Você disse uai, acabou de dizer!

Não, bobo! Que personagem histórico disse: “Eureka!”

Sei não, quem foi?

Foi Arquimedes de Siracusa, um matemático grego.

Conheço não! É da Grécia é?

Não Antônio, é um matemático Grego de Roma.

Então é romeiro?

Romeiro? Que romeiro, Antônio. É romano que diz!

Não sei também não!

Não sabe o que Antônio?

Quem disse isso ai: “romano”

Não, Antônio, ninguém disse “romano, não. Eu estou te explicando que quem mora em Roma não é romeiro não, é romano.

Sei, entendi: romeiro é que vai em Aparecida, não é?

É Antônio, é! Mas vamos brincar: “Independência ou morte!”

É melhor não!

É melhor não o que Antônio?

É melhor não brincar disso não, do jeito que sou azarado, vai que cai morte.

Que morte Antônio, não vai cair morte alguma!

Ninguém morre, não?

Não Antônio, ninguém morre!

E como é que brinca?

Como é que brinca? Brinca do que Antônio?

Disso ai: Convalencência ou morte!

É convalescença, Antônio

Então, como é que brinca?

Antônio, assim não dá! Desisto! Vou pra dentro, ajudar mãinha!

Vai não! Vamos brincar?

Vamos! De que?

De Tio Tião e Maria Rita. Eu Sou tio Tião, você Maria Rita.

Então tá, você começa.

Rita, minha cabocla, vem cá com seu nego, vem. Vem buliçar, vem. Vamo fazer bobiça, vamo!

Tião, meu, fii, tome tento homem. Inda é cedo, olha as crianças. Corre ali na venda de seu João, corre... Compra uns trem pra gente lanchar. Vamo deixar isso pra noitinha... 

Margarida!

Diz Antônio!

Que é fazer bobiça?

Sei não, Antônio. Sei não!

Eu quero fazer bobiça com você!

Mas, Antônio, o que você está dizendo? Você nem sabe o que é fazer bobiça?

Eu sei sim, já vi Tio Tião e Maria Rita fazendo!

Menino, olha o que você está dizendo, se vóinha te escuta, te pela.

É assim: a gente senta lá dibaixo da mangueira, fica olhando pras estrelas prozeando sobre nome de filhos e, então, eu seguro a sua mão e você segura a minha. Depois eu pego o violão e você me sorri e canta uma canção. Eu sorrio para você e canto também. Vamo brincar de fazer bobiça, vamo?

Mas você não sabe tocar violão, Antônio!

Não é hoje não, sua boba, é quando nós crescermos!

Mas e agora, Antônio, do que nós brincamos.

De pique esconde. Eu conto!

 

EU TE AMO

 

Para Ione Viana de Souza


“Muitos negam a existência do amor, mas todos desejam ser amados” (Christine Ramos)


Tudo o que pensamos, tudo o que realizamos tem um só propósito: o nosso bem. E este bem, Aristóteles definiu como Felicidade. E segundo ele, a felicidade é o mais importante, ou, até mesmo, o único fim das ações e desejos humanos. E para Aristóteles o amor (philia) está no centro da vida feliz. Philia descreve o sentimento recíproco de bem querer sincero e benéfico entre os amantes (amigos). Sem quem nos ame, e sem quem amar, a felicidade perde o sentido.

Em sua Retórica, diz Aristóteles: “amar é querer para alguém aquilo que pensamos ser uma coisa boa, por causa desse alguém e não por causa de nós.” (Aristóteles. Retórica. Tradução e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa. 2005: p. 170)

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles descreve três formas de Amizade: a) por prazer, em os amigos se buscam porque há um prazer recíproco no convívio entre eles; b) por necessidade, em que os amigos se associam um ao outro porque são úteis entre si e retiram da amizade algo de interesse próprio; c) pela amizade em si mesma, em os amigos se procuram porque querem bem uns aos outros. Aqui, busca-se o bem do amigo por amor ao amigo. 

Este tipo de amizade requer, na compreensão aristotélica, benevolência: o desejo do bem ao outro, desejo que se atualiza no fazer bem ao outro. Mesmo que este desejar e procurar o bem ao outro seja desinteressado, na concepção de Aristóteles, a amizade exige reciprocidade. Também o que recebe o bem o retribui. É esta relação de troca de bens pelo bem do outro, pelo outro, que caracteriza o amor. 

Subjetivamente nós procuramos para o nosso bem o que é melhor: o belo, o bom, o perfeito. No amor identificamos o bom com gentileza, educação, cordialidade, respeito, carinho... Assim, na expectativa de sermos amados, esperamos encontrar alguém gentil, carinhoso, compreensivo, sensível, cortez, inteligente, dedicado, acolhedor, educado... que nos ame como somos: com nossos erros, nossos vícios, nossas manias, nosso complexo de Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim. Eu sou mesmo assim. Vou ser sempre assim. Gabriela, sempre gabriela” (Dorival Caymmi: Modinha para Gabriela).

Nós, no entanto, não nascemos com nossa subjetividade. Ela se forma de nossas experiências e de nossas relações com as pessoas e a cultura que nos envolvem. Nossa subjetividade caracteriza ao mesmo tempo nossa singularidade, somos únicos, que não significar ser sempre o mesmo, e nossa sociabilidade: não sou sem o outro. Quando sei ser querido, amado, amo-me. Eu me quero bem se há quem me queira bem.

Neste sentido, dizer eu-te-amo desdobra-se em dizer eu- me- sinto-amado. E aqui eu discordo de Freud, para quem o amor a si mesmo excluiria o amor ao próximo. É preciso que saibamos nos amar, a querer-nos o melhor, como diria Sócrates, para podermos amar alguém. Só deveria dizer eu te amo, quem sabe se amar.  No entanto, só podemos saber o que é nos amar se nos soubermos amados, e sempre somos amados por um outro.  Nós nos amamos como somos amados por um outro. Numa perspectiva sartreana, se nós somos aquilo que nos fazemos daquilo que nos fazem: Eu me amo do amor que me amastes! Dizer eu te amo é dizer: Em ti me percebi amante por ser amado.


sábado, dezembro 12, 2020

MIX de RITS

Meu bem,

Na beleza desse teu olhar

Tu me dás água na boca

Abra os botões deste teu vestido

quero-te toda nua

E se ardendo só pra mim

Não me interesso por teorias

Dê-me em tuas fantasias

Adoro um amor inventado

Deixa eu te amar

Na relva, na rede, como me quiseres

Quero-te toda num beijo

No teu corpo, no teu colo

Lá onde te afloras

Deixa-me ser teu homem

Sejas minha mulher

No chão, no mar, na lua,

na melodia

 

 

 

quinta-feira, dezembro 10, 2020

Tarde de Verão

 

A vidraça embaçada

chuva veraneia

o quarto abafado, sem ventilação

a luz acesa

a radio ligada

mãe e tias

na sala.

Eu, à toa

espichava  olhares furtivos

às pernas da prima.

Foi sonho,

delírio,

desatino,

belisquei -lhe a bunda

“Madrinha, olha o primo!”

“Já pro quarto, menino”

Eu me emburrava

com a chuva açoitando a vidraça

A prima veio ao quarto,

a mãe a tias na sala,

Dedo nos lábios,

um sorriso cúmplice,

desabotoou a camisa

desfez-se da saia

me envolveu em seus braços.

desfiz-me em seu gozo

Acordei.

A chuva havia passado.

A prima, as tias

tinham se ido

Deixaram abraços

pedaço de bolo

“Da próxima vez

te passo a vara

na frente de todos”

disse-me mãe

naquela tarde de verão

quarta-feira, dezembro 09, 2020

QUEM PENSA GERALMENTE SE CALA

 Há falas que revelam o quanto somos indignos de ter direito de fala, mesmo numa posição privilegiada. (Rodner Lúcio)

 

Enquanto indivíduos nos vêm muitas coisas à mente. Sentimentos se misturam a sensações e emoções. É inevitável, portanto, aflorar-nos ideias grotescas, bárbaras, absurdas. Tenho pensamentos de fazer o tinhoso parecer um anjinho romântico. Mas é cá, comigo mesmo. Passando a ser social (cidadão para alguns), tenho responsabilidade por minha fala, não me permito falar tudo que me vem à mente, pois nem tudo que me vem à mente é pensamento. Há em nossas mentes ideias que parecem serem produzidas no intestino. E dizer o que vem à mente pode ser constrangedor, quando não, incriminador. As pessoas, se as respeito, se as quero bem, merecem de mim inteligência, conhecimento, honestidade intelectual, bom senso, mesmo se digo algo por pura graça. Por isso que se deve pensar antes de falar. É o pensar um direito. E todos tem o direito de pensar e falar o que pensa. No entanto, insisto, falar o que pensa não é falar o que vem à mente; falar o que vem à mente é desastroso, quando não criminoso. Falar é se expor. Quem pensa, pensa sua responsabilidade, sabe que se diz em sua fala. De mim para mim mesmo posso falar o que bem quiser, até coisas indigestas. Enquanto cidadão o meu direito não é o de falar o que eu bem quero, o meu direito é o de falar o que eu penso. E pensar me faz, por vezes, guardar silêncio. Nem tudo que penso merece ser falado. Pensar é um exercício, falar o que pensa uma responsabilidade.

ANSEIO SER DURAÇÃO

 


A poesia é um dom que não tenho. Na verdade, não tenho dons. Sou totalmente despossuído.  A realidade é a composição de um conjunto de ilusões. E somos mais que a totalidade de nossas ilusões. Homem algum pode dizer-se por si mesmo. O que de nós sabemos, de antemão, nos foi dito. Eu sou é uma pretensão, uma arrogância. Em todo dizer o ser é o não dito, o que escapa ao afirmado e ao negado. Antes de se formular uma hipótese e passar a persegui-la, se conjectura... Somos conjecturais, um ser que é para o outro, que em si não é totalmente. A totalidade nos escapa entre uma ilusão e outra.

Eu sempre acreditei que eu haveria de ser breve, não passaria dos trinta. Ensaiei não chegar aos quarentas. Um salto mal dado custou-me fraturas da tíbia e do fêmur, meses numa cadeira de rodas o andar apoiado por uma bengala. Uma dose excessiva de remédios que resultou náuseas, vômitos, confusão mental e preocupação nos familiares e amigos. Ensaios erráticos.

Não escolhemos o dia de nossa partida. Se não for a hora, a corda entorno do pescoço não sufoca, arrebenta, e do salto se arrebenta todo, mas o suspiro permanece, dolorido, com sequelas, mas não expira. Cabe à morte decidir o momento, a hora. É quando você menos espera, sem aviso. Tenho aguardo que ela se me apresente. À janela vejo o sol nascer, acompanho o dia se por, me atarefo em coisas sem a menor importância. Que importância há versos que amarfanho e lanço ao lixo? Não há importância alguma. Nasci desimportante. Sou o Midas da desimportância. Nem a morte se interessa por mim. Há dias que converso com a faca, procuro provocá-la. A faca esboça um sorriso condescendente. E só!

Nasci para ser breve, mas a brevidade é tão relativa quanto nossas certezas de nós mesmos. Homens e mulheres mudam de um instante a outro, são seres instáveis, perfectíveis, nunca os mesmos.  A vida é ilusão. É insano querer viver. Não há porque sentir-se em casa no mundo. O mundo é lugar de passagem, não de permanência. O mundo é lugar de insatisfação.

Só na morte reside o estar bem, ela nos livra de nossas ilusões. Ela é uma mudança de perspectiva, uma passagem do conjunto de todas as nossas ilusões para a certeza única. Mircea Eliade a define transcendência da condição humana; retorno à fonte de vida universal.

Enquanto não transcendemos, devemos arranja um motivo, um ideal, uma ilusão que nos motive a permanecer. O noticiário me convida a novos ensaios. A faca faz-se de sonsa. 

Como morrer, não podemos determinar quando e onde começamos a amar. Amar é um acontecimento inesperado, imprevisível, simplesmente acontece. Hoje eu conheci esta menina. Não pude não me apaixonar. Eu ia, ela vinha, ambos apressados, de modo que, mal trocamos olhares. Seu sorriso discreto ascendeu-me desejos de voar. Por um instante a existência, a minha existência lampejou um futuro improvável. A poesia é um dom que não tenho. Há ilusões que precisam desta língua. O que salva o amor é a poética. A estética perece, a poética imortaliza. A menina seguiu seu caminho apressado. Eu a segui preenchido de um desejo de não tempo, de firmamento. Ainda o seu perfume me inebria. A morte deveria nos sobressaltar ao mesmo tempo que o amor, este amor ainda puro, sem anseios de posse.   Prendo-me a atividades banais de amarfanhar versos e arremessá-los ao lixo. O inesperado apresentou-se a mim, escorro a faca para a gaveta. Anseio ser duração...

 

segunda-feira, novembro 30, 2020

NÃO É DE FUTEBOL QUE SE TRATA

Ensinava Zé Toco, técnico do glorioso 7 de setembro Futebol Clube, que o resultado de uma partida deve ser analisada segundo a escalação dos times. “Time que entra com reservas em campo, não entra pra ganha. Entra para, no mínimo segurar, o resultado. Quem tem a disposição um Roderval no time e começa a partida com Ronaldinho Pé chato, não entrou no jogo para ganhar.” Comentavam a derrota do Santa Cruz para o Vila Júlia. E alguém lembrou: Foi o Roderval quem pediu para não jogar. “Meus amigos”, retrucou Zé Toco, “tem disso não, Roderval está para o time, não o time para Roderval.  É como o Carpegiani abrir mão do Zico, e escalar um da base. Não tem lógica. Precisando ganhar, se entra em campo com os melhores, e, se necessário, no sacrifício...  Quando se dispensa a estrela do time, por uma estaca - vamos combinar, uma estaca se movimenta mais que Ronaldinho Pé chato – se jogou para cumprir tabela.” “Mas o Santa Cruz não esperava perder. Esta derrota lhe vai complicar”, comentou Pimentinha. “Só se não puder contar com Roderval para as próximas partidas”, disse Zé Toco. “O receio da torcida é justo este, uma contusão, uma suspensão, como a do Ludiano no torneio passado, quando a coisa for decisiva”, opinou o Suares. “É, o Santa Cruz não pode descartar esta hipótese, juiz mão grande é o que não falta”, assentiu Zé Toco: “Tiana, desce outra cachaça pra mim e pros compadres aqui”, ordenou...

domingo, novembro 29, 2020

NÃO TENHO UM PROJETO PARA MEUS FILHOS, QUERO ENSINÁ-LOS A SE PROJETAREM

No futuro vou ensinar a meus filhos a história de sua mãe. Será uma história, a princípio, mítica. A mãe será, então, ora deusa, ora heroína, e o mundo seu reinado de amor incondicionado. Vou desenhar para meus filhos imagens de mistério e encanto. À medida que eles forem entrando na idade da razão vou lhes ensinando a mãe com os critérios de humanidade, para que eles a entendam não apenas como um papel social, mas como ser transcendendo qualquer determinação. Não os apressarei de uma passagem à outra. Vou contar-lhes também a história dos avôs: serão totens, anciões sagrados, homens sábios. Vou ensinar a meus filhos o amor e a sabedoria das avós. Ensinar-lhes-ei a dor e a morte como caminhos sagrados, porque é mistério.  Vou ensinar a meus filhos os tios e tias. Então, vou contar-lhes a história destes grandes homens e mulheres: Geraldo, Luciene, Marco A Senna, Lidiane, Cristine Dutra, Zulene, Marco Maida, Lygia, Elvis... Marcos de humanidade, que muito contribuíram para a formação de meu espírito e para uma cultura que ainda virá. Quero que meus filhos saibam deles como heróis e como pessoas encarnadas de ideais eternos. São “Quixotes” e “Franciscos”, “Zumbis de morte Severina”, como diz o poema. São homens e mulheres que batalham e lutam por um mundo plural, diverso, comunitário, que quero ensinar para meus filhos. Quero ensinar-lhes o que há de melhor, para que em seus futuros eles tenham de onde partir para suas escolhas mais fundamentais. No futuro vou ensinar para meus filhos o voou que compete só a eles dar. Vou ensinar a meus filhos, na idade certa, que é preciso torna-se adulto e amadurecer e caminhar resoluto, fronte erguida, mas, serena, sem arrogância. Quero que meus filhos vençam não com as armas e os punhos cerrados, mas com as mãos estendidas e solidarias. Não tenho planos futuros para meus filhos. No futuro quero que meus filhos se projetem com os valores que hei de lhes ensinar.


sábado, novembro 28, 2020

SOBRE A AÇÃO PEDAGÓGICA

 Por Claudio Domingos Fernandes

 

Cume da educação é a educação moral: quem o nega não é homem, não é digno da humanidade. P. Giovanni Minozzi

          A reflexão que segue é fruto de minha convivência junto à Família dos Discípulos. Nela estão aprendizados colhidos dos mestres Don Giorgio Giunta, Don Mario Natalini e Don Carmine Mosca, com os quais enriqueci-me, estou em débito  e nutro profunda estima.

Quando entramos em um processo pedagógico, mesmo que de qualificação profissional, não esperamos que as pessoas que nele estão, enquanto formandos, o terminem médicos, advogados, professores, políticos..., embora a formação vise uma qualificação específica. O que sustenta um projeto pedagógico são os princípios de uma formação ampla, profunda, radicada na formação humana.

O que vale para uma qualificação específica tem maior relevância quando tratamos da formação inicial dos seres humanos, que tem um caráter geral...  O processo pedagógico inicial visa uma formação geral, oferecendo os instrumentos – a alfabetização, o domínio da leitura e da escrita, a apreensão dos conhecimentos disciplinares, – para a pluripossibilidades de qualificações específicas, sem perder de vista a formação integral.

A nós, no ensino básico, não importa, a princípio, se a pessoa com quem nos relacionamos em nossas disciplinas será médico, dentista, engenheiro, deputado, padre ou pastor; isto será uma escolha pessoal. Para nós interessa que esta pessoa apreenda um conjunto de saberes que lhe será necessário para conduzir-se no convívio social, constituindo interações propositivas. Em toda formação específica o fio orientador são os princípios éticos de humanização das práticas profissionais, em que o bom médico, ou bom advogado, ou o bom eletricista ou padre ou pastor, seja também uma boa pessoa, isto é, além do domínio profissional, tenha um reto caráter. Esperamos que além de bom juiz, bom professor, bom político, no sentido técnico-profissional, seja boa em sentido ético. Assim, não ensinamos as pessoas a serem bons profissionais, isto dependerá de suas práticas, das experiências que irão adquirir no exercício de suas profissões, no quanto se empenharão aprimorando-se, as ensinamos, mesmo quando a ensinamos a extrair um dente ou a retornar um troco, a serem pessoas integras, respeitadas, reconhecidas.

No ensino básico é isto que importa quando lhes transmitimos nossos saberes disciplinares, não queremos gramáticos, químicos, filósofos..., não queremos que dominem a língua estrangeira à perfeição ou saiam atletas de ponta, não é esta a função do ensino básico. Além da formação para a cidadania e para o trabalho, é a formação para ser integra e integral que orienta nossa ação pedagógica, que norteia nossas praticas na escola. Este ensino não o fazemos com nossos saberes, o fazemos com nossas atitudes, com o modo como vivenciamos o que ensinamos...

Assim, em cada uma das etapas do processo pedagógico as pessoas nele envolvido não assumem apenas categorias cognitivas e epistemológicas, assumem compromissos éticos, que fundamentam suas experiências de vida e seu ensinar.

É neste sentido que, em toda relação pedagógica, e principalmente no ensino básico, “o educador deve inspirar respeito, confiança e segurança no aluno; deve ter uma personalidade [amadurecida], superior, generosa e simpática, verdadeiramente fascinante, que atraia vocações” (Pe Giovanni Minozzi).

sexta-feira, novembro 27, 2020

DESEJO DE TORNAR-SE K

 Para Tomás Amorim Isabel

Se se tornasse ao menos K, logo pronto despertando certa manhã de sonhos agitados, como uma criança, em um corredor escuro, abandonaria a porta da lei, não existem leis, se resignaria à maquinaria burocrática, contra os tribunais não é mais possível defesa, veria se diante do pai “irradiando a mais aguda perspicácia”, já o monstruoso inseto não teria pescoço nem qualquer cabeça...

Não Obstante

Vejo-te o que não és,

na função que ocupas.

Vejo-te burocracia, mando,

metas

Em teu bom dia,

a cobrança de planilhas

e relatórios à primeira linha

me inerva.

Mas sei que sorris e choras

Que sonhas e esperas e desejas

amas e odeias

e brincas com os cães e gatos

e regas as floreiras

falando bobeiras

A que conheço,

mesmo que me exaspere,

entendo e respeito

 um burocrático: bom dia

desejo.

A outra, que desconheço,

não fossem as formalidades,

Cobria de beijos.

quinta-feira, novembro 26, 2020

FÍLIPI

Para Fílipi Lima

Eu conheci um menino
curioso, mas
intrometido que só
e todo precipitado
Tínhamos que
lhe lembrar sempre:
calma; é aprendizado
Que lindo
este menino
tem se tornado
Não nós
mas
Manu
tem lhe ensinado.

EDUCAR PARA SER PESSOA

 Por Claudio Domingos Fernandes

 

El hombre es hombre porque reconoce su dignidad y la de lós demás. Karl Jaspers

 

A pessoa é uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas. Ela não existe senão em relação com os outros, não conhece a si mesma senão pelos outros, não se encontra senão nos outros. Sua primeira experiência é o acolhimento no seio materno, o seu primeiro olhar é o mirar de um olhar que a mira. A pessoa nasce neste primeiro acolhimento, nesta primeira e recíproca mirada.

A pessoa não é uma coisa, um objeto, um algo. Não é um que, é um quem numa teia de relações condicionando-a, sem determiná-la. Destinada a grandes realizações, a inscrever seu ser na história por atos e palavras, a pessoa está propensa também a devaneios, delírios, sandices. Amor, paixão, culpa, pena, raiva, bondade, compaixão, ódio, medos, esperanças, camaradagens e traições manifestam o humano em cada pessoa sem o encerrar. A mão que acaricia, esbofeteia. O beijo que sela uma amizade, também entrega o companheiro. Num dia oferecemos flores, no outro descarregamos as armas. Por isso o existir exige leis, normas, saberes, educação. Bussolas que orientem o existi.

Educar não é ensinar a ter um bom emprego, uma carreira de sucesso. Educar é ensinar a ser pessoa, deixando amadurecer o equilíbrio,  a co-vivência. Não é o número de respostas certas num gabarito que afere a qualidade da educação. Sãos as escolhas que um faz, se tal escolha não o reduz e o encerra em si mesmo, em seus interesses, mas o abre e o direciona à presença dos outros. Somos pessoas se os que nos rodeiam se humanizam e nos humanizam co-responsivamente. Quando o primeiro acolhimento, a primeira mirada, deixa de ser eu-tu e torna-se nós, um Nós estendido a todos os homens e mulheres, a Educação se efetiva.

quarta-feira, novembro 25, 2020

NOSSO COMBATE É AO RACISMO. NÃO COMBATEMOS PESSOAS

 Só aquele que não vê a sua escravidão é escravo, mesmo quando feliz na sua condição. (Emmanuel Mounier)

 

O racismo não é sinônimo para branco. Nem todo branco é racista. A luta antirracista não atinge toda pessoa negra. Nem todo negro é antirracista. O racismo é um produto social, que nasce como modelo explicativo da desigualdade social, fundado na superioridade de raças e se torna uma prática perversa de desqualificação das pessoas a ponto de as tornarem invisíveis ou descartáveis. Como produto social e estruturante de uma sociedade, atinge todos os seus membros em todas as suas relações. Vejamos.

A pessoa só existe à medida que existe com e para os outros. A pessoa não se basta sozinha, nem social, nem espiritual, nem intelectualmente. Nossa subjetividade é uma construção social. De tal modo, somos fruto da socialização, das relações sociais, econômicas, culturais que caracterizam o arco histórico em que vivemos. Nascemos no mundo, abertos, não determinados. Mas dele recebemos as ideias, os valores, os preconceitos, as justificações que condicionam nosso existir. O que nos diferenciará será a capacidade ou não de não apenas absorve-los, mas refletir, criticar, reelaborar, assumir ou rejeitar esta ou aquela ideia, este ou aquele valor ou preconceito. Mas, a princípio, todos nós somos por eles atingidos. Afinal, eles nos são passados desde o primeiro choro. E estão implícitos nos olhares, nas inflexões de voz, nas expressões faciais, e, sobre modo nos discursos articulados nos púlpitos, nos bancos escolares, nas tribunas...

Sem vida social não somos, e somos o que a vida social nos permite ser. Sem essa consciência não a mudamos a sociedade, se a desejamos mudar; não nos mudamos, se desejamos nos mudar.

Daí a importância de sabermos como nossa sociedade se estrutura.

Nossa sociedade se fundou na escravidão e a escravidão é o elemento constitutivo de nossas relações sociais. E como tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, evitamos perceber seus efeitos e sua continuada presença entre nós. Quando dela falamos, segundo Jessé Souza, falamos como se fosse um nome, um termo, e não um fato concreto, uma realidade ainda latente entre nós.

Nós brasileiros, diz Jessé Souza, “somos filhos de um ambiente de escravocrata, que cria um tipo de família específica, uma justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.” (SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. 2017, p.219). E “até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.” (Idem). E desse modo, “a escravidão e o ódio ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso cotidiano.” (Idem, p. 251). Assim, persiste entre nós quem se delicie com o prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos.

O racismo nasce do escravismo. E porque ideias, valores, preconceitos, justificativas não são patrimônios particulares, circunscritos a ambientes próprios, mas circulam por todos os estratos sociais, eles estão presentes também na empregada doméstica, “aquela que é abusada de mil formas”, e nos trabalhadores sem qualificação, “aqueles que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qualquer preço e sob qualquer condição”, nos bolsões de trabalhadores informais e desempregados, que reproduzem o discurso negacionista daqueles que preferem apagar de nossa história nosso evento fundador: a escravidão e fazem circular o discurso meritocrático, que basta esforço e empreendedorismo pessoal para superar as adversidades. Por inúmeros fatores, em que se destaca a formação, assumem uma posição passiva ou conformada, quando não, de aberto contraste com as lutas antirracista. Na outra ponta, personalidades que se destacam, também atribuem irrefletidamente, ao talento natural ou ao mérito as posições que assumiram.  

Assim, a mera presença de pessoas das camadas populares e das minorias sociais em posição de poder e destaque não é suficiente para combater o racismo. Representa avanços. No entanto, entre esses há aqueles que contribuem com o discurso negacionista que tenta apagar a escravidão de nossa história.

Não são indivíduos que mudam a sociedade é a sociedade, que mudando, produz pessoas capazes de a transformar. Não há, porém, transformação sem conflito.

 

 

 

terça-feira, novembro 24, 2020

KU ZAO

Subíamos a Mesquita Figueira. Já perto de casa, paramos num bar para um cerveja. Um sujeito entrou na nossa cola, nos mediu com olhar rude. Pediu uma “quente” e uma cerveja. Nós nos instalamos numa mesa ao canto. Numa próxima, de frente, ele nos encarava. Achei melhor pagarmos a conta. “Gui”, disse: “o clima não é dos melhores”. O tipo mal encarado levantou de imediato: “o que você disse ai?”. “Disse nada não, senhor!” respondi com receio. “Não, não! Eu ouvi bem! Você falou de mim!” “Estava falando comigo”, disse Gui com rispidez, “e não é da sua conta.” “Olha aqui vadias, aqui é um lugar de família, de gente de bem”. “Moço”, disse Gui, “nós notamos, por isso, já estamos indo!” “Moço não, Desembargador! Preto, vagabundo e bicha, eu mando é prender!” “Cidadão de bem; homofóbico; machista e racista, para um combo completo só falta ser bolsonarista”, disse Gui. “Vou descer a porrada, vou descer a porrada!” “Ku Zao”, gritou alguém na porta do bar, “olha o Maguila!” O sujeito se encolheu todo, chegou a mijar nas calças ao ouvir “Olha o Maguila!” “Maguila”, explicou-nos a senhora que gritara da porta do bar, “havia dado uma sova neste tipo, semanas antes.” “Todo Ku Zao, vez ou outra, precisava cruzar com um Maguila”, concluiu Gui. “Eles se cagam, mas não se emendam”, retorquiu a senhora que nos pagou a conta.

domingo, novembro 22, 2020

CONTRA O RACISMO A RADICALIDADE

 "O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa" - Luiz Gama

 

Por que uma vidraça tem mais valor que um corpo preto?

 

Porque desde que aqui chegou, arrancado de sua terra e transportado como coisa, o africano foi recebido a chicotada e marcado a ferro em brasa. Coisa entre coisa foi tratado. Sangrado, chicoteado, extenuado de sua força trabalho e de sua vida, foi ensinado que a propriedade roubada aos nativos tinha mais valor que sua vida roubada em África. Propriedades roubadas tem mais valor que nós, corpos-coisas. Nos ensinaram que somos corpos de menos preço que vidraças. Nos ensinaram que vidraças são propriedade e propriedade é valor  insofismável. De corpos se desfazem, de propriedades não. Desde cedo, aprendemos que propriedades valem mais que vidas. É um direito inalienável. Corpos negros são descartáveis. Desde Cabral a Bolsonaro, houve e há uma sistemática defesa da propriedade, mesmo que roubada, e desqualificação da vida, principalmente em pele preta. O que nos esconderam é que as vidraças escondem a riqueza que é fruto de roubo de propriedades e de vidas, que em toda vidraça protegida se reflete o rosto de populações nativas desapropriadas de suas terras, exterminado por doenças trazidas do outro lado do Atlântico, principalmente a ganância, não nos ensinam nas escolas que as vidraças que tanto protegemos refletem o rosto negro sangrado extenuado, sem vida, assassinado a chicote em nome da propriedade roubada. Não nos dizem que toda riqueza é fruto do roubo de terras indígenas e de vidas negras. Eles preferem falar de mérito. É o sangue nativo e o sangue africano que sustentam as vidraças. Isto nos escondem na escola, nos jornais, nas novelas. Sistemáticamente nos ensinam a amar a propriedade e a riqueza e a matar “corpos-coisas”, vidas negras.  Está na hora de impor outro ensino: vidas pretas importam, vidas nativas importam. Está na hora de derrubar toda vidraça erguida com o sangue de nativos e africanos.  Está na hora de impor contra o racismo a radicalidade. E como é muito lembrado numa frase do Malcolm X: derrubar vidraças não é violência é resistência, é resiliência, isto é, recuperar a dignidade que nos é roubada.

ZAIRA

 Para a Família Senna

 

“O reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra; Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” ( Mc 4. 30-32)

Uma árvore boa não pode dar frutos ruins. (Mt 7, 18)

 

Semente semeada pelo Divino Semeador, Zaira é árvore nobre, de raízes profundas, tronco vigoroso, copa frondosa, sobranceira. Suas folhas e flores vicejam mesmo nas adversidades e em sombrios tempos. Seus frutos têm o aroma e a suculência daquela humanidade que, um dia, havemos de alcançar. Zaíra, entre os teus sempre encontrei onde me aninhar. Hás de, não obstante o momento, ofertar-nos tua graça e presença.

SELMA

 Para Selma Amorim Maida

 

Aparecem flores na terra, e chegou o tempo de cantar (Livro dos Cânticos 2, 12)

 

Para que o mundo não seja sem sentido, e para que não percamos a esperança. Para os dias difíceis e as épocas sombrias, Deus nos deu as flores.

Flores nos atraem o olhar, abre-nos o sorriso, conforta-nos, traz-nos paz. Um ambiente com flores alegra-o, um jardim florido convida-nos ao sossego, e, em sua exuberância, a nos reencontrar com nós mesmos.

Onde há flores há vida, há festa, há alegria, amizade sincera, amor. Onde há flor a esperança acampa.

Selma é flor singela, de uma especial sensibilidade. É flor resistente à rudez, à sombridade que nos assedia.  Seu sorriso acolhe, sua presença conforta e anima. Selma não nasce em jardins ou se sustenta em vasos. Selma é flor de coração, se plantou em meu ser.