sexta-feira, abril 30, 2021

 

TAL EVA

Todas as manhãs o sol passeia seus raios sob as copas das mangueiras, abacateiros, jabuticabeiras. As roseiras ao seu toque se desabrocham, e as hortências vivificam suas cores. Pássaros saltitantes gorjeiam e arrulham, celebrando-o. Borboletas, abelhas, marimbondos disputam as delicadas melissas. O gato e os cães se espicham pelo quintal, banhando-se em sua luz. Mas não duvido! O sol não desperta por outro motivo: é a ti que ele busca. E não te fazes resistente. Todas as manhãs o mesmo espetáculo se repete. O sol, maroto, passeia o sitio para te encontrar, assim Eva, prazerosa, estendida à beira do lago. E toda oferecida, dele te deleitas e provocas ciúmes. Outro dia, caiu sob ti um abacate, doutra vez, uma rosa espetou-te o dedo, recordas-te a arranhada que o gato te deu? Não, eu não ciumo o sol. Se durante o dia ele te aquece, à noite em teu calor eu adormeço. Todas as manhãs, então, eu agradeço o beijo de teus lábios que me desperta, e ao sol que a tudo vivifica, também sou grato. Sem ele o espetáculo que se repete todo dia não havia de ter sentido. E nada significaria o aquecer-me em teu corpo ao fim do dia. O amor não se estanca de repetir-se noite e dia.

 

 

terça-feira, abril 20, 2021

TEUS OLHOS ASSIM

 

Teus olhos assim

Mirados no distante

Correndo infantis

Entre sonhos

Teus olhos assim

Vivazes e

Brilhantes

Teus olhos assim

Lançados em mim

E eu neles me

Perdendo

Entre sonhos

Teus olhos assim

Meu encanto.

VELA EM PROCISSÃO

 


“Nós não somos flagelados que vieram buscar refúgio em algum lugar na América do sul. Nós somos povos originários, precisamos ser tratados com este respeito" (Ailton Krenak)

Segundo o Ailton Krenak, os totalitarismos não suportam muitos, não suportam muitos gêneros, muitas espécies, muitas classes, múltiplas culturas. Para os totalitaristas, segundo o Krenak, há uma só espécie: a humana, e um só mundo e um só sistema mundo: o Capitalismo. E o Capitalismo parece mágico: ele faz aparecer a água na torneira, o leite na caixa, o produto na gôndola, destituído das vidas implicadas em sua produção. Os totalitarismos não suportam a ideia de múltiplos sistemas e de pluralidade. Na concepção mágica do subalterno do capitalismo há a crença de que o capitalismo após consumir o mundo é capaz de produzir outro mundo e desenvolve, então, uma Antologia Fast Food: “Come o mundo, come o mundo, come o mundo, come o mundo”, é uma obsessão em que o lucro é o único interesse. As vidas, as vivencias ou são mercadorias ou são combustíveis da engrenagem de comer mundo. Neste clima, a única coisa que nos resta parece ser o de detonar o outro. Mas Krenak é um tipo otimista. Ele acredita que é possível recuperar o espaço do comum, sustentar a pluralidade de vidas e vivências, na coexistência de cosmovisões que tratam a terra e suas espécies, como Mãe e como irmandades (nós somos irmanados aos outros seres e elementos da natureza) e não latifúndio, produtos, mercadorias. Um mundo habitável, um mundo comum, um mundo que não seja produto a ser consumido, mas co-vivenciado, passa por respeitar os povos originários. Ailton Krenak é dessas chamas de vela em procissão: trepidante mas sustentada por mãos confiantes de uma fé no misterioso sagrado, que permeia a natureza e o humano, e nos conduz a uma dança cósmica futura. Está ultima parte, quem sabe, seja apenas uma minha interpretação.

segunda-feira, abril 19, 2021

UM CIDADÃO DE BEM

 

Um cidadão de bem, no afã de justificar a política de armamento do genocida, tomou um fragmento do livro do êxodo (22, 1). Mas esse fragmento isolado não oferece justificativa suficiente para um se armar, pois logo na sequencia o texto lembra que “se o sol brilha sobre ele (o ladrão), haverá vingança de sangue por causa dele.” O texto é claro: ‘o ladrão deve pagar indenização’: se não possui nada, ele mesmo será vendido em pagamento do seu roubo. (Êxodo 22, 2). Fica patente que a morte do ladrão não é desejável, pois, além de não poder indenizar a vítima, sua morte abre a possibilidade de vingança, ou seja, mais violência. Ao amigo cidadão de bem, sugiro o capítulo 5 de Mateus, em que Cristo reformula o livro do Êxodo e ensina: “ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Porém, vos digo: Não resistais ao mau. Pelo contrário, se alguém te esbofeteia na face direita, vira-lhe também a outra... Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem... (Mateus: 5, 39; 44). Mas, se ao ensinamento de Cristo, ele  preferir continuar encerrado no Antigo Testamento, antes de comprar uma arma, espero que ele considere viver de acordo com os preceitos do capítulo 23 do livro de Êxodo: “Não espalharás boatos sem fundamento (fake news). Não tomes o partido de um culpado, dando um testemunho falso. Não seguirás uma maioria que quer o mal, e não intervirás num processo inclinando-te em favor de uma maioria parcial. Não favorecerás com parcialidade um fraco no seu processo. Quando deres com o boi do teu inimigo ou o seu jumento perdidos, tu os reconduzirá a ele (minha avó dizia que qualquer coisa que a gente acha e não procura devolver ao dono , fosse uma moeda de cinco centavos, é roubo, e ela não leu Êxodo), ao vires caído, sob o peso da caga, o jumento de quem te odeia, longe de abandoná-lo, tu o ajudarás a ajeitar a carga ( o respeito aos animais já está presente aqui). Não falsificarás o direito do teu pobre no seu processo. Manterás distancia de uma causa mentirosa. Não mates um inocente nem um justo, pois eu não justifico um culpado. Não aceitarás propinas, pois a propina cega as pessoas lúcidas e compromete a causa dos justos. (Êxodo: 23, 1ss).  

domingo, abril 18, 2021

DEUS OMNIA VIDET

 

Meu compadre Marco Maida, em conversa com o escritor Ademiro Alves de Sousa (Sacolinha), contou-nos uma sua experiência num seminário premonstratense. Ele fora a este seminário para um retiro, e, diz o compadre, ao ir banheiro, sentiu-se incomodado com a figura do olho de Deus gravado na porta do banheiro. Junto à figura se lia: “Deus omnia videt”, Deus tudo vê. O incomodo do compadre foi tanto, que ele se resolveu entre moitas. Lembrei-me de que minha avó, quando fazíamos arte e tentávamos evitar a reprimenda, inventando histórias, nos alertava: “Ói menino, cê num mente pr’eu não, cê num mente não, que Deus tá vendo, Deus castiga!”. Não à toa meu compadre sentiu-se incomodado com os olhares de Deus no banheiro. Tal serve para ilustrar-nos que, não obstante professarmos que Deus é amor, e que ele está sempre disposto a perdoar (77 x7 vezes, como ensinou o Cristo), nós herdamos uma concepção assustadora de Deus. O Deus do Cristo, que acolhe, que perdoa, que cura, que doa-se, que, em resumo, ama incondicionadamente,  tornou-se um Deus impiedoso, ávido por nos impor castigos. Assim, o Deus que tudo vê é um Deus sempre a espreita para pegar-nos em erro. Na verdade, este Deus, embora tudo possa ver, só tem olhos para o pecado e é um Deus que goza de nossos receios, de nossos temores. O Deus que tudo vê, como o herdamos, é um Deus sádico. Mas “se pudéssemos surpreender Deus em seu voyerismo, observaríamos sua face ruborizada de criança curiosa, pega à fresta da porta.” Quem disse-me isto foi um monge camaldolense. “Deus não nos observa no afã de nos castigar. Deus contempla a criação e certifica que tudo é bom. Na narrativa da criação, o autor de Gênesis afirma cinco ou seis vezes que Deus vê o que faz e certifica que é bom. E que ao homem e a mulher, Ele abençoa. É este o nosso Deus, nosso Deus é um Deus que tem olhos para o que é bom, não é um Deus que castiga; é um Deus que abençoa.” À clássica figura do triângulo com um olho ao centro, o monge me apresentou um olho infantil incrustado numa fresta. “O olhar de Deus é o olhar de uma criança curiosa do outro e que se encanta com o que há de mistério e beleza no outro. Deus não está atrás de nossos pecados. Ele está sempre atrás de motivos para nos continuar abençoando. Nosso Deus, não é o Deus do castigo, é o Deus da benção!” O Sacolinha perguntou a meu compadre se ele era ateu. Meu compadre guardou silêncio. Deus ri-se. O silêncio de meu compadre é muito bom!


sexta-feira, abril 16, 2021

LAR

  

Antes do telhado, os muros e suas aberturas. Antes deles o alicerce, e antes, ainda, os fundamentos. Mas antes, bem antes dos fundamentos, alicerces, muros e suas aberturas e o telhado, antes mesmo disso tudo: o projeto. Uma vaga ideia que martela e martela e martela. E torna-se rascunho em papéis amarfanhados, e ganha contorno de esboço, de arte final com detalhes de tudo o que vai dentro. Assim, antes do telhado, das portas, das janelas com floreiras, da varanda que há de ser ensolarada, das paredes decoradas, a casa, mesmo que não venha a ser, já é, num beijo que te roubo e no afago que me das, não casa, mas lar.

terça-feira, abril 13, 2021

Busco e fujo ao teu olhar

 Busco e fujo ao teu olhar

com olhares dissimulantes.

E do teu sorriso,

entre páginas não lidas,

desejos e decoros

escondo-me

Minha translação não se ajusta

à tua rotação

E a ordem que nos aproxima,

mantém-nos distante.

E todos nossos encontros são,

já bem antes,

despedidas no mesmo instante.

segunda-feira, abril 12, 2021

No tempo da colheita

 

Meu caro, não obstante os dias cinzas e os maus presságios, limpei e adubei os canteiros, podei as roseiras, semeei girassóis, reservei-te um bom vinho, porque, após tudo, há de haver o meu jardim para que te sintas em casa. As noites de chumbo hão de passar. Os insensatos não perduram. Deles, como o joio entre o trigo, nada se aproveita. No tempo da colheita ficam a se perder pelo solo, varridos pelo vento.  (Trecho de Carta de Christine Ramos à Eurípides dos Santos)

sexta-feira, abril 09, 2021

DON GIORGIO GIUNTA

 

 Mãe não mente, e a minha mãe diz que eu só me tornei gente graças a Don Giorgio Giunta. De fato, Don Giorgio foi meu formador e orientador vocacional e espiritual. Com ele aprendi a dimensão do Cristo Divino Mestre. Mestre que ensina com gestos de acolhimento e doação de si.  Don Giorgio dizia-me com frequência: “As boas obras recusam publicidade, as praticamos sem esperar reconhecimento”. Don Giorgio ajudou-me a amadurecer como pessoa, investiu tempo, conhecimento, paciência, generosidade em um sujeito como eu. Quando eu estava para deixar a vida religiosa, numa conversa franca disse-me: “A tua vocação, antes de tudo, é encontrar o sentido de seu ser, o sentido de sua existência. Eu penso que seja como sacerdote. Mas é você que se deve colocar esta possibilidade. O sentido de sua vocação é sua realização. Não há maior desserviço a Deus e a ti mesmo que um sacerdócio insatisfeito.” Hoje Don Giorgio nos deixa. Entre nós foi de uma grandeza que não se mede em palavras. Hannah Arendt diz que temos dois nascimento, o natural e o de nossa inserção em nossa comunidade, em nossa cultura. Com Don Giorgio eu nasci para uma cultura que reconhece nossas limitações, mas que se propõe a não ser reduzir a elas. Com Don Giorgio aprendi a tolerar, a acolher, a partilhar. Não sei não lhe ser grato.

Acompanhar a realidade e não se desesperar é impossível. Nosso desespero é vislumbrarmos a humanidade que não atingimos. (Christine Ramos)

HUMANIDADE

 

Para Marcos Guilherme

 

Toda totalidade tem para nós, que a colocamos em particularidades, um sinal duplo. Totalidade indica perfeição. Aplicado em particularidades aponta avanços em direção a tal perfeição; indica atraso, retrocesso, corrupção. Assim se dá humanidade. Humanidade indica a perfeição do humano, o humano tende à perfeição. Assistindo, porém, o que ocorre entre nós, vivenciando os desmandos, os descalabros as atrocidades de que somos capazes, ante o morticínio programado que nos campeia, julgamos, desesperados: “ a humanidade, está perdida! A humanidade não tem jeito! De tão irremediável que somos, nem um Deus nos salva! ” Mas Bolsonaro e família, Dr. Jairinho,   Valdomiros e Silas, não são parâmetros para se nos medir enquanto caminhamos rumo a esta totalidade. Ilustram apenas do que somos capazes se nos reduzimos às nossas vaidades. A humanidade se julga pelas relações solidarias, respeitosas, tolerantes, pelas lutas por direitos, por justiça, por liberdade, pela indignação contra toda forma de exploração, intolerância, preconceito. A humanidade não se ilustra na bancada da bala, na bancada da bíblia (é minúscula mesmo), na bancada do boi. Não, a humanidade está no empenho extenuante de médicos, enfermeiros, socorristas, pesquisadores, cientistas na luta contra a pandemia. A humanidade não esta perdida porque generais e empresários aplaudem as sandices de um genocida.  A humanidade não se perde, homens, mulheres, sim!  Não! A humanidade não é o crime, a vilania, a indiferença. Ela se insinua nos textos do Atanásio Mykonios, nos versos e nas ilustrações do Marcos Guilherme, nos ensinamentos da Fátima Pedro, do Luciano Mello, do Sergio Gatollin. A humanidade se insinua na voz da Val Serra, da Luciene Azevedo, da Daniela Lamim, no canto da Pamella, da Patty, da Heline. A humanidade é Dora, é Jurema, e Neide e Ibanez, dirigidas na humanidade do Cidão, da Lidi, do Marco Senna. A humanidade é Fabio, é Ana e nossa cultura popular. A humanidade está na música do Alexandre Guilherme, no RAP do Rodolfo, na poética do Ailton Ferreira, do Anderson Borges, nas produções do Filipi, do Delcimar, nas provocações do Maida, do Magno, do Ivo.  A humanidade não está perdida, ela se insinua nas lutas da Conceição, do Garippo, do Niltinho. A humanidade avança e chega como promessa no Theo, no Heitor. E se a nossa fraqueja, a deles há de ser melhor. Nossos atos dizem apenas de nós, se estamos no caminho de nossa humanização ou se vamos nos desumanizando. A humanidade não se julga nas nossas arbitrariedades, contradições, leviandades. A humanidades é onde ainda não chegamos, mas que homens e mulheres nos apontam com o seu saber, a sua arte, a sua generosidade.   A humanidade se insinua lá onde há indignação, luta, insistência, resistência, resiliência, co-vivência.

quinta-feira, abril 08, 2021

quarta-feira, abril 07, 2021

OUSAR SABER E FALAR

 

Já Aristóteles dizia que o ser humano é o único entre os animais que tem o dom da fala. É de Aristóteles também a compreensão de que “todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer”. Assim, a pessoa humana não é apenas um ser falante, é um ser de conhecimento, um ser que busca conhecer.  É conhecendo que homens e mulheres encontram possibilidades de humanidade. “Quando não contente em ser apenas um animal que fala, a pessoa procura tornar-se um animal que sabe, ela avança em humanidade.” (Zózimo de Ítaca).  Ao procurar conhecer, homens e mulheres, nesta procura, encontram as trilhas do humanizar-se. Sua liberdade consiste em adentrar ou não por essas trilhas. A autonomia é uma aventura àqueles que não querem apenas falar, a autonomia é uma aventura àqueles que, a falar, preferem saber. Sem conhecimentos a fala descamba em vociferações, impropérios, xingamentos. “Quem procura saber pouco fala, quem só procura falar, fala muito e nada diz” (Rodner Lúcio). E estamos nestes tempos em que todos querem ter lugar de fala, sem ter conhecimento. “Ousa saber”, dizia Kant àqueles que desejavam se desprender das amarras de doutrinas e conhecimentos que apequenam nossa humanidade. Ousar saber é falar menos.

domingo, abril 04, 2021

RESSURREIÇÃO

 

Estávamos reunidos em um jardim, não era longe de casa. De repente cercou-nos a polícia, um que andava com a gente, uns canalhas. Queriam nosso irmão e mestre. Um ou outro de nós esboçou resistir, mas ele se ofereceu à prisão.  Uma barreira de policiais de formou entre nós e ele. O vimos, então, sumir arrastado sob regozijo dos canalhas que davam suporte à policia. Sobre nós abateu o desespero, o medo, o acorvardamento. Durante dias ficamos sem nos reunir, evitando tocar o nome de nosso companheiro. Por familiares, a mãe principalmente, ficamos sabendo que ele foi torturado e cruelmente assassinado. Seu corpo ficou irreconhecível... O medo de sermos também nós presos levou-nos a nos esconder. Aos poucos, e ainda receosos, fomos nos reorganizando. E mesmo abatidos com a morte de nosso irmão, já não deixávamos de falar dele. E então fomos lembrando seus atos e palavras. Um lembrava de como ele acolhia as pessoas, outro lembrava de como ele o convidou para o grupo, outro lembrava de sua dedicação aos doentes, aos órfãos, as viúvas. Outros lembravam suas falas sobre uma outra realidade possível, que ele chamava Reino. Os doentes seriam tratados, os camponeses teriam terra, o pobre seria assistido, não haveria injustiças. Suas convicções enchiam-nos de esperança. Aos poucos, de relato em relato íamos compreendendo o que ele nos dizia, sua morte já não nos abatia, já não tínhamos medo, e quando demos conta, falávamos dele em pleno dia. E fomos além. Tomados de coragem começamos a agir como ele agia, visitávamos os doentes, alimentávamos os famintos, socorríamos os perseguidos, acolhíamos o estrangeiro, partilhávamos o pão e o vinho. Em nossos atos, em nossas palavras, sentíamos sua presença. Foi quando compreendemos algo que ele nos dissera: “toda vez que fizestes isto aos pequeninos, aos aflitos, aos excluídos deste mundo, a mim o fazeis e eu, entre vocês, estarei”. Naquela tarde, um dos nossos, vencendo certa resistência, acolheu um cheio de feridas, tratando-o como fosse o corpo torturado de nosso companheiro.  “De fato, vive!”, disse-nos. Mas foi quando dividimos o pão e o vinho, e ninguém, por ser isto ou aquilo, por fazer esta ou aquela escolha, deixou de comer ou beber, naquela tarde, nós o vivemos. Do colo da mãe, uma criança anunciou: “O Cristo Ressuscitou! Aleluia! O Cristo vive! É em nós, em nossos gestos e palavras!”Foi então que entendemos: “Somos nós que damos vida ao Cristo e atuamos o seu Reino.”

TIMÓTEO

 


“Se você está pensando em deixar-me por favor eu quero lhe pedir: Deixe-me outro dia sim, porém hoje não.” Agnaldo Timóteo

 

Nas festas , Timóteo era presença certa. Tio comandava a vitrola e, a seu juízo, festa sem Timóteo não era festa. Lembro-me dele “aprumando-se”, como dizia, “pras madamas de dona Zita.” “Que coversa é esta com esses meninos ?”, ralhava vó, “vai arrumar serviço!”.  Tio ria e sai cantarolando: “Amor proibido/A minha maneira é autencidade/ Vou ficar contra o mundo/ Mas não posso fugir/ deste amor que é verdade...” Nos sábados, à tardinha, tio dependurava o espelhinho do lado do tanque, tomava da navalha, se barbeava. Depois, se enfiava numa camisa vermelha,vistosa, ornada por terno branco. Tio se metia um chapéu de abas curtas combinando com o terno, flor de cravo na lapela. “Onde vai o janota?”, perguntava vó . Cheirando a colônia de barbear, tio impostava a voz à Timóteo e parodiava: “Eu hoje vou sair e procurar uma nora para ti”. “Se encontrar, deixa por lá mesmo!”, retrucava vó, sorrindo-lhe. Tio beijava-lhe a testa, pedia-lhe benção, ganhava o mundo cantarolando: “se eu demoro mais aqui eu vou morrer...” Um dia tio trouxe nora e neto. Mas esta é uma outra história, que deixo para uma outra hora.   Tio e Timóteo agora estão em festa.

quinta-feira, abril 01, 2021

A MISSÃO DE JESUS É UM FRACASSO

 


 

Olá! Como vocês estão? Espero que bem e se cuidando, seguindo as orientações sanitárias, usando máscara, álcool em gel, saindo apenas se necessário, mantendo distanciamento social, evitando aglomerações.

 

Não sei se vocês têm ou não uma crença, se vocês são ou não cristãos. Não sei, se vocês sendo cristãos, seguem ou não algum movimento ou Igreja. Independente disto tudo, crendo ou não, seguindo ou não esta ou aquela igreja, somos culturalmente cristãos. Até mesmo para negar a existência de Deus, negamos da perspectiva cristã.

Quero tratar aqui com vocês, respeitando a sensibilidade religiosa de cada um de vocês do evento da paixão de Jesus, o Nazareno, que culmina em sua morte na cruz. Lembro que há dois eventos da história do crucificado que requerem a dimensão da fé: sua concepção virginal; sua ressurreição. Mas a vida que Jesus viveu, as opções que orientaram sua ação existencial e que o levaram à prisão, à tortura, a um julgamento forjado, a uma condenação espúria, a uma morte ultrajante, dá se do arco das ações humanas, não há nesses eventos intervenção divina. Na cruz não ocorre um deicídio, há o assassinato de um homem, de um ser humano. O homem transfigurado na cruz revela a crueza a que nós homens, quando nos apegamos ao poder, à riqueza, à falsa honra, podemos chegar. “Jesus morreu por nossos pecados.” Este “por” não significa, de modo algum, em nosso favor. Morrendo na cruz, Jesus não nos alivia de nossos pecados. Não, este “por”, é imputativo. A morte vergonhosa de Jesus é responsabilidade nossa, Jesus morre por nossos atos, por nosso apego ao poder, à riqueza, à falsa honra.

A sua vida e o seu ensinamento foram um confronto continuo contra as autoridades religiosas, políticas e econômicas, que usam do saber e do prestígio para enganar, expropriar, explorar, perseguir, matar.  Jesus evidencia que todo poder, toda riqueza, todo mérito sustenta-se da dor, do sofrimento. Para Jesus não sentido uma pessoa, em nome de Deus, acumular terras que não produz, casas cheias de quartos que não habita, bens que não usufrui e as traças corroem, ante multidões famintas, doentes, desempregadas. Para Jesus não há preguiça, não há acomodação, não há desinteresse nos desfavorecidos, há exploração e expropriação. A pobreza é roubo. E usa-se o nome de Deus para justificar tal roubo.

“Jesus morre para cumprir a vontade de Deus”, do seu Deus. Mas não é vontade de seu Deus que ele morra. Ele morre, porque ao cumprir a vontade de seu Deus, ele vai contra nossa mesquinhez humana. Nós matamos Jesus porque a vontade de seu Deus: um mundo fraterno, um mundo em que as coisas sejam comuns, o pão chegue a todos, a terra seja de todos, em que as pessoas sejam respeitadas, acolhidas, tenham vida digna, assumam suas escolhas, não nos interessa.

Jesus para cumprir a vontade de seu Deus não pode abrir mão dos perseguidos, dos doentes, dos expropriados, dos explorados, dos encarcerados, que por perceberem as tramas religiosas, políticas, econômicas, se opõem e se insurgem contra elas. Não, Jesus cumpre até o fim a vontade de seu Deus, consequentemente é assassinado. O Deus dos templos, o Deus dos sacerdotes, o Deus dos cidadãos de bem, o Deus dos caridosos que dão esmolas com a moeda da viúva e do órfão, não é o Deus de Jesus. A morte de Jesus não é vontade de Deus, não do seu Deus, a morte de Jesus é fruto de nossas ações, é em nome de nossos interesses, é em nome do Deus do privilégio, do mérito. “Jesus morre por nossos pecados”, somos responsáveis por sua morte.

O cristianismo que se desenvolveu após a morte de Cristo é um retorno ao Deus dos templos, dos sacerdotes, dos senhores, dos cidadãos de bem, dos meritocratas, dos que fazem caridade com o que tiram dos pobres. No corpo pendendo na cruz vislumbramos o fracasso do Deus de Jesus. O Deus de Jesus, com o cristianismo perdeu espaço, em seu lugar assumiu o Deus doador de privilégios para alguns, “os agraciados”, e o deus terrível, o Deus Castigo dos empobrecidos, dos expropriados dos perseguidos.

O Cristo transfigurado na cruz ilustra do que somos capazes, por nossos pecados, para não abrir mãos deles, de fazer com um ser humano. Não é preciso ter fé, não é preciso crer em Deus, para ver no Cristo morto nossa capacidade de transfigurar a humanidade. Nós temos o poder de desumanizar o ser humano e usar Deus como escusa. A missão de Jesus é um fracasso.