Tento
responder à provocação de uma amiga.
Eu
não me recordo bem a história. Ocorreu, penso, nos tempos de Ambrosio,
prefeito-bispo de Milão, em fins do século IV. Quem nos a contou foi tia, numa
destas noites de muita fogueira, batata doce na brasa, pipoca, chá de erva
cidreira e gengibre, quentão...
“Conta”,
dizia tia, “que numas terras de nome Milão (cumpadre não é milhão não, é Milão,
visse), havia um tipo dado a espalhar a vida alheia. De sua língua mordaz não
escapava ninguém. O tipo, um dia caindo em si, foi confessar com o bispo
Ambrósio. O sábio pastor analisou o caso e penitenciou o tipo. Ele devia
despenar um frango e espalhar as penas pela cidade e depois voltar ao confessionário
para receber o perdão das dívidas. Passado uns dias, o tipo apresentou-se
novamente diante do bom sacerdote. Este, informado do feito, olhou com candura
para o pobre sujeito e asseverou-lhe: “agora, para que completes a penitência,
percorras a cidade recolhendo as penas que espalhastes e as restitua ao
frango!” O tipo, desanimado, reagiu com certa lamúria: “o que me pedes? Sabeis
que tal é impossível!” O bom homem de Deus abriu-lhe um sorriso: “Espero, meu
caro, que tenhas compreendido o mal que fazes quando depenas as pessoas e as
espalhas com tua língua!” Diz-se que daquele dia em diante o tipo guardou
retidão”, concluiu tia.
Enquanto
tia narrava a história, entre trejeitos e pausas que fazia, nós olhávamos uns
pro outros e, cúmplices, para Dona Zita.
Nossas molecagens geralmente eram descobertas. E sempre desconfiamos que por
trás tinha a figura de Dona Zita. Certa feita, as primas e as amigas combinaram
com uns tipos encontrarem-se no lago. E saíram, sem mais, sem menos, como
faziam sempre, para a escola. Não sabiam elas que vó e tia já as aguardavam no
lago. Dona Zita foi praguejada meses seguidos. Fizeram até Judas da pobre
mulher. Na época, não entendíamos que entre os adultos do vilarejo havia um
pacto de cuidado compartilhado. Deixavam-nos até certo ponto libertos em nossas
aventuras e traquinagens, mas tinha sempre alguém nos vigiando, comunicando uns
aos outros, onde estávamos, o que fazíamos. Hoje esse pacto entre adultos, para
permitir a sensação de liberdade necessária que a criança deve ter, para querer
conquistar a liberdade de fato, parece-me impossível. Ao mesmo tempo em que
vivemos sob o signo da vigilância total, vivemos também sob o signo da
incomunicabilidade social. Confiamos nos equipamentos eletrônicos de vigilância,
mas nos ressentimos facilmente com observações alheias. Não somos afeitos a
intromissões em nossas vidas. Li, por exemplo, de recente, uma mãe procurou
informar outra do comportamento estranho do filho e dos companheiros. E a mãe
juntou-se ao filho (treze anos) e não apenas mandou a outra para aquele lugar, como a
agrediram fisicamente. Vó teria agradecido e colocado as barbas de molho: “aos
outros digo que meus netos são santos, mas, bem sei que não há santo que não
peque”, dizia para nós. Quando ela e tia tinham que nos deixar sozinhos,
recomendavam: “Qualquer coisa, corram à casa de fulana ou sicrana, já conversei
com ela.” Hoje eu entendo que existe um certo tipo de fofoca, que podemos dizer
‘protetiva’. Há coisas que câmeras não captam. Um olhar materno ou paterno
atento, sim! E seria bom que pais e mães trocassem informações sobre os filhos
que são santos, mas pecam.
Nós
estamos sempre falando de alguém. “Onde encontrares dois sujeitos conversando,
há um terceiro do qual falam”, dizia um amigo italiano. Quando chegava em algum
lugar, ia logo perguntando: “De quem estamos falando?”
“Às
vezes”, dizia ele, “as pessoas falam uma das outras, porque preocupam-se,
querem-se bem, querem participar, sentirem-se parte da vida uns dos outros. Há
momentos que somos centro da conversa por “lazer”. Falta assunto, falemos de X,
Y, Z. E tudo termina em boas risadas..”
Mas,
há a fofoca rasteira, maldosa, que visa nos prejudicar, obter alguma vantagem
sobre nós. Isto se dá muito nas relações de trabalho quando a ambição por
reconhecimento, a disputa por um posto, uma promoção etc. Geralmente são
comentários depreciativos, falsos, que revelam o caráter mesquinho de quem a
pratica. Se dá também nas disputas amorosas e também denuncia uma falta de caráter.
Nesse tipo de conversa percebemos ambição, inveja, rancor, mesquinhez... Contra
esse tipo de conversa vó nos recomendava manter distância: “Quem conversa com
cobra de seu veneno recebe”, dizia. Assim, vó sempre nos recomendou prudência
ao falar de alguém: “o que lançamos ao vento, o vento espalha. Mas o vento não
tem direção, e o que espalhamos, pode nos retornar.”
Se
ao fim de um bate-papo o que resistiu foi o riso e a camaradagem, “reforçamos
os laços de amizade”, dizia meu amigo italiano. Se, ao contrário, o que ficou foi
um clima desagradável, tenso, de desconfiança, “apenas fofocamos”, completava.
Eu,
como escritor, estou sempre falando das pessoas. Evito a fofoca porém. É isto!
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