domingo, julho 03, 2016

FOFOCAR OU NÃO: EIS A QUESTÃO?




Tento responder à provocação de uma amiga.



Eu não me recordo bem a história. Ocorreu, penso, nos tempos de Ambrosio, prefeito-bispo de Milão, em fins do século IV. Quem nos a contou foi tia, numa destas noites de muita fogueira, batata doce na brasa, pipoca, chá de erva cidreira e gengibre, quentão...

“Conta”, dizia tia, “que numas terras de nome Milão (cumpadre não é milhão não, é Milão, visse), havia um tipo dado a espalhar a vida alheia. De sua língua mordaz não escapava ninguém. O tipo, um dia caindo em si, foi confessar com o bispo Ambrósio. O sábio pastor analisou o caso e penitenciou o tipo. Ele devia despenar um frango e espalhar as penas pela cidade e depois voltar ao confessionário para receber o perdão das dívidas. Passado uns dias, o tipo apresentou-se novamente diante do bom sacerdote. Este, informado do feito, olhou com candura para o pobre sujeito e asseverou-lhe: “agora, para que completes a penitência, percorras a cidade recolhendo as penas que espalhastes e as restitua ao frango!” O tipo, desanimado, reagiu com certa lamúria: “o que me pedes? Sabeis que tal é impossível!” O bom homem de Deus abriu-lhe um sorriso: “Espero, meu caro, que tenhas compreendido o mal que fazes quando depenas as pessoas e as espalhas com tua língua!” Diz-se que daquele dia em diante o tipo guardou retidão”, concluiu tia.

Enquanto tia narrava a história, entre trejeitos e pausas que fazia, nós olhávamos uns pro outros e, cúmplices,  para Dona Zita. Nossas molecagens geralmente eram descobertas. E sempre desconfiamos que por trás tinha a figura de Dona Zita. Certa feita, as primas e as amigas combinaram com uns tipos encontrarem-se no lago. E saíram, sem mais, sem menos, como faziam sempre, para a escola. Não sabiam elas que vó e tia já as aguardavam no lago. Dona Zita foi praguejada meses seguidos. Fizeram até Judas da pobre mulher. Na época, não entendíamos que entre os adultos do vilarejo havia um pacto de cuidado compartilhado. Deixavam-nos até certo ponto libertos em nossas aventuras e traquinagens, mas tinha sempre alguém nos vigiando, comunicando uns aos outros, onde estávamos, o que fazíamos. Hoje esse pacto entre adultos, para permitir a sensação de liberdade necessária que a criança deve ter, para querer conquistar a liberdade de fato, parece-me impossível. Ao mesmo tempo em que vivemos sob o signo da vigilância total, vivemos também sob o signo da incomunicabilidade social. Confiamos nos equipamentos eletrônicos de vigilância, mas nos ressentimos facilmente com observações alheias. Não somos afeitos a intromissões em nossas vidas. Li, por exemplo, de recente, uma mãe procurou informar outra do comportamento estranho do filho e dos companheiros. E a mãe juntou-se ao filho (treze anos) e não apenas  mandou a outra para aquele lugar, como a agrediram fisicamente. Vó teria agradecido e colocado as barbas de molho: “aos outros digo que meus netos são santos, mas, bem sei que não há santo que não peque”, dizia para nós. Quando ela e tia tinham que nos deixar sozinhos, recomendavam: “Qualquer coisa, corram à casa de fulana ou sicrana, já conversei com ela.” Hoje eu entendo que existe um certo tipo de fofoca, que podemos dizer ‘protetiva’. Há coisas que câmeras não captam. Um olhar materno ou paterno atento, sim! E seria bom que pais e mães trocassem informações sobre os filhos que são santos, mas pecam.

Nós estamos sempre falando de alguém. “Onde encontrares dois sujeitos conversando, há um terceiro do qual falam”, dizia um amigo italiano. Quando chegava em algum lugar, ia logo perguntando: “De quem estamos falando?”

“Às vezes”, dizia ele, “as pessoas falam uma das outras, porque preocupam-se, querem-se bem, querem participar, sentirem-se parte da vida uns dos outros. Há momentos que somos centro da conversa por “lazer”. Falta assunto, falemos de X, Y, Z. E tudo termina em boas risadas..”

Mas, há a fofoca rasteira, maldosa, que visa nos prejudicar, obter alguma vantagem sobre nós. Isto se dá muito nas relações de trabalho quando a ambição por reconhecimento, a disputa por um posto, uma promoção etc. Geralmente são comentários depreciativos, falsos, que revelam o caráter mesquinho de quem a pratica. Se dá também nas disputas amorosas e também denuncia uma falta de caráter. Nesse tipo de conversa percebemos ambição, inveja, rancor, mesquinhez... Contra esse tipo de conversa vó nos recomendava manter distância: “Quem conversa com cobra de seu veneno recebe”, dizia. Assim, vó sempre nos recomendou prudência ao falar de alguém: “o que lançamos ao vento, o vento espalha. Mas o vento não tem direção, e o que espalhamos, pode nos retornar.”

Se ao fim de um bate-papo o que resistiu foi o riso e a camaradagem, “reforçamos os laços de amizade”, dizia meu amigo italiano. Se, ao contrário, o que ficou foi um clima desagradável, tenso, de desconfiança, “apenas fofocamos”, completava.

Eu, como escritor, estou sempre falando das pessoas. Evito a fofoca porém. É isto!


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