sexta-feira, julho 22, 2016

BHEATRIZ



“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” (Karl Marx, Os dezoito Brumário de Luis Bonaparte)

          Uma miragem nostálgica, uma remota lembrança aflorou-me num sorriso estrangeiro passando com a turba rumo ao palácio. Iam, punhos cerrados, palavras de ordem, desfilando cartazes e proferindo discursos. O brilho de seus olhos, a expressão indignada, mas confiante no rosto, as cores de sua causa vestindo sua juventude, o misto de marcha e dança de seus passos avançando contra o governo, tudo, num fugaz instante, imprimiu-me a impressão do passado visitando-me em uma tarde sem expectativa de futuro...
        Foi num remoto maio de 1968, marchávamos confiantes de que escrevíamos os rumos do mundo, que, dali em diante, inaugurávamos a humanidade e haveria, de então, apenas a liberdade a nos guiar. Mais adiante, a guarda nacional, os cães do atraso, da intolerância, os truculentos aguardava-nos. Confiávamos transpô-los: o desejo nos guiava febris. Houve o confronto: baionetas, tanques, granadas, gás... contra corpos armados apenas de cartazes, desejos e ilusões. Nos dispersamos, recuamos, saímos em fuga...
       Tirei os óculos, esfreguei os olhos, Bheatriz vinha em minha direção desorientada, abracei-a, e escapamos juntos. Encontramos um quarto de hotel, para restaurar-nos.
      Sozinha, no banheiro, fechada por uma cortina que lhe servia de porta, Bheatriz observava seu corpo, buscava as marcas do confronto, tocava os pontos de dores. Olhou-se em um pequeno espelho.  A maquilagem desmanchada em lágrimas dava-lhe um aspecto selvagem. Tinha a beleza de uma ingênua adolescência... Chegou mais perto do espelho, começou a despir-se. Tirou a calça jeans, a camiseta, o sutiã. Acariciou lentamente os seios, massageou os mamilos. Deslizou a mão pela barriga. Prendi minha atenção à sua sombra. Ela tirou a calcinha, afagou a diminuta pelugem pubiana ... Bheatriz ligou a ducha e entregou-se extenuada ao escorrer da água, aos poucos, relaxando, suas mãos escorria entre as pernas, tocando-se, afagando-se delicadamente, ritmadamente, freneticamente, com cada vez mais intensidade... Um caleidoscópio de sensações a assumia.  Não sentia meus olhos, como línguas, pousados à sombra de seu corpo...
        Acordamos, no meio da noite, sobressaltados. A porta pendida ao chão, homens fortemente armados nos rendiam ainda sonolentos... Meu nome de família rendeu-me castigos corporais, que resultou na perda da audição, e um exílio de trinta anos. Bheatriz, de menos nome, foi encontrada nua, cravejada oito vezes, numa vala. Noticiou-se suicídio...
        A multidão avançou rumo ao palácio. Em seu festivo apelo, o fugaz sorriso estrangeiro seguiu o cortejo (desejei-lhe melhor sorte)... O fantasma de Bheatriz sentou-se a meu lado. Tomamos cerveja, rememoramos nossas ilusões: “O velho Hegel falava dos grandes personagens, meu caro, dos grandes personagens...” Disse-me, beliscando salame e queijo. “Entre nós, a história poderia ser contada como arremedo, mimetismo, não do trágico, que já seria um ganho, mas da farsa...” Procuramos um quarto de hotel...


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