“Hegel observa em uma de
suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história
do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a
primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” (Karl Marx, Os dezoito
Brumário de Luis Bonaparte)
Uma miragem nostálgica, uma remota
lembrança aflorou-me num sorriso estrangeiro passando com a turba rumo ao
palácio. Iam, punhos cerrados, palavras de ordem, desfilando cartazes e
proferindo discursos. O brilho de seus olhos, a expressão indignada, mas
confiante no rosto, as cores de sua causa vestindo sua juventude, o misto de
marcha e dança de seus passos avançando contra o governo, tudo, num fugaz
instante, imprimiu-me a impressão do passado visitando-me em uma tarde sem
expectativa de futuro...
Foi num remoto maio de 1968,
marchávamos confiantes de que escrevíamos os rumos do mundo, que, dali em
diante, inaugurávamos a humanidade e haveria, de então, apenas a liberdade a
nos guiar. Mais adiante, a guarda nacional, os cães do atraso, da intolerância,
os truculentos aguardava-nos. Confiávamos transpô-los: o desejo nos guiava
febris. Houve o confronto: baionetas, tanques, granadas, gás... contra corpos
armados apenas de cartazes, desejos e ilusões. Nos dispersamos, recuamos,
saímos em fuga...
Tirei os óculos, esfreguei os olhos, Bheatriz
vinha em minha direção desorientada, abracei-a, e escapamos juntos. Encontramos
um quarto de hotel, para restaurar-nos.
Sozinha, no banheiro, fechada por uma cortina
que lhe servia de porta, Bheatriz observava seu corpo, buscava as marcas do
confronto, tocava os pontos de dores. Olhou-se em um pequeno espelho. A maquilagem desmanchada em lágrimas dava-lhe
um aspecto selvagem. Tinha a beleza de uma ingênua adolescência... Chegou mais
perto do espelho, começou a despir-se. Tirou a calça jeans, a camiseta, o
sutiã. Acariciou lentamente os seios, massageou os mamilos. Deslizou a mão pela
barriga. Prendi minha atenção à sua sombra. Ela tirou a calcinha, afagou a diminuta
pelugem pubiana ... Bheatriz ligou a ducha e entregou-se extenuada ao escorrer
da água, aos poucos, relaxando, suas mãos escorria entre as pernas, tocando-se,
afagando-se delicadamente, ritmadamente, freneticamente, com cada vez mais
intensidade... Um caleidoscópio de sensações a assumia. Não sentia meus olhos, como línguas, pousados
à sombra de seu corpo...
Acordamos, no meio da noite,
sobressaltados. A porta pendida ao chão, homens fortemente armados nos rendiam
ainda sonolentos... Meu nome de família rendeu-me castigos corporais, que
resultou na perda da audição, e um exílio de trinta anos. Bheatriz, de menos
nome, foi encontrada nua, cravejada oito vezes, numa vala. Noticiou-se
suicídio...
A multidão avançou rumo ao palácio. Em
seu festivo apelo, o fugaz sorriso estrangeiro seguiu o cortejo (desejei-lhe
melhor sorte)... O fantasma de Bheatriz sentou-se a meu lado. Tomamos cerveja,
rememoramos nossas ilusões: “O velho Hegel falava dos grandes personagens, meu
caro, dos grandes personagens...” Disse-me, beliscando salame e queijo. “Entre
nós, a história poderia ser contada como arremedo, mimetismo, não do trágico,
que já seria um ganho, mas da farsa...” Procuramos um quarto de hotel...
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