Eu sei que por trás do debate a cerca da “Escola sem partido” existe o combate a um partido específico, o que caracteriza o idiotismo dos propugnadores e defensores de tal projeto. Não obstante, peço licença para expor meu posicionamento.
Eu nunca nutri simpatia à escola. Pelo contrário, sempre nutri demasiado desconforto em suas dependências. Como aluno, a recordação mais remota que tenho de meus tempos escolares é da régua de alfaiate de Dona Marta e dos gritos assustadores e humilhantes de Dona Zineide. No colégio e no ginásio, não se podia falar, a não ser quando solicitado pelo professor; não se podia sair do lugar; era preciso copiar, copiar, copiar infindáveis lousas de lição e depois decorar tudo para temíveis exames. Depois, já como professor, via-me sempre como um reprodutor de conceitos pouco dominados, tentando inculcar nos alunos conhecimento totalmente desconectados de seus interesses, suscitando e respondendo, ano a ano, as mesmas questões de surrados livros didáticos.
Reconheço, como Tolstoi, a necessidade da educação e que ela “é sentida por todos os homens. As pessoas adoram aprender, amam a educação e a buscam, da mesma forma que amam e buscam o ar que respiram”. Mas, faço minhas as observações do mestre russo: “A escola não apenas consegue inculcar nos alunos a aversão para com a educação, ela também os induz a praticar a hipocrisia e a trapaça... Ela fica eternamente respondendo às mesmas questões – questões que não são levantadas pela mente das crianças.”
Também José Angelo Gaiarsa procura demonstrar a ambivalência entre o valor que damos à educação e sua execução escolar. Para ele “Educar tem pouco a ver com discurso, sermão e palavras” e, numa escola ideal, “metade do tempo seria dedicado ao movimento, à criação, à fantasia, ao brinquedo, ao teatro, à música, à cantoria etc. Trinta por cento, recreio apenas, e a fundamentação desses 30% é surpreendente – pela omissão! Jamais a escola cuida explicitamente da socialização. Está suposto que as crianças acabarão convivendo, mas ninguém discute a qualidade desse convívio, que é péssima...”
Entre o modelo escolar criticado por Tolstoi e o modelo ensejado por Gaiarsa, o mundo mudou, convulsionou-se, e estamos num vácuo de rumos. Esperamos da escola o que não lhe compete.
Segundo Umberto Galimberti, “Platão pensava que a política fosse uma basileké tekne (rainha das artes ou técnicas). Segundo ele, enquanto as outras técnicas sabem fazer as coisas, a política sabe o porque e se se deve ou não fazer as coisas. A política, então, era o lugar da decisão. Hoje assistimos que a política não é mais o lugar da decisão. Hoje, vivemos a subordinação da política à economia. Para tomar decisão a politica mira a economia. A direção que a politica assume se decide lá onde se faz calculos econômicos. A democracia acabou, porque a politica não mais decide, deve apenas executar as determinações econômicas...”
Galimberti nota, ainda, que “Kant nutria a esperança de que o homem fosse tratado como um fim, mas, num mundo em que tudo é mercadoria e o valor se mede pela utilidade, o homem é, como tudo o mais, meio, é consumível e descartável quanto qualquer outra mercadoria.”
Nesta perspectiva, a sociedade atual, de consumidores consumíveis, a escola esta direcionada aos interesses econômicos, a partir de um ponto de vista estritamente utilitarista. E, não obstante nosso discurso por um outro modelo de escola, que respeite a individualidade, a diversidade, os sentimentos, os saberes de nossos alunos-filhos, o ritmo próprio de seu desenvolvimento autônomo, procuramos impor-lhes valores e um modelo de sociedade que se esgarça e de suas fissuras a intolerância, o ódio, o autoritarismo vão se impondo e instalando incertezas e medo generalizado. E “ordem e disciplina triunfam quando a sociedade tem medo” (Umberto Galimberti).
Contra nossos temores estamos a exigir uma escola centrada apenas no aprendizado mecânico, formal, reacionário. A escola, espaço do acesso ao conhecimento, se torna o espaço do controle social pela restrição e retaliação.
Contra minhas resistências afetivas à escola, eu espero que ela assuma uma perspectiva menos arbitrária e formalista. Espero que, centrada no conhecimento, na sua transmissão e reelaboração, ela desperte para a autonomia do pensamento. Uma sociedade incapaz de incentivar o pensamento autônomo é uma sociedade fadada a ingerência externa ou ao desmando de governos ilegítimos, que governam ou com a força das armas ou com a compra das lideranças políticas e de negociatas econômicas.
Um partido é sempre um espaço de interesses políticos específicos visando a administração do poder. Na escola não cabem interesses específicos. Enquanto espaço de formação e não de poder, ela precisa considerar a diversidade e a pluralidade como eixos da sociabilidade. Num partido é possível impor um rumo programático. Da escola se espera pessoas capazes de ponderar concepções políticas e ideológicas de todos os matizes e preparar seu alunado para assumirem a responsabilidade por escolhas que não dizem respeito apenas a si, mas à coletividade.
Por isso, eu sou favorável a uma escola sem partido, que, necessariamente vinculada às determinações políticas, não sobre ingerência política, em que o conhecimento não seja controlado por setores específicos da sociedade, mas mediado pela inter-relação e pela reflexão-ação, reelaborando os saberes propositivamente.
Democrática e universal, eu espero que a escola seja celeiro de embates que conduza o sujeito de uma sujeição inicial ao conhecimento ao “papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo...”, em que sua ação sócio-política prima pela liberdade, pela justiça, pela solidariedade. Eu penso que o espaço escolar não é um espaço de doutrinação. Também não é espaço de formação de opinião. É um espaço de autonomização: capacidade de pensar por si mesmo sem encerrar-se, ensimesmar-se, mas abrir-se e pôr-se fronte a fronte, olho no olho, e produzir novos saberes com o outro.
É neste sentido que defendo uma escola sem partido, mas profundamente política. Porque somos, não apenas, profundamente políticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GAIARSA, José Angelo. Sobre uma Escola para o Novo Homem. São Paulo:Gente. 1995
TOLSTOI, Leo. "Sobre Educação Popular", em Artigos Pedagógicos, 1862, traduzido do Russo para o Inglês por Leo Wiener (Dana Estes & Co., Boston, 1904), passagens retiradas das pp. 7-18 (ênfases acrescentadas). Citado apud Daniel Greenberg, Announcing a New School: A Personal Account of the Beginnings of the Sudbury Valley School (The Sudbury Valley School Press, Framingham, MA, 1973, p. 175)