Uma promessa bíblica diz que seremos como a areia na praia e as estrelas no céu. Bem, pisados como a areia nós já somos, quando é que começa a parte das estrelas? (Franz Kafka)
A
epigrafe que abre este texto recolho de Palestra
de introdução ao iídiche, de Franz Kafka, na tradução de Tomaz Amorim
Izabel, que vai se firmando um dos principais interpretes de Kafka no Brasil.
O
texto de Kafka foi lido por ele em 18 de fevereiro de 1932, preparando um
público de judeus de Praga à apresentação de três poemas em iídiche por seu
amigo Isaac Löwy. Explica Amorim Izabel que “a introdução deveria servir para
quebrar o gelo com um público de judeus assimilados, que tinha uma postura um
pouco desconfiada (ou "arrogante", como diz Kafka na palestra) com o
dialeto iídiche considerado ainda rural.”
Para
os poucos acostumados com Kafka, seus escritos são geralmente inquietantes,
colocando em evidência os paradoxos da condição humana. Utilizando-se, com maestria, de imagens de animais
e objetos antropomorfizados, Kafka promove profundas críticas aos processos de
banalização da existência humana que reduzem o ser humano à burocrática conformidade
à luta pela sobrevivência. Assim,
perspicaz observador das situações que embrutecem as pessoas em um mundo que
naturaliza as práticas desumanas, os textos kafkiano conseguem provocar
desconforto ao desvelar aspectos de nossa gênese social e de nossa
subjetividade e que podem nos conduzir ao aniquilamento. Para Günther Anders (Kafka: Pró e Contra), em Kafka, o
inquietante não é o espantoso das situações de absurdidade, mas as pessoas não
se espantarem, de as pessoas “normalizarem”, para usar um termo do qual temos
abusado, situações e fatos que deveriam nos perturbar. Em um outro trabalho (Odradek, quimera incapturável), explica Amorim
Izabel que: “acostumado a encontrar nas histórias uma solução ou uma pista para
o estranho, em Kafka [o leitor] é forçado a aceitar o estranho ou aplicar por
contra própria, sem apoio do texto, uma interpretação simbólica ou alegórica.
Em Palestra de introdução ao iídiche, menos
emblemático, Kafka procura desarmar o público da imagem bastante pejorativa que
marcava o iídiche entre os judeus assimilados. Para estes o iídiche não seria
verdadeiramente uma língua, mas um conjunto de “jargões” sem regras, característico
do gueto. Para Kafka, no entanto, o contato com iídiche, a partir da amizade
com Isaac Löwy e sua trupe itinerante de teatro, representará a descoberta de
uma cultura, de uma literatura, de ideal que exprime o tipo de judaísmo que lhe
aprazia.
Segundo
Tomaz Amorin Izabel, "a revista judaica "Selbstwehr" descreveu a
introdução de Kafka como "elegante e charmosa", conduzindo os
presentes a uma audição mais generosa e com menos medo do "jargão".”
Sob
a pergunta sob quando começa as estrelas, a resposta não vamos encontrar em
Kafka. Eu arrisco a dizer que elas não existem. É o peso das botas que nos
pisam que nos fazem acreditar que possa existir um céu de estrelas. Existissem,
o provável seria desabem sob nós.
Franz
Kafka. Palestra de introdução ao iídiche. tradução Tomaz Amorim
Izabel. - 1ed. São Joao de Meriti, Rj: Desalinho, 2021.
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