terça-feira, setembro 28, 2021

NA REPUBLIQUETA DE BANANAS

 

Uma criança é violentada pelo pai. Para que fique em silêncio, ela é ameaçada: “Você não quer o mal da mamãe, quer?” Uma professora percebe mudança no comportamento da criança, procura saber o que está acontecendo e com habilidade consegue ouvir da criança da violência e da ameaça paterna. A professora leva o caso às instâncias de investigação. Colhido elementos probatórios do crime paterno o pai foi indiciado. Diante do volume dos elementos que incriminavam o pai, seus defensores procuraram responsabilizar a criança e desqualificar a professora. Para eles, a existência do crime era inegável, mas, da forma como fora denunciado, o crime deixava de existir e não se deveria imputar o réu: o seu gesto de amor e proteção teria sido mal interpretado pela criança – pois, de entre dez filhas, apenas ela acusa o pai –, pela professora, pelas instâncias investigativas. “Se criara uma narrativa”, defendia a defesa do pai abusador. Esta é a tese da base governista, principalmente do senador Marcos Rogério, na CPI da COVID-19. O desenho que fazemos precisa ser trágico para que se perceba a gravidade do trato que se deu, por parte do governo e da Prevent Senior, ao combate a pandemia nesta republiqueta de bananas. É de nausear-nos o esforço que os aliados do genocida empregam para desresponsabilizá-lo do caos econômico-político em que estamos mergulhados, e, sobretudo, das quase 600mil mortes por COVID-19 entre nós.


MEU PAI


 

domingo, setembro 26, 2021

BARBA

 

“Quando o velho narrador e a criança se encontram, os conselhos são absorvidos pela história.” Ecléa Bosi

No comercio de pai havia gente de toda espécie. Era um mosaico da diversidade humana. Por isso, era um espaço de conflitos, beirando, às vezes, à violência. Por tudo se debatia: pelo time de coração, pela inflação, pelos casos de família, pelas alegrias e tristezas que traziam no coração. Entre um copo ou outro de cachaça, as pessoas desfilavam seu estar no mundo “do jeito que pode”, na expressão do Barba. Nunca soube o nome do Barba, sabia ser italiano e ter vindo criança, com a mãe e dois irmãos, para o Brasil. O pai, morrera na Grande Guerra. Um dos irmãos não chegou a desembarcar vivo. A mãe também não viveu muito. Aos quinze anos, Barba e o irmão se separaram, o irmão foi “se aventurar nos Pampas”, nunca mais teve noticia. Figura solitária, barba em tudo trabalhou e conhecia “cada beco da cidade” e “cada traço da alma humana.” Das lembranças do comercio de pai e das figuras que o frequentavam, Barba é a mais vivaz. Ele gostava de contar histórias-ensinamentos. É, existem histórias que nos ajudam a assumir posições na vida. E Barba, de tais histórias, era mestre. “Antigamente”, começava ele, “uma donzela procurou o chefe de polícia, fora prestar queixas do namorado, que avançou a mão, sem autorização, um palmo acima do joelho. E o chefe de polícia perguntou-lhe: “E, a mão, avançou mais que isso?” “Não, senhor delegado! Não avançou, não!”, respondeu a jovem donzela. “E onde foi que ocorreu o fato?”, inquiriu o chefe. “Foi atrás da casa, debaixo da mangueira”. E a que “horas se deu isso?” “Foi por volta da Ave-Maria”. “Menina, volte para casa, antes que eu a prenda! Se estivesses rezando, o teu namorado estaria com as mãos no bolso. Por tua falta de zelo, quase levas a perder um bom moço.” “É isto que eu digo, é isto que eu digo”, um afoito foi dizendo. Barba o olhou com um certo riso. “Antigamente, meu caro, antigamente. Nós não somos homens do ontem, somos homens do presente. Antigamente se arrancava dente sem anestesia. Hoje nem dente mais se arranca. Para tudo tem tratamento. O hoje, meu caro, nos diz que em uma mulher não se toca, se não for de seu agrado, nem no prostíbulo. Como homens do hoje, menos brutos e ignorantes, deveríamos ser. E se atitudes de antigamente nos condenam e nos mostram quão pequenos fomos, não as devemos sustentar e defender.” O afoito engoliu o seu rabo de galo, com os rabos entre as pernas. Já nos idos tempos em que meu pai tinha comercio, o Barba me ensinava que: Não, é não!, e se avanços um milímetro além do consentido, além de cafajestagem, é crime.
2 compartilhamentos
Curtir
Comentar
Compartilhar

sábado, setembro 25, 2021

EURÍPEDES DOS SANTOS E RODNER LÚCIO

 


Certa feita, conversávamos eu, Eurípedes dos Santos e Rodner Lúcio. Era conversa, a meu juízo “de homem”, pois falávamos de futebol, política, mulheres. Já ai, Rodner me advertiu: “não há conversa que seja de homem e conversa que seja de mulher!” Mas aquela era, bem dizer, uma novidade em nossos encontros, porque Eurípides e Rodner eram, geralmente, monotemáticos. Um falava apenas de educação, o outro de literatura. Mas naquela ocasião única falávamos de assuntos variados e distantes de nossos campos de ação. Faltava à mesa, e talvez por isso a “conversa de homem”, Christine Ramos, moderadora dos embates entre Eurípedes e Rodner. Eu pensei que podia dar o meu parecer a respeito da matéria em curso, e soltei: “ela é bonita e inteligente!” “A você, meu caro, disse Eurípides, além destes atributos, carece compreensão do ser feminino.” Ante minha expressão de incompreensão, ele explicou: “o “e” em tua fala é ofensivo à dignidade da mulher, dá a entender que uma coisa exclui outra. Não é a condição estética da mulher que a torna inteligente. A mulher é inteligente por ser mulher. É do ser da mulher ser inteligente.” A conversa continuou acerca da tabela da Copa que se aproximava e das possibilidades do tetra, que viríamos conquistar. Pelas tantas soltei: “Ô, lá em casa!”, para a menina que servia uma mesa ao lado. Novamente Eurípedes me arguiu: “Meu irmão, o princípio que tens para Christine, mesmo alcoolizado, tenhas para com todas as mulheres. Queres ser cafajeste, não o sejas em minha presença!” Rodner também manifestou-se: “Veja, a Christine não está aqui, então nos permitimos falar de mulheres, mas falamos como se ela estivesse aqui. O que não nos permitimos falar ante Christine, não nos permitimos falar em sua ausência, não só dela, mas de qualquer mulher. Nosso respeito não é pela Christine, é pelas mulheres. O não usar determinados termos, ou expressões, ante Christine é uma atitude moral, é de nossa educação. Não usá-los na ausência de Christine é ético, porque se estende a todas as mulheres. Algo que possa ofender Christine, ofende todas as mulheres. Não ofendemos Christine por ela ser nossa amiga, não a ofendemos por ela ser mulher. O respeito que temos com Christine é o respeito que temos por todas as mulheres. Este princípio vale no trato com qualquer pessoa, homem ou mulher: se algo me ofende, ofende a todos.” Mesmo alcoolizados, as conversas de Eurípedes e Rodner sempre acabam em lições. Não, não sei porque ando com eles, eles não são deste mundo.

sexta-feira, setembro 24, 2021

TAÇA DE RUBRO INEBRIANTE

 

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada (Fernando Pessoa)

 

Para Camila Viana de Souza

 

As coisas se deram assim: era um sábado primaveril, eu era na praça de alimentação do Shopping e degusta uma massa ao molho pesto e saboreava um Sauvignon Blanc, de safra chilena. Eu era perdido em divagações sobre o filme que acabara de assistir: Una giornata particolare, de Ettore Scola, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Por algum motivo, um burburinho de discussão atraiu-me. Era coisa de ciúmes, o rapaz, parece-me, havia espichado o olhar para uma outra que não a sua companheira. “Me permite?”, chegou-me uma voz educada, tirando-me o interesse pela confusão que já se ia formando. Voltei-me para a voz que me invocava. Ela queria saber se podia ocupar o assento de frente para mim. Ao voltar-me para a voz, dei-me com um oásis, para não dizer o paraíso. Um ser divino, num vestido vermelho bordô, acompanhando o tom dos lábios que me sorriam, e esperavam meu acanhado assentimento. Durante uma eternidade imperou um silêncio conturbado que coube a ela quebrar: “saúde!”, disse-me erguendo com uma sutil inclinação em minha direção o seu Bordeaux. Repeti o gesto com o meu Sauvignon Blanc. Outro silêncio imperou, e, novamente, partiu de seus lábios: “o que você brindaria hoje?”, a iniciativa de quebrar o gelo. A mim coube a expressão de estranhamento e um “O que?”, apalermado.   “Quando se bebe vinho acompanhado, se brinda: eu brindo muitas coisas e você?” “A boa companhia!”, saiu-me acanhado, receoso de que eu falava com uma miragem. Ela sorriu-me seu sorriso bordo, seus olhos grandes, amendoados também sorriam-me. Aos poucos fomos entabulando uma conversa entorno da bebida que nos aproximava. Eu mais fiquei sabendo, que pude informar, dada minha ignorância. Assim, dela fiquei sabendo que o ritual de brindar nasceu na Grécia. “Para garantir aos convivas que o vinho não estava envenenado, os gregos costumavam compartilhar a mesma taça. O anfitrião tomava do vinho e depois erguia a taça ao convidado. Isto se dava, principalmente, entre os reis. Com o tempo blindar se tornou um símbolo de confiança e amizade.” Outra coisa que fiquei sabendo e que “Simpósio em grego significa beber juntos. E entre os gregos um estilo de vida, a forma máxima de prazer reunindo vinho, mulher e música. Aprendi, por fim, das propriedades afrodisíacas do vinho. A mim coube, mergulhando em sua taça de rubro inebriante,  dar-lhe versos de Florbela Espanca:

“[...]

Embriagou-me o teu beijo como um vinho

Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...

E a minha cabeleira desatada

Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

[...]

Tens sido vida fora o meu desejo

E agora, que te falo, que te vejo,

Não sei se te encontrei... se te perdi...”

 

quinta-feira, setembro 23, 2021

CRISTO MORREU POR NOSSOS PECADOS

 

Há uma diferença entre dar e perder: Jesus veio dar a vida e "vida em abundância" ou "Plena" a depender da versão que se usa. Jesus foi morto, foi assassinado "por nossos pecados". Este por não é em favor, Jesus não morreu em favor de nossos pecados, com sua morte não deixamos de ter ou ser pecadores. Este "por nossos pecados" é causa, consequência. É em consequência de nossos pecados, entre eles, o de prender, julgar à revelia, torturar, humilhar, e matar de forma vil um inocente (veja quantos pecados), que Jesus foi assassinado e perdeu a vida. Em sua morte, Jesus não deu a vida, ele a perdeu. "Jesus deu a vida para nos salvar", a vida que nos foi dada e que nos salva não está na morte de Jesus, está em seus ensinamentos. Foi ensinando-nos como viver que Jesus nos deu vida. É vivendo seu ensinamento que nossa vida ganha sentido, ganha plenitude. O assassinato de Jesus é a rejeição à vida que ele nos deu - a única vida capaz de nos salvar é a vida em justiça, em verdade e em amor. Nós abrimos mão dos ensinamentos de Cristo - onde brota a vida que ele nos dá - para viver de nossos pecados. Por nossos pecados Jesus morreu e morreria hoje novamente. Por nossos pecados nós distorcemos os ensinamentos de Cristo - que nos dá vida: Vida em abundância - e tornamos a vida um peso e sacrificamos vidas e mais vidas. São os ensinamentos de Cristo que nos dão vida, não sua morte. CDF

terça-feira, setembro 21, 2021

PALESTRA DE INTRODUÇÃO AO IÍDICHE

 

Uma promessa bíblica diz que seremos como a areia na praia e as estrelas no céu. Bem, pisados como a areia nós já somos, quando é que começa a parte das estrelas?  (Franz Kafka)

 

A epigrafe que abre este texto recolho de Palestra de introdução ao iídiche, de Franz Kafka, na tradução de Tomaz Amorim Izabel, que vai se firmando um dos principais interpretes de Kafka no Brasil.

O texto de Kafka foi lido por ele em 18 de fevereiro de 1932, preparando um público de judeus de Praga à apresentação de três poemas em iídiche por seu amigo Isaac Löwy. Explica Amorim Izabel que “a introdução deveria servir para quebrar o gelo com um público de judeus assimilados, que tinha uma postura um pouco desconfiada (ou "arrogante", como diz Kafka na palestra) com o dialeto iídiche considerado ainda rural.”

Para os poucos acostumados com Kafka, seus escritos são geralmente inquietantes, colocando em evidência os paradoxos da condição humana.  Utilizando-se, com maestria, de imagens de animais e objetos antropomorfizados, Kafka promove profundas críticas aos processos de banalização da existência humana que reduzem o ser humano à burocrática conformidade à luta pela sobrevivência.  Assim, perspicaz observador das situações que embrutecem as pessoas em um mundo que naturaliza as práticas desumanas, os textos kafkiano conseguem provocar desconforto ao desvelar aspectos de nossa gênese social e de nossa subjetividade e que podem nos conduzir ao aniquilamento. Para Günther Anders (Kafka: Pró e Contra), em Kafka, o inquietante não é o espantoso das situações de absurdidade, mas as pessoas não se espantarem, de as pessoas “normalizarem”, para usar um termo do qual temos abusado, situações e fatos que deveriam nos perturbar. Em um outro trabalho (Odradek, quimera incapturável), explica Amorim Izabel que: “acostumado a encontrar nas histórias uma solução ou uma pista para o estranho, em Kafka [o leitor] é forçado a aceitar o estranho ou aplicar por contra própria, sem apoio do texto, uma interpretação simbólica ou alegórica.

Em Palestra de introdução ao iídiche, menos emblemático, Kafka procura desarmar o público da imagem bastante pejorativa que marcava o iídiche entre os judeus assimilados. Para estes o iídiche não seria verdadeiramente uma língua, mas um conjunto de “jargões” sem regras, característico do gueto. Para Kafka, no entanto, o contato com iídiche, a partir da amizade com Isaac Löwy e sua trupe itinerante de teatro, representará a descoberta de uma cultura, de uma literatura, de ideal que exprime o tipo de judaísmo que lhe aprazia.

Segundo Tomaz Amorin Izabel, "a revista judaica "Selbstwehr" descreveu a introdução de Kafka como "elegante e charmosa", conduzindo os presentes a uma audição mais generosa e com menos medo do "jargão".”

Sob a pergunta sob quando começa as estrelas, a resposta não vamos encontrar em Kafka. Eu arrisco a dizer que elas não existem. É o peso das botas que nos pisam que nos fazem acreditar que possa existir um céu de estrelas. Existissem, o provável seria desabem sob nós.

 

Franz Kafka. Palestra de introdução ao iídiche. tradução Tomaz Amorim Izabel. - 1ed. São Joao de Meriti, Rj: Desalinho, 2021.

META

 

Em tempos idos perguntaram-me:

“O que pretendes ser?”

“Poeta”, respondi

“Não, é como pretendes ganhar a vida?”

O sujeito voltou a perguntar-me

“Para ganhar a vida eu varro rua, ergo paredes

Carrego pedras

Ser mesmo, eu quero ser poeta!”

Não varro ruas, não ergo paredes, nem carrego pedras

Em atividade de menos valor

Vou ganhando a vida,

Mas não sou poeta.

Não ser, tornou-se minha meta.

segunda-feira, setembro 20, 2021

INSUFICIÊNCIA

 


 

Quando me perguntam: “Como você está?”, respondo: “Vivo!” A resposta mais acertada seria: “Infelizmente, ainda vivo!” À minha resposta as pessoas sorriem desconcertadas, elas percebem, devido o animo que aplico a “vivo”, o “infelizmente” que omito. Estar bem, que é a resposta que as pessoas esperam à pergunta: “como você está?”, neste mundo não é possível.  É preciso frieza, indiferença, insensibilidade, falta de empatia, incredulidade, mesquinhes, para se estar bem, para dizer-se bem. Bem est devem estar os mortos, pois nada sentem, nada percebem.  Sair de casa me é angustiante, a realidade bruta sufoca-me. Não é possível passar sem incômodo por corpos estendidos pelas calçadas, causa-me desconforto os corpos abatidos, os olhares tristes, cansados, desalentados de jovens e idosos entregando-se a trabalhos precários, dói-me a horda de desempregados fazendo do bico empreendimento. É impossível fazer-se surdo às narrativas de dor, lamento, sofrimento de pedintes. Entro no ônibus, tomo meu assento, o ônibus parte. Numa parada de seu trajeto, entra, pela porta dos fundos, uma senhora de 25, 30 anos: a imagem é essa. Ela tem uma criança no colo. Após uma longa saudação e repetidos de desculpa, por “estar atrapalhando a viagem de vocês”, fala de suas mazelas, do marido desempregado, do outro filho sob guarda judicial, da doença que a acomete, da falta do gás, do leite para a criança, que também sofre algo complexo. E apresenta atestados médicos. A criança é, de fato, subnutrida, nota-se também o descuido higiênico. A meu lado, a estupidez humana manifesta-se: “Na hora de parir não precisou de ajuda... Tivesse lavando um tanque de roupa”. Desço do ônibus, o estomago em revolta, continuo meu destino a pé, atravessando a rua sem me dar conta de faixa ou sinal, “ser atropelado não seria nada mal” Chego a escola, entro na sala de aula, já não tenho o que ensinar. Ensinar é suscitar desafios, despertar sonhos, projetar esperanças.  Eu sou apenas desejo de não ser. Abandono os alunos em outras atividades. O desconforto aumenta, me condeno: “não sou professor suficiente!”

MENINA QUE CONTEMPLO NA IMAGEM


 

sexta-feira, setembro 17, 2021

COMPANHEIRO DE VIAGEM

 

Tomo meu assento no ônibus e aguardo a partida. Ao meu lado um entabula uma conversa: “como eu estava dizendo, o Pedro não tem perfil”. Olhei para ele sem entender do que se tratava, fiz cara de incompreensão e estranhamento. “A Maria, da pesquisa, aposto nela... Acho que ela não vai querer. Tem que viajar, ela tem os filhos.” Dei por entender que o sujeito não falava comigo, mas consigo mesmo. “Eu não vou com a cara do namorado da Patrícia, sabe, ele tem um jeito de me olhar que me encabula, parece que me está despindo. Outro dia, me convidou para acompanha-lo no banheiro. Eu sou muito amigo da Patrícia.” Cutucou-me o ombro: “O Afrânio também não vai, ele não quer dar de cara com a Marta e o novo namoradinho dela. Namoradinho mesmo, parece um bebe, deve ser uns vinte anos mais novo. Podia ser filho dela. O Afrânio tá que se perde na bebida.” O ônibus finalmente deu sinais de partir: “Adalberto”, dirigiu-se ao motorista, “por favor, me deixa no ponto do Caruzzo, e pode ir com calma, hoje eu estou bem adiantada.” “Mas como eu estava, dizendo,” retomando a conversa consigo mesmo, “o Pedro não tem perfil... Eu não quero ser cafajeste com a Patrícia, mas aquele namorado dela...” No Caruzzo eu desci,  percebi estar só.   

terça-feira, setembro 14, 2021

CRINGE

 


Perdi-me em teus esverdeados olhos

Nas formas de teus lábios em

Cobre suave

Esboçando um sorriso tímido

Atabalhoei-me em tua titubeante voz

Inquirindo-me:

“Moço, em que direção está a Paraíso?”

“Ante meus olhos”

Cringe, respondi-te.

domingo, setembro 12, 2021

OS 80 ANOS DE VÓ

 

As tias vieram para os 80 anos de vó. Chegaram na sexta-feira, logo depois do almoço. Tia Augusta se instalou com as primas Regina, Maria Célia e Ana Luiza em casa. Tia Ângela se instalou com a prima Semilda e o primo Antônio na casa de tia Almerinda. Os tios, por força de trabalho, chegariam no sábado tardinha. Já, sexta-feira, então, fazíamos festa. Na noitinha, tia Almerinda acendeu fogueira, assou broa, preparou canjica e pipoca. O quintal era que pura algazarra. As mulheres entre risos e gargalhadas, em torno de vó, já a festejavam com relatos do passado. Pai, tio Augusto, Toninho, de tia Almerinda , seu Jarbas, nosso vizinho, jogavam palitinho e comentavam a vida. Nosso alarido correndo pelo quintal e em torno da fogueira era sem igual. A noite de céu estrelado de lua crescente, o clima primaveril ajudavam. Entre tantos rumores de falas e de nossa algazarra, prima Semilda e o primo Luiz, só Deus sabe onde se enfiaram. Foi só quando tia começou a “levantar tenda”, como ela dizia, que se deu falta deles e eles apareceram, sorrisos envergonhado nas fuças. Sábado, cedinho, pai tio Augusto saíram ao matadouro. Foram em busca do leitão que as mulheres preparariam para o almoço de domingo. Também, cedo, as mulheres se colocaram a arrumar a casa, a polir talheres, a macerar temperos, despenar galinhas, preparar os doces. Nós fomos acordando conforme a divina graça. O mais atrasado foi primo Antônio, de tia Semilda, que só se levantou por hora do almoço. Depois do almoço, depois que as tias retomavam as fainas para o almoço de domingo, e pai e tio Augusto, e depois os tios Vicente e Januário, que chegaram, ajeitavam o quintal e montavam a tenda. As primas Regina e Maria Célia com minha irmã Celina e Margarida de ti Almerinda, preparavam enfeites e mexericavam umas das outras festivas.  O primo Antônio e o primo Toninho foram à cidade para as bebidas. As crianças continuavam o corre-corre pelo quintal, de tudo brincando. O sábado acabou com nova fogueira, com moda de viola e causos de tia. O domingo começou com um lauto café: frutas variadas, queijos, salames, broa, pão de queijo, sucos de laranja, caju, acerola. Para o almoço vieram outros tios e tias, outros primas e primos e se estendeu horas.  A cama de vó se cobriu de mimos. Veio o bolo e discursos emocionados de tios e tias que, ressaltando imagens jocosas de infância e revelando características e virtudes de vó, demonstravam carinho e gratidão.  Vó derreteu-se em lágrimas e a todos agradeceu com uma de suas pérolas: “uma mãe não deve chorar na frente dos filhos se não for de orgulho pelo que se tornaram. Agradeço a Deus por ter filhos e filhas que me são motivo de orgulho.”

sábado, setembro 11, 2021

O PARVO AMANUENSE

O homem de papel figurativo, com gosto por mesóclises, no passado recente, escreveu uma carta antes de conspirar contra uma mulher para assumir o seu lugar. E, em seu costumaz oportunismo, escreveu outra carta para manter um inepto genocida que assumiu seu lugar.

quinta-feira, setembro 09, 2021

EM TI A ANGUSTIA NÃO ME TOMA

Da janela do quarto

acompanho intranquilo

a turba que marcha por seus

delírios autoritários

O slogan nauseante

“deus acima de tudo”

soa-me absurdo e

angustiante

 

Teu canto e teu cheiro

preenchem o quarto

volto-me para ti

desabotoando a blusa

serpentando o corpo

baixando a saia

 

Alguma certeza

em mim desperta

e em teu corpo me perco

Com os dedos brinco

entre tuas pernas

E a ponta de língua

singro-te de lábios a

lábios

 

Me afogo em tua quentura úmida

entre gemidos e sussurros de palavras impudicas

Após o gozo nos afagamos ternos e seguros

A marcha dos que não amam passou

a angustia já não me toma.

 

terça-feira, setembro 07, 2021

ANTES DE TE VESTIRES DE VERDE E AMARELO

 

Antes de te vestires de verde e amarelo, olhe ao teu redor, às pessoas de semblantes cansados, aguardando o transporte que as levará, de mãos vazias, de volta a seus lares. Lança teu olhar para o olhar desesperançado dos passantes, indo de fabrica em fabrica, buscando o emprego que não acham. Olha no entorno e perceba o crescer diário dos pedintes, das crianças maltrapilhas, de jovens entregues ao crime, das mulheres oferecendo o próprio corpo. Perceba -lhes as lagrimas. Saia de teu mundo e caminhe pelas ruas, entre nos mercado, veja as tabelas de preço, passe pelos hospitais e sinta o sofrimento, o desamparo de quem não pode despedir-se de quem ama. Não era destino, saiba, foi descaso. É sobre esta dor que ireis participar de um evento macabro? Já não sois, então, inocente, sois cumplice e algoz.

quinta-feira, setembro 02, 2021

ADIAMENTOS

 


 Quando no coração de uma pessoa

vibra o alento  de uma escuta silenciosa

e amiga

qualquer que seja sua inconformidade

com o mundo,

ela insiste.

E mesmo não encontrando

porque acreditar num  amanhã vindouro,

o abraço que a acolhe lhe é ancoradouro.

O brivido, mesmo que fugidio,

de um remoto sorriso

na memória escondido

em quem  o eterno repouso

se atiça,

a decisão da partida suspende

Quem tem um colo onde ancorar

sua angustia

de adiamentos vive,

mesmo descontente...