quinta-feira, março 26, 2020

UM ESCRIBA RAQUÍTICO




“Um dia serei escritor!” Vó: “sem comer?” Eu não entendia. Tia ria. “Escrever, qualquer um escreve”, dizia Dona Conceição, “escritor é quem lê”, completava, entregando-nos nossas redações. Continuo mantendo a expectativa: um dia serei escritor. “Mas já escreves!” redargui a companheira. “Eu leio pouco, sem critério. Escrevo despautérios!” Minha leitura preguiçosa, contorna minha escrita. Ler é dar ouvidos. “E dar ouvidos é captar o sentido, não o som do dito”, dizia-me Christine Ramos. E Christine explicava-me “a necessidade de falar suplanta a necessidade de dar ouvidos. Escutamos as pessoas, sem deixá-las dizer”. “Quem pouco ouve e muito fala, fala besteira de mais”, tia e Christine se entendiam. Leio insanidades, escrevo insanidades. Há quem escreve sem ler. Isso eu não faço. Escrevo insanidades, não bobagens!
Porque sou insensato, escrevo insensatezes. “Quem escreve é escriba, escritor é, antes de tudo leitor!” Dona Conceição era chata, pegava no nosso pé. Nos professores “legais” eu penso pouco. “Quer ser escritor? leia!”, insistia Dona Conceição.  
“Eu serei escritor!” Vó: “então coma!” Mas vó dizia coisas que só ela entendia: “não é comer que faz bem; é o que se come que faz bem.” Porque me alimento de miojo, sou anêmico. “Não é o tanto que come, é o quanto digere”, quem entende vó? “Quem muito come e não digere, ou se entope ou vomita”. Vó não entendia nada de escrita: “digerir é lento, e não se come com pressa” dizia. Eu queria ser escritor, não minto. Mas não há robustez no que escrevo. Alimento-me de banalidades, de palavras ocas. De fastfood me alimento. Não sou escritor, sou escriba. “Quer ser escritor? Leia, Dona Conceição dizia coisas que eu não entendia: “o que importa não é ler, o que se lê é que importa”. Não dei ouvidos a vó: sou raquítico. Não dei ouvidos a Dona Conceição: sou escriba.


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