segunda-feira, março 09, 2020

A EDUCAÇÃO NÃO PODE TUDO.



Para Selma Amorim Maida, Mônica della Matta e Maria Rosilene Alves


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado
Manoel de Barros

A educação em Paulo Freire está vinculada ao que ele define como vocação humana a Ser Mais, que coloca homens e mulheres ante o desafio de, partilhando suas existências, se reconhecerem sujeitos de sua história. A ideia, então, de educação, em Paulo Freire, ancora-se na luta concreta de homens e mulheres por Ser Mais, em que autonomia e libertação seja um horizonte que se conquista caminhando entre e com os oprimidos...
A autonomia é capacidade de decisão assumida responsavelmente, num processo de amadurecimento que “vai se construindo na experiência de varias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas”. E “enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”. E “não ocorre em data marcada” (FREIRE, 2016: 105).
A autonomia não é, pois, determinação, é possibilidade que se concretiza nas experiências e exercícios de tomada de decisões, onde se vence medos e se supera preconceitos. O exercício de tomar decisões amadurece a compreensão crítica do significado de que a liberdade é uma conquista e se dá em comunhão. Só podemos afirmar nossa liberdade em convivência.
Assim, contra a sociedade estruturada segundo o modelo de exclusão, alienação de si e do mundo e fuga à responsabilidade para com o mundo, estabelecendo as bases para a barbárie, a “educação não pode muito”, mas ela pode, ao menos, cogitar certo projeto de sociedade que seja mais que um contrato de trocas de bens e serviços regulados pelo mercado.
Em nossa realidade presente a educação está reduzida um instrumento voltado a apreensão de determinadas técnicas e conhecimentos eficazes e uteis para a produção e o consumo. Assim, os sistemas educacionais empobrecem a prática educativa preocupando-se apenas com a eficiência dos métodos de ensino para a produção de habilidades e competências de interesse das estruturas de produção e de consumo.
O contraponto é a perspectiva formativa, cujos processos, procedimentos, conteúdos instigue a autonomia, a emancipação a liberdade, a convivência social fundada na justiça, no respeito à diversidade, na redução das desigualdades e na preocupação com o mundo como lugar de nossa existência e de amadurecimento de nossa humanidade.
Educar é “não esperar que a sociedade se transforme. Se esperarmos, ela não se transforma, temos de fazer, e é nos metendo dentro do processo, na própria intimidade do processo em movimento, que descobrimos os caminhos e vamos desmontando coisas que se opõem à mudança” (FREIRE, 2013: 175-176). Sem nossa contribuição, não podemos esperar outra sociedade a não ser a que está aí. E nossa contribuição é favorecer que os atores (alunos-professores) no processo educativo tornem-se sujeitos de sua história, lutando consciente e responsavelmente para mudar o que precisa ser mudado.
A educação para o humano, enraizado na autonomia e na liberdade, exige, então, o exercício da razão, do pensamento, do conhecimento. Exige coletividade fundada na partilha, na solidariedade, na convivência democrática; é comprometida com os despossuídos, os excluídos, os expropriados, aqueles que, para o “sistema”, não contam.
A educação decorre, diretamente, de nossa capacidade para pensar o futuro, de que podemos intervir nos acontecimentos que criam o amanhã. Ao mesmo tempo, a função primeira da educação é não desdenhar ou esquecer os acontecimentos passados. O esquecimento, a incúria para com a história cria condições para que os piores erros da humanidade reemerjam em seus aspectos mais grotescos. Para o futuro que vislumbramos, mediado pela educação, não podemos dispensar a memória. Pensar a educação é pensar a condição humana no mundo concreto de suas relações, no seu acontecer histórico.
A educação está umbilicalmente ligada à concepção de humano e à relação dos homens e mulheres em suas praticas sociais, políticas, culturais que os humanizam, orientam e fundamentam o pensar e o fazer educativo.
Assim, se todo o pensamento freireano, sustenta-se na sua concepção do ser humano como vocacionado a Ser Mais, é a consciência de inacabamento, de ser inconcluso, que ilumina tal vocação. E desta perspectiva, a educação, em Paulo Freire, não se restringe aos educando em situação de escolarização, ela estende-se a todos os homens e mulheres em qualquer estágio de suas existências, em qualquer ambiente em que atuem. E transitando do ser inconcluso ao vocacionado a Ser Mais, para Paulo Freire, não há educação que não seja ética, pois: “não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão” (FREIRE: 2016: 34). De tal modo: “Jamais pude pensar a prática educativa (...) intocada pela questão dos valores, portanto, da ética..." (FREIRE, 2000: 40).
A ética exige uma posição, uma tomada de decisão, uma escolha radical de que lado, como educadores, estamos: da formação integral ou do adestramento de habilidades e competências, da inclusão com todos os riscos e desafios que comporta ou da seleção meritocrática dos que melhor respondem às exigências da sociedade do consumo pelo consumo, da convivência com o diferente ou de sua negação, da diminuição das desigualdades ou da defesa da opulência criminosa, condenando os despossuídos por sua expropriação...
A educação não pode tudo, mas ela pode desafiar os despossuídos, os pertencidos de abandono a descobrirem que sua presença no mundo não é marcada por um determinismo cego e mecânico, instigando-os a serem sujeitos de sua história. Se a educação não pode tudo, ela pode ensinar que “a [liberdade] não pode ser doada, presenteada em uma festa de aniversário. A [liberdade] é algo que nós criamos, fazemos, em comunhão.” (FREIRE, 2013: 251). Ela “amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do Estado.” Talvez a educação não mude o mundo, mas ela pode mudar nosso modo de o ver e de nos ver nele, com ele e com os outros que o partilham conosco. Este olhar não se dá do dia para noite, ou recebendo em mãos o canudo de formatura. Ele vai amadurecendo dia-a-dia, vai se constituindo na experiência de varias, inúmeras decisões que vamos tomando, na luta em favor da partilha, da solidariedade, da inclusividade, da liberdade, da responsabilidade da equidade e da justiça.
Toda a concepção freireana de educação é por uma ética da vida, da convivência inclusiva, solidaria, partilhante. Nesta perspectiva encerro afirmando minha posição valendo-me de um poeta, Manoel de Barros: “Antes que das coisas celestiais./ Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de janeiro: Paz e Terra. 2016
____________. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2013
____________. Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: paz e terr. 2000 (edição em PDF)
____________. Política e Educação. São Paulo: Cortez.1995


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