segunda-feira, março 16, 2020

PRA QUEM NÃO SABE PARA ONDE VAI, QUALQUER CAMINHO SERVE



Alice ainda é e sempre será a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos. – Nicolau Sevcenko[1]

Apenas Lewis Carroll nos mostrou o mundo de ponta-cabeça como uma criança o vê, e nos fez dar risada, como uma criança dá risada, irresponsavelmente. Nos bosques do puro nonsense…” Virginia Wolff[2]


Alice[3], uma garotinha de aproximados dez anos, está no campo com a irmã, e sente-se entediada. Começa a adormecer e, subitamente, vislumbra um coelho branco, com olhos cor-de-rosa, passar correndo por ela. Chama a atenção de Alice o coelho retirar do bolso do colete um relógio. Um coelho de colete e com relógio era algo insólito. E "ardendo de curiosidade, Alice correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma toca de coelho embaixo da cerca...” Impensadamente ela entra na toca atrás do coelho e aprofunda-se em um buraco profundo, dando-se em um mundo fantástico, com personagens inverossímeis e paradoxais.
Publicado pela primeira vez em 1865, Alice no País das Maravilhas, do escritor Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, é um clássico da literatura nonsense e escrita para uma criança, Alice Pleasance Liddell, e sua atmosfera de fantasia o caracteriza como um livro infantil. No entanto, para Cecília Meireles[4], Alice no País das Maravilhas se diferencia de outras histórias escritas para crianças. Para Meirelles, a singularidade de Alice é o fato de a narrativa ter sido oral, antes de escrita, e ter contado com a colaboração de Alice Liddel e suas duas irmãs.
 “Cecília Meireles escreve que as aventuras de Alice são a descoberta do maravilhoso nas coisas cotidianas e nos seres humanos. É a busca de uma visão nova da vida, do segredo das leis que regem os homens, do poder oculto das coisas e das relações entre vários fenômenos"[5].
Para Virginia Wolff[6], comentando Alice no País das Maravilhas e sua sequência, Alice através do Espelho, as obras de Carroll não são livros para crianças, mas para nos tornarmos criança. Segundo Wolff, Lewis Carroll, “no intuito de nos fazer criança de novo, primeiro nos faz dormir. "Caindo, caindo, caímos naquele mundo aterrorizante, loucamente inconsequente, e no entanto perfeitamente lógico, onde o tempo corre, depois para; onde o espaço estica, depois se contrai. É o mundo do sono; é também o mundo dos sonhos"... É por esse motivo que as duas Alices não são livros para crianças; mas são os únicos livros em que nós nos tornamos crianças”.
Segundo o professor Mario Sergio Cortella[7], Alice no País da Maravilha é um livro de filosofia de ponta a ponta. Para ilustra o que nos diz Cortella basta atentar que no País das Maravilhas Alice transforma-se constantemente, crescendo e diminuindo de tamanho a partir de ingestão de bebidas, doces ou pedaços de cogumelos e Alice não sabe o que irá acontecer de um minuto para outro. Assim em seu encontro com uma lagarta que a questiona: "Quem é você?". Alice responde: “Eu mal sei, Sir, neste exato momento… Pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então”.
As transformações de Alice lembra muito Heráclito, que viveu por volta de 540 a.C. Heráclito dizia que “tudo flui”, tudo está em movimento, tudo muda constantemente em constante vir-a-ser. Dele ficou célebre a seguinte passagem: “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Mas mudanças proporcionam insegurança: “Eu sou uma menininha, respondeu Alice bastante insegura, lembrando-se do número de mudanças que sofrera naquele dia”. E “como todas essas mudanças desorientam. Não sei ao certo o que vou ser de um minuto para o outro”. Assim, “Eu mal sei”. Do discurso de Alice com a lagarta, "Cecília Meirelles faz um paralelo com a frase da personagem Ofélia em Hamlet, de Shakespeare: "senhor, sabemos o que somos, mas não sabemos o que podemos ser"”. [8] Não obstante as mudanças e as incertezas: “todos os seres humanos compartilham a capacidade de se conhecer a si mesmo”, diria Heráclito.
No capítulo IX, intitulado “A História da Tartaruga Falsa”, Alice caminha ao lado da Duquesa e faz de si para si conjecturas culinárias. Estas conjecturas são interrompidas pela Duquesa: "Você está pensando em alguma coisa, minha querida, e isso faz você esquecer de falar. Eu não posso lhe dizer agora qual é a moral disso mas vou lembrar num instante." À intervenção da Duquesa interrompendo-a em suas conjecturas, Alice aventura-se a observar: “Talvez não haja nenhuma”. Por sua vez, a Duquesa retruca: "Ora, ora, criança! Tudo tem uma moral, se você encontrá-la".
Moral aqui pode ser entendido como uma conclusão sintética, ou ensinamento que retiramos de um fato, um acontecimento, experiência ou narrativa. Assim, de tudo podemos tirar uma moral, um aprendizado, uma lição de vida. Ao mesmo tempo, na moral concentra-se o conjunto de valores que orientam os hábitos e as normas da convivência humana. Neste sentido, dizia Kant: produzir a moralidade é tarefa do homem, cultivando-se, tornando-se melhor, desenvolvendo suas disposições para o bem. Para Kant o que nos humaniza e nos dá o status de pessoa é a capacidade de realizar ações morais resultantes de um imperativo categórico: "age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal"[9]
A certa altura, a Duquesa recomenda para Alice: "Seja o que você parece ser". Tal recomendação dá-nos a pensar que o que se vê é mais importante do que se é e o que importa é a aparência. Há aqui um eco do filósofo italiano Nicolau Maquiavel, que ensina: “os homens costumam julgar mais pelos olhos do que pelas mãos, uma vez que todos podem enxergar, mas poucos sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, poucos o que realmente és”[10]. Numa perspectiva política, caso da filosofia de Maquiavel, a aparência é também, para Hannah Arendt[11], constituinte da política. E em termos político, Arendt define a aparência: “Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade”, de modo que “mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos do espírito, os deleites dos sentidos – levam uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo que assumam um aspecto adequado à aparição pública”.
O professor Mario Sergio Cortella[12] aborda o encontro de Alice com o Gato de Cheshire numa perspectiva ética. Alice encontrando-se perdida e dirigindo-se ao gato, pergunta: "poderia me dizer, por favor. que caminho devo tomar para ir embora daqui?” A resposta é imediata: “Depende bastante de para onde você quer ir”. Responde Alice: “Não me importa muito para onde”. “Então”, emenda o gato, “não importa que caminho tome”.
“Pra quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve” exclama Cortella, para em seguida explicar: “A ética é a possibilidade de respondermos coletivamente em relação à nossa conduta, nossa convivência, nossa vida, para onde queremos ir.”
Num mundo em que já não sabemos o que o faz girar: se o amor, para Alice, ou “quando cada um cuida dos seus próprios negócios”, segundo a Duquesa, um mundo em que "Quanto mais tenho para mim, menos sobra para os outros”, não perder-se e ter um rumo, é um desafio.
Em resumo, Alice apresenta o mundo, nossa realidade, como mudança permanente e no mudar constante das coisas e de nós mesmos, devemos, ante incertezas e inseguranças, mirar onde queremos chegar. Eu miro uma forma de convivência humana inclusiva, partilhante, solidária, democrática. Talvez nunca chegue a ser real, mas sem esta fantasia (um País das Maravilhas), o amanhâ limitar-se-ia a ser consequência do hoje. Graças a capacidade de imaginar, podemos entrever possibilidades diferentes, mas sobretudo podemos agir para transformar essas possibilidades em realidades.” (Albert Jacquard[13]). Um mundo inclusivo, partilhante, solidário e democrático, eu sonho, é possível.




[3] CARROLL, Lewis. Alice No País Das Maravilhas e Através Do Espelho e o Que Alice Encontrou Por lá, 2013. Editora: Zahar.
[4] Meireles, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
[5] GOLIN, Cida. A Busca da identidade Em "Alice no País das Maravilhas" e "Corda Bamba". Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 26, n. 3, setembro, 1991, p. 52

[7] https://www.youtube.com/watch?v=dpp3XFsTXnw
[8] GOLIN, Cida. A Busca da identidade Em "Alice no País das Maravilhas" e "Corda Bamba". Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 26, n. 3, setembro, 1991, p. 55

[9] KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70. 2005, p 59
[10] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural. 1999: p. 111.
[11] ARENDT, Hannah. A condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017: p. 61.
[12]https://www.facebook.com/CortellaClovisKarnal/videos/filosofia-e-o-livro-alice-no-pa%C3%ADs-das-maravilhas/496928460941159/
[13] JACQUARD, Albert. Filosofia para não-filósofos. Respostas claras e lúcidas para questões essenciais. Rio de Janeiro, Campus. 1998, p. 79

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