terça-feira, março 31, 2020

PABLO


Antigamente, quando você queria uma novidade tecnológica de valor estratosférico, você recorria à Galeria Pagé. Lávocê encontrava de tudo a preços módicos. Mas era preciso ficar atento, para foi quando se lançou no Brasil o aparelho de DVD. Os primeiros modelos custavamnão cair em golpes. Muitos negócios eram feitos no escuro. Lembro da febre que
camarada. E foi Pablo à Galeria Pagé com o empréstimo do agiota adquirir o seu um rim. E Pablo descobriu que na Galeria Pagé era possível comprar um a preço DVV. "Gente da sua categoria tinha que ter DVV, não Tê-lo era um surpresa: um tijolo! A história de Pablo circulou. Pablo envergonhado e devendo desprestigio social. E Pablo voltou da Pagé com um pacote debaixo do braço, reuniu os familiares e desembrulhou triunfante o pacote. Qual não foi a às escuras, todo mundo sabia o que estava comprando. O suicídio, uma calamidade a um agiota suicidou-se. No lugar de um tijolo, estamos diante de algo que fede. No entanto, o que ocorreu nas urnas em 2018 não foi propriamente um negócio social sem proporções, está nos bafejando...



segunda-feira, março 30, 2020

O QUE EU NÃO DIGO DIZENDO: TE AMO?



Para Aline Vieira

O sujeito apaixonado fica angustiado porque o objeto amado responde parcimoniosamente, ou não responde, às palavras (discursos ou cartas) que ele lhe dirige. Roland Barthes.

O que significa dizer "eu te amo”. Quantas vezes eu, você, calamos esta expressão? Como tornar compreensiva ao amado, à amada a amplitude de um sentimento que nos desatina e nos confunde? O que é amar?
Roland Barthes, linguista e semiólogo francês, coloca estas e outras questões do sentimento amoroso sobre análise. E em Fragmentos de um discurso amoroso, sua celebre obra, Barthes nos dá um belo “vocabulário” de uma linguagem marcada pela distância intransponível entre aquilo que o amante experimenta e aquilo que diz.
Embora as expressões amorosas se enquadrem no âmbito do indizível, Barthes procura encontrar definições que nos expliquem as dinâmicas do sentimento amoroso. Em seu intento: “fazer ouvir o que existe de inatural na sua voz, quer dizer de intratável”, ele toma por personagem o amante, o enamorado, na aventura de anunciar o indizível: Eu te amo!, para oferecer-nos um glossário que de “abismar-se” à “verdade”, passando por "abraço", "coração", "dedicação", "encontro", "noite", “união”, compila discursos tecidos “de desejos, de imaginário e de declaração” e “oferece como leitura um lugar de fala: o lugar de alguém que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala.”
Barthes apresenta passagens que extrai do Jovem Werther, de Goethe, de um haiku japonês, ou do Simpósio de Platão, da psicanálise lacaniana e da filosofia de Nietzsche para aproximar-nos da verdade intocável do amor.
Cada capítulo do livro é independente, não é preciso seguir uma sequência. E cada capítulo contém todo o encanto e nuances, positivas e negativas, de um que se apaixona. Barthes descreve a agonia, a espera, o adorável, o encanto, a frustração, o luto... Nuances cheias de significações e, ao mesmo tempo, vazias, incapazes de dizer o que o sujeito amoroso é. O sujeito amoroso reconhece ser amado como "atopos", isto é, não classificável, dotado de uma originalidade sempre imprevisível, que “o torna vulnerável” atravessado pela ideia do “ridículo”, da “loucura” da “angustia”.
            Experiências únicas, os sentimentos que Barthes compila descrevem, paradoxalmente, algo conhecido e compartilhado. Toda pessoa apaixonada ocupa a mesma posição que é para ela uma posição única. “uma longa corrente de equivalências liga os enamorados do mundo”, afirma Barthes.
Barthes cita Freud para dizer: “um homem que duvida de seu próprio amor, pode, ou melhor, deve duvidar de qualquer coisa menos importante”.
O indizível do amor é a incerteza de ser amado.
“Há sempre no discurso sobre o amor uma pessoa a quem se dirige... Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém.” E não saber se as coisas que digo me farão amado por aquele, aquela, que amo é o começo do amor. O eu te amo não diz toda emoção, todo desejo, todo encantamento e toda a insegurança e medo do mínimo desapontamento, da mínima magoa. Diante da tua plena riqueza, sinto-me desprovido. Silencio-me. Está feito o discurso.

Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.

domingo, março 29, 2020

A GRANDE REFORMA




Eu contratei um pedreiro para reformar minha casa. Durante o orçamento ele disse que trocaria janelas, portas, e ampliaria a sala. Com a reforma em andamento, o pedreiro resolveu que era mais importante construir uma piscina e uma quadra de esportes. Eu lhe perguntava da cozinha, do banheiro, do telhado, ele insistia na piscina. Depois, o preço ficou salgado e o pedreiro queria que queria prolongar a reforma. Acabei descobrindo que o pedreiro tinha esquema com os depósitos de construção da região, os preços dos materiais eram combinados, e ele ganhava comissão. Fiquei puto, puto mesmo; putaço, na verdade. A reforma da casa não podia parar, contratei um novo pedreiro. Este não apresentou orçamento, orientou-me a conversar com o contador, só dizia que era diferente e que me entregaria uma nova casa. Começou por lacrar as janelas e bloquear as portas, desconstruiu a sala e tudo o que fez o outro pedreiro. Na verdade, eu percebi, ele é um embuste. De alvenaria não entende nada, nunca mexeu massa. Seu gosto por produtos americanos é o que importa. A família é confusa, metida em crimes e se envolve em seu trabalho, mas não me toca. Quem não tem problemas? Dele me incomoda quando abre a boca, é dela que sai o mal cheiro. Por falar nisso, minha casa está se tornando um banheiro.

TUDO PODEMOS


“Tudo me é permitido, mas nem tudo convém.” 1 Cor. 6: 12

Tudo podemos
Podemos amar e podemos odiar
Podemos unir e podemos separar
Podemos partilhar e podemos acumular
Podemos acolher e podemos excluir
Podemos libertar e podemos aprisionar
Podemos educar e podemos adestrar
Podemos rir juntos e podemos chorar sós
Podemos lutar pela vida e podemos deixar que morra
Podemos promover a paz e podemos declarar guerra
Tudo podemos
Podemos ter bom senso
Podemos ter compaixão
Podemos ter sensibilidade
Podemos ter sensatez
Podemos ter solidariedade
Podemos ter dignidade
Podemos ter discernimento
Podemos ter pudor
Podemos ter conhecimento
Tudo podemos
Podemos nos orgulhar de nossa ignorância
De nossa mesquinhez
De nossa arrogância
De nossa intolerância
De nossa indigência moral
Tudo podemos
Podemos escolher o que nos convém

DIOTIMA E ASPÁSIA



A figura de Diotima, sacerdotisa e filósofa grega antiga, é conhecida através de o Banquete de Platão. Ali se afirma que Sócrates teria sido instruído por ela em assuntos de amor. O que ela ensinou a Sócrates foi a doutrina de Eros como o anseio pelo bom e pelo belo. Assim, Sócrates reconhece que ele deve a Diotima sua habilidade de despertar nos outros um esforço rumo ao que é belo e bom, rumo ao conhecimento e à excelência de si mesmo. 
Já no diálogo de Platão Menexeno, tratando da retórica, Sócrates diz a Menexeno: “Acontece que tive por mestre uma mulher que está longe de ser medíocre em matéria de oratória. É a mesma que formou uma multidão de excelentes oradores, entre os quais há um que se destaca entre todos os Gregos – Péricles, filho de Xantipa. A mulher de quem Sócrates fala aqui é Aspásia. Em Xenofante, Sócrates afirma ter descoberto em Aspásia uma educadora extremamente habilidosa (Mem. II.6.36; Ec. 3.14). 
Aspásia fora a segunda esposa de Péricles, o célebre e influente estadista, orador e estratego da Grécia Antiga, um dos principais líderes da democracia ateniense. Muito influente no círculo filosófico e político de Atenas, Aspásia promovia reuniões literárias em sua casa e participava do debate político da época.
Aspásio é o título de um diálogo de Esquines, discípulo de Sócrates. Nesse diálogo, Sócrates é procurado por um certo Cálias a busca de um professor de retórica  para o filho. E Sócrates recomenda-lhe Aspásia. Diante das suspeitas de Cálias, Sócrates defende que foram os ensinamentos de Aspásia que tornaram Péricles um excelente orador e influente político. O mesmo ela teria feito com Lísicles, com quem se casou após a morte de Péricles e que anteriormente havia sido um mercador de ovelhas completamente sem importância. Em seu discurso, Sócrates defende que as mulheres também são importantes em questões políticas. 
Em Diotima e Aspásia, Sócrates não apenas reconhece a influência que elas exerceram em sua formação. Ele cobrava uma maior participação feminina na sociedade de Atenas. E reclamava às mulheres o acesso a uma educação a par da formação dos homens. Reconhecendo serem as mulheres capazes de fazer as próprias escolhas e determinarem a própria vida, Sócrates cobrava que elas deviam ocupar posições de responsabilidade na sociedade. 
Reconhecedor da presença de Diotima e Aspásia em sua formação, dessas mulheres Sócrates aprendeu algo que continuamente ignoramos: o maior obstáculo para nosso progresso intelectual é a falta de disposição para confrontarmos-nos com nossa própria ignorância.

quinta-feira, março 26, 2020

UM ESCRIBA RAQUÍTICO




“Um dia serei escritor!” Vó: “sem comer?” Eu não entendia. Tia ria. “Escrever, qualquer um escreve”, dizia Dona Conceição, “escritor é quem lê”, completava, entregando-nos nossas redações. Continuo mantendo a expectativa: um dia serei escritor. “Mas já escreves!” redargui a companheira. “Eu leio pouco, sem critério. Escrevo despautérios!” Minha leitura preguiçosa, contorna minha escrita. Ler é dar ouvidos. “E dar ouvidos é captar o sentido, não o som do dito”, dizia-me Christine Ramos. E Christine explicava-me “a necessidade de falar suplanta a necessidade de dar ouvidos. Escutamos as pessoas, sem deixá-las dizer”. “Quem pouco ouve e muito fala, fala besteira de mais”, tia e Christine se entendiam. Leio insanidades, escrevo insanidades. Há quem escreve sem ler. Isso eu não faço. Escrevo insanidades, não bobagens!
Porque sou insensato, escrevo insensatezes. “Quem escreve é escriba, escritor é, antes de tudo leitor!” Dona Conceição era chata, pegava no nosso pé. Nos professores “legais” eu penso pouco. “Quer ser escritor? leia!”, insistia Dona Conceição.  
“Eu serei escritor!” Vó: “então coma!” Mas vó dizia coisas que só ela entendia: “não é comer que faz bem; é o que se come que faz bem.” Porque me alimento de miojo, sou anêmico. “Não é o tanto que come, é o quanto digere”, quem entende vó? “Quem muito come e não digere, ou se entope ou vomita”. Vó não entendia nada de escrita: “digerir é lento, e não se come com pressa” dizia. Eu queria ser escritor, não minto. Mas não há robustez no que escrevo. Alimento-me de banalidades, de palavras ocas. De fastfood me alimento. Não sou escritor, sou escriba. “Quer ser escritor? Leia, Dona Conceição dizia coisas que eu não entendia: “o que importa não é ler, o que se lê é que importa”. Não dei ouvidos a vó: sou raquítico. Não dei ouvidos a Dona Conceição: sou escriba.


quarta-feira, março 25, 2020

CARTA AOS BARBÁROS



“Havemos todos de morrer, chegada a sua hora. No entanto, não me compete decidir quem há de morrer agora. Meu esforço é para que todos, todos não apenas alguns, atravessem mais esta jornada. Eu não decido quem morre, eu me empenho para que todos alcancem uma nova aurora”. (O Soberano)


“Havemos todos de morrer, chegada a sua hora. No entanto, não me compete decidir quem há de morrer agora. Meu esforço é para que todos, todos e não apenas alguns, atravessem mais esta jornada. Eu não decido quem morre, eu me empenho para que todos alcancem uma nova aurora”. (Soberano)

 

Tia inventava histórias. Acendia fogueira, estourava pipoca e contava-nos histórias. Suas histórias tinha sempre a mesma moral: toda vida importa. É pensando em tia que não tinha riqueza, não tinha estudos, mas tinha humanidade, que escrevo aos bárbaros.

Da criança que apenas nasce ao homem, à mulher, à idade centenária, da pessoa que habita a sarjeta, dos que estão no cárcere, aos senhores em seus palácios, não existe pessoas insignificantes: toda vida vale.

Na caminhada, havemos de perder muitas flores. No entanto, não devemos nos abandonar à fatalidade. Do outro lado da margem, não sabemos o que será, mas devemos chegar com todos: toda vida vale.

Não nos cabe escolher quem deixar pelo caminho nessa travessia incerta. O amanhã ou será um dia de todos, também dos que não chegarem, ou será vergonhoso.

Aproveitemos a oportunidade que nos alcança para irmos pensando uma nova maneira de vivermos uns com os outros.

“O século XVIII foi o século da filosofia triunfante, o XIX o da industria triunfante, o XX o da economia triunfante. Desde agora, deve-se escolher o que será o século XXI: o da barbárie triunfante ou o da condição humana triunfante” ( Albert Jacquard).

A humanidade só é possível onde toda vida vale, onde não existem pessoas insignificantes.

Soberano era rei de um mundo imaginário, coisa da cabeça de tia. A moral de suas histórias era coisa de seu coração. Eu vivo no mundo de tia onde pulsa humanidade: toda vida vale, mesmo a dos bárbaros.

 


terça-feira, março 24, 2020

CONSCIÊNCIA




           A consciência não é uma iluminação repentina; é uma lenta e progressiva saída da “caverna”, assumindo um lugar no seio da sociedade, um lugar de incisão, não apenas de paisagem.
          A consciência é memória, experiência, imaginação, criação; está entre as perguntas que nos fazemos, aquelas que dizem de nossa existência, da tragédia que somos, e as respostas sempre vacilantes, incertas-certezas, que nos vamos dando.
         A consciência é um exercício de compreensão de si no mundo, com o mundo, do mundo. Ela alimenta da observação-reflexão, pessoal e coletiva das manifestações do mundo e de si com o mundo, no mundo, propondo-se um mundo.
        A consciência amadurece demoradamente. Não é dada, a ela se chega.
        É preciso se desalojar das “verdades inquestionáveis” e das opiniões idelogizadas, mais verdade que a verdade. A consciência é um constante descontentamento com o estado da coisa e de si. É um exercício intelectual, não de intelectuais apenas, ancorada no conhecimento do tesouro cultural que o passado nos lega. Sem saberes a consciência é como água parada, estagna. É da natureza da água renovar-se: “Não se entra no mesmo rio duas vezes, suas águas são sempre outras” (Heráclito). É da consciência procurar saber.  
          A consciência é saber que existimos para nos tornarmos pessoa; imaginando e implementando um amanhã favorável com o que está ruindo. Não obstante o infortúnio, somos uma espécie que espera e cria as condições de nossas esperanças. A consciência transita do agora ao devir, recolhendo saberes: os saberes são sempre passado.
          Consciência é tornar-me responsável, não por mim apenas, mas pelo que engloba o nós. Só há amanhã coletivamente. A consciência, mesmo de mim, é coletiva.  Não consciência onde não há compromisso social.  

segunda-feira, março 23, 2020

OLHOS PARADOS


https://www.facebook.com/claudiodomingos.fernandes/posts/3925520640806469?comment_id=3926255167399683&notif_id=1584972333956752&notif_t=feed_comment

ENÉZIO




Meu irmão fazia coisas que me proibiam fazer. Diziam que ele era mais responsável. Que eu não levava as coisas a serio. Não tinha jeito, era atrapalhado. Certo dia eu quis provar que podia dirigir a Brasília. Não sabia, mas podia! Peguei a chave, coloquei no contato, engatei a marcha, liguei. A Brasília deu um tranco pra frente, arrebentou a mureta da garagem, ficou com a frente toda danificada. A sova e o castigo que levei não esqueço. Até hoje, nos almoços de família lembro a meus pais: “Quando Enézio capotou a Brasília, ninguém o castigou.” Certa vez, meu pai respondeu-me: “Você não nasceu para repetir os erros de seu irmão, mas para aprender com eles. Ao invés de ficar olhando para os erros de seu irmão, procure modos de não os repetir. A gravidade de um erro é maior quando repetido.” Resumo da história, se é pra ficar lembrando-nos dos erros dos governos passados, por que vocês votaram nesse idiota?

domingo, março 22, 2020

DEUS É AQUILO NO QUE ACREDITO



Para Bono Fox

“Deus deixou o homem livre para ser ele mesmo, se assim o quiser” (Nicolau de Cusa)

Segundo Albert Jacquard, geneticista francês, uma invenção não é perniciosa, perniciosa pode ser a utilização que se faz dela.  E diz que já Lucrécio, cerca de 55 a.C., considerava os deuses uma invenção, que era, segundo ele um desastre para a humanidade.
Já próximos a nós, Freud, Marx e Nietzsche combateram a religião acusando-a de infantilismo, ópio, ressentimento. Todos eles cobram aos homens a responsabilidade de assumirem o próprio destino e se autodeterminarem.
Para Jacquard, “o próprio do homem é a capacidade para participar de seu destino, pensar no futuro, discernir as bifurcações possíveis, portanto, desejar e tornar-se o que decide ser”. E “nossa dignidade reside na nossa recusa das obrigações impostas pela natureza”.  Assim, “na medida que as religiões propagam uma mensagem de submissão, vão contra o potencial humano...”
No entanto, Jacquard reconhece que “uma religião é uma estrutura social que contribui para a evolução da comunidade” se orienta a ação de seus adeptos no sentido de uma libertação.
Jacquard distingue, assim uma religião fechada, que aposta no fanatismo, na crença de possuir a verdade que impede a indagação, o questionamento, de uma religião libertária, que oferecem meios para seus adeptos se orientarem, refletirem e evitarem certos impasses. Assim, para Jacquard: “se uma religião lhe permite tornar-se aquele que você deseja ser, ela constitui uma vantagem.”
Uma coisa são as religiões, outra coisa é Deus. Existindo ou não, fruto ou não de nossa imaginação, Deus é uma expressão carregada de sentido que conduziram a humanidade a elaborar uma ética, a instalar modos de vida coletivo, a desejar ser mais (uma expressão freireana).
Implicitamente Jacquard defende que o esclarecimento, o conhecimento das forças e dos elementos que regem o universo, nosso organismo, nosso cérebro, aliado a nossa autodeterminação nos bastam. Eu não discordo, mas tenho um Deus em que acredito.
Para mim Deus é a ilusão que nutro de que podemos instaurar um mundo comum que permita a diversidade, a pluralidade, a inclusividade, um mundo em que eu possa ser o que eu me determino ser e o outro, sem o qual eu não saberia ser, seja o que ele se determina ser.
“Eu creio num Deus que não existe” Christine Ramos.



SEM ESTADO NÃO HÁ CIÊNCIA QUE NOS SALVE

Ao lado da arte, entre nós, nunca tivemos muito apreço pela ciência. Até ontem ela era tratada, como a arte, com desdém. Se da arte quem se dedica são os desajustados sociais (sim é isto que se pensa entre nós dos artistas), a ciência era um antro de balburdia e orgias sexuais (sim, foi isto que foi dito recentemente). Arte e ciência não precisam de cuidados do Estado. Na verdade, até ontem, nós achávamos que não precisávamos de Estado, que o mercado (o que é mesmo o mercado? O interesse de uns poucos banqueiros e uns poucos empresários, ditando como expropriar-nos corpo e alma) podia se auto regular e nos auto regular. Hoje acordamos esperando da ciência, sem recursos, sem equipamentos, sem cientistas a solução para o infortúnio que nos atinge. Não há ciência sem escola, sem professores. Cientista não se nasce. Cientista se forma num longo percurso que começa na escola. Escola, educação, professores ao mercado não interessa. Ao mercado interessa consumidores. As estatísticas dizem que as maiores vítimas do infortúnio entre nós são de consumidores medianos, com baixo poder aquisitivo. O mercado não sentira o impacto de sua ausência. Agora percebemos a importância do Estado. O mercado, o interesse mesquinho de uns poucos, não nos vê como homens e mulheres, nos vê como mercadoria, e mercadoria de pouco valor, mercadoria descartável. Agora olhamos para o Estado e cobramos que haja ciência, que haja pesquisa, que haja médicos, hospitais, leitos, SUS. Mas como haveremos de ter ciência se não tivermos escolas?  A ciência há de encontrar a saída para o infortúnio do corpo, mas e o espírito? Um corpo sadio sem uma alma sã é um autômato, continua mercadoria de pouco apreço. O que alimenta a alma é o conhecimento o estudo a arte. O mercado não nos oferece educação, conhecimento, arte. O mercado nos oferece mercadorias, entretenimento e uma função na engrenagem que o faz girar. Sem Estado somos apenas cifras e cifras de baixo valor. Sem Estado não temos escolas, não temos cientistas, não temos médicos, não temos hospitais, não temos arte e cultura. Mas não basta ter Estado se quem o governa o apequena, o rebaixa, o submete às regras do mercado. Não basta ter Estado se quem o governa não o preza e o reduz a capacho.

segunda-feira, março 16, 2020

PRA QUEM NÃO SABE PARA ONDE VAI, QUALQUER CAMINHO SERVE



Alice ainda é e sempre será a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos. – Nicolau Sevcenko[1]

Apenas Lewis Carroll nos mostrou o mundo de ponta-cabeça como uma criança o vê, e nos fez dar risada, como uma criança dá risada, irresponsavelmente. Nos bosques do puro nonsense…” Virginia Wolff[2]


Alice[3], uma garotinha de aproximados dez anos, está no campo com a irmã, e sente-se entediada. Começa a adormecer e, subitamente, vislumbra um coelho branco, com olhos cor-de-rosa, passar correndo por ela. Chama a atenção de Alice o coelho retirar do bolso do colete um relógio. Um coelho de colete e com relógio era algo insólito. E "ardendo de curiosidade, Alice correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma toca de coelho embaixo da cerca...” Impensadamente ela entra na toca atrás do coelho e aprofunda-se em um buraco profundo, dando-se em um mundo fantástico, com personagens inverossímeis e paradoxais.
Publicado pela primeira vez em 1865, Alice no País das Maravilhas, do escritor Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, é um clássico da literatura nonsense e escrita para uma criança, Alice Pleasance Liddell, e sua atmosfera de fantasia o caracteriza como um livro infantil. No entanto, para Cecília Meireles[4], Alice no País das Maravilhas se diferencia de outras histórias escritas para crianças. Para Meirelles, a singularidade de Alice é o fato de a narrativa ter sido oral, antes de escrita, e ter contado com a colaboração de Alice Liddel e suas duas irmãs.
 “Cecília Meireles escreve que as aventuras de Alice são a descoberta do maravilhoso nas coisas cotidianas e nos seres humanos. É a busca de uma visão nova da vida, do segredo das leis que regem os homens, do poder oculto das coisas e das relações entre vários fenômenos"[5].
Para Virginia Wolff[6], comentando Alice no País das Maravilhas e sua sequência, Alice através do Espelho, as obras de Carroll não são livros para crianças, mas para nos tornarmos criança. Segundo Wolff, Lewis Carroll, “no intuito de nos fazer criança de novo, primeiro nos faz dormir. "Caindo, caindo, caímos naquele mundo aterrorizante, loucamente inconsequente, e no entanto perfeitamente lógico, onde o tempo corre, depois para; onde o espaço estica, depois se contrai. É o mundo do sono; é também o mundo dos sonhos"... É por esse motivo que as duas Alices não são livros para crianças; mas são os únicos livros em que nós nos tornamos crianças”.
Segundo o professor Mario Sergio Cortella[7], Alice no País da Maravilha é um livro de filosofia de ponta a ponta. Para ilustra o que nos diz Cortella basta atentar que no País das Maravilhas Alice transforma-se constantemente, crescendo e diminuindo de tamanho a partir de ingestão de bebidas, doces ou pedaços de cogumelos e Alice não sabe o que irá acontecer de um minuto para outro. Assim em seu encontro com uma lagarta que a questiona: "Quem é você?". Alice responde: “Eu mal sei, Sir, neste exato momento… Pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então”.
As transformações de Alice lembra muito Heráclito, que viveu por volta de 540 a.C. Heráclito dizia que “tudo flui”, tudo está em movimento, tudo muda constantemente em constante vir-a-ser. Dele ficou célebre a seguinte passagem: “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Mas mudanças proporcionam insegurança: “Eu sou uma menininha, respondeu Alice bastante insegura, lembrando-se do número de mudanças que sofrera naquele dia”. E “como todas essas mudanças desorientam. Não sei ao certo o que vou ser de um minuto para o outro”. Assim, “Eu mal sei”. Do discurso de Alice com a lagarta, "Cecília Meirelles faz um paralelo com a frase da personagem Ofélia em Hamlet, de Shakespeare: "senhor, sabemos o que somos, mas não sabemos o que podemos ser"”. [8] Não obstante as mudanças e as incertezas: “todos os seres humanos compartilham a capacidade de se conhecer a si mesmo”, diria Heráclito.
No capítulo IX, intitulado “A História da Tartaruga Falsa”, Alice caminha ao lado da Duquesa e faz de si para si conjecturas culinárias. Estas conjecturas são interrompidas pela Duquesa: "Você está pensando em alguma coisa, minha querida, e isso faz você esquecer de falar. Eu não posso lhe dizer agora qual é a moral disso mas vou lembrar num instante." À intervenção da Duquesa interrompendo-a em suas conjecturas, Alice aventura-se a observar: “Talvez não haja nenhuma”. Por sua vez, a Duquesa retruca: "Ora, ora, criança! Tudo tem uma moral, se você encontrá-la".
Moral aqui pode ser entendido como uma conclusão sintética, ou ensinamento que retiramos de um fato, um acontecimento, experiência ou narrativa. Assim, de tudo podemos tirar uma moral, um aprendizado, uma lição de vida. Ao mesmo tempo, na moral concentra-se o conjunto de valores que orientam os hábitos e as normas da convivência humana. Neste sentido, dizia Kant: produzir a moralidade é tarefa do homem, cultivando-se, tornando-se melhor, desenvolvendo suas disposições para o bem. Para Kant o que nos humaniza e nos dá o status de pessoa é a capacidade de realizar ações morais resultantes de um imperativo categórico: "age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal"[9]
A certa altura, a Duquesa recomenda para Alice: "Seja o que você parece ser". Tal recomendação dá-nos a pensar que o que se vê é mais importante do que se é e o que importa é a aparência. Há aqui um eco do filósofo italiano Nicolau Maquiavel, que ensina: “os homens costumam julgar mais pelos olhos do que pelas mãos, uma vez que todos podem enxergar, mas poucos sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, poucos o que realmente és”[10]. Numa perspectiva política, caso da filosofia de Maquiavel, a aparência é também, para Hannah Arendt[11], constituinte da política. E em termos político, Arendt define a aparência: “Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade”, de modo que “mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos do espírito, os deleites dos sentidos – levam uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo que assumam um aspecto adequado à aparição pública”.
O professor Mario Sergio Cortella[12] aborda o encontro de Alice com o Gato de Cheshire numa perspectiva ética. Alice encontrando-se perdida e dirigindo-se ao gato, pergunta: "poderia me dizer, por favor. que caminho devo tomar para ir embora daqui?” A resposta é imediata: “Depende bastante de para onde você quer ir”. Responde Alice: “Não me importa muito para onde”. “Então”, emenda o gato, “não importa que caminho tome”.
“Pra quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve” exclama Cortella, para em seguida explicar: “A ética é a possibilidade de respondermos coletivamente em relação à nossa conduta, nossa convivência, nossa vida, para onde queremos ir.”
Num mundo em que já não sabemos o que o faz girar: se o amor, para Alice, ou “quando cada um cuida dos seus próprios negócios”, segundo a Duquesa, um mundo em que "Quanto mais tenho para mim, menos sobra para os outros”, não perder-se e ter um rumo, é um desafio.
Em resumo, Alice apresenta o mundo, nossa realidade, como mudança permanente e no mudar constante das coisas e de nós mesmos, devemos, ante incertezas e inseguranças, mirar onde queremos chegar. Eu miro uma forma de convivência humana inclusiva, partilhante, solidária, democrática. Talvez nunca chegue a ser real, mas sem esta fantasia (um País das Maravilhas), o amanhâ limitar-se-ia a ser consequência do hoje. Graças a capacidade de imaginar, podemos entrever possibilidades diferentes, mas sobretudo podemos agir para transformar essas possibilidades em realidades.” (Albert Jacquard[13]). Um mundo inclusivo, partilhante, solidário e democrático, eu sonho, é possível.




[3] CARROLL, Lewis. Alice No País Das Maravilhas e Através Do Espelho e o Que Alice Encontrou Por lá, 2013. Editora: Zahar.
[4] Meireles, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
[5] GOLIN, Cida. A Busca da identidade Em "Alice no País das Maravilhas" e "Corda Bamba". Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 26, n. 3, setembro, 1991, p. 52

[7] https://www.youtube.com/watch?v=dpp3XFsTXnw
[8] GOLIN, Cida. A Busca da identidade Em "Alice no País das Maravilhas" e "Corda Bamba". Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 26, n. 3, setembro, 1991, p. 55

[9] KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70. 2005, p 59
[10] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural. 1999: p. 111.
[11] ARENDT, Hannah. A condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017: p. 61.
[12]https://www.facebook.com/CortellaClovisKarnal/videos/filosofia-e-o-livro-alice-no-pa%C3%ADs-das-maravilhas/496928460941159/
[13] JACQUARD, Albert. Filosofia para não-filósofos. Respostas claras e lúcidas para questões essenciais. Rio de Janeiro, Campus. 1998, p. 79

terça-feira, março 10, 2020

É TEMPO DE PRUDÊNCIA



Para Fátima Pedro

O hipócrita, com a boca, danifica o seu próximo,
mas os justos são libertados pelo conhecimento.
Provérbios 11:9


Segundo André Laks, professor de filosofia Antiga na Universidade Charles de Gaulle, Lille 3, na França, é de Anaxágoras um fragmento que diz: “por causa dos nossos sentidos não podemos julgar a verdade”.  A este dito, André Larks acrescenta um fragmento de Heráclito: “más testemunhas são os olhos e ouvidos dos homens, se têm almas bárbaras”. Parece-me que vivemos tempos bárbaros e “os bárbaros julgam por gosto a contendas”, dizia Zózimo de Ítaca. É do mesmo Zózimo: “quando um julga com os sentidos, comete erro; quando o juiz são os sentimentos, injustiça se resulta. O ponderado guarda silêncio e medita”.  Uma amiga dizia-me: “os estúpidos se apressam a julgar, os sábios dificilmente chegam a uma sentença. Entre uns e outros, os juízes devem ser ponderados: nem julgar apressadamente, nem se abster de sentenciar.” Estamos no tempo cíclico da desolação, tudo parece fora de eixo, a secura faz com que tudo se corroa. O azedume impregna o ar e adultera-nos os ânimos. É com ânimos alterados que nos arvoramos em juízes e a todos condenamos. Faço aqui um salto da Filosofia para as páginas da sagrada escritura, este objeto que estamos tão prontos a defender ou atacar, mas pouco dispostos a entender: “és inescusável, ó homem, quem quer que sejas, que te arvoras em juiz” (Romanos, 2, 1). Segundo Provérbios: “o insensato não gosta da inteligência, mas de publicar o que pensa” (Provérbios: 18,2). É o gosto pelo conhecimento, diz o redator de Provérbios, que nos livra do homem que diz disparates, dos que seguem caminhos tenebrosos e se comprazem com o mal. (Provérbios: 2). O pouco apreço pela inteligência nos enche a boca de palavras apresadas e enganosa, ensinou-me meu orientador vocacional.  Nossa realidade presente é de pouco apreço pelo conhecimento, são muitos os que preferem a companhia da ignorância e do juízo rasteiro. De tal modo, me parece prudente seguir o sábio: “quem retém os lábios é prudente” (Provérbios: 10,19).  


segunda-feira, março 09, 2020

A EDUCAÇÃO NÃO PODE TUDO.



Para Selma Amorim Maida, Mônica della Matta e Maria Rosilene Alves


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado
Manoel de Barros

A educação em Paulo Freire está vinculada ao que ele define como vocação humana a Ser Mais, que coloca homens e mulheres ante o desafio de, partilhando suas existências, se reconhecerem sujeitos de sua história. A ideia, então, de educação, em Paulo Freire, ancora-se na luta concreta de homens e mulheres por Ser Mais, em que autonomia e libertação seja um horizonte que se conquista caminhando entre e com os oprimidos...
A autonomia é capacidade de decisão assumida responsavelmente, num processo de amadurecimento que “vai se construindo na experiência de varias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas”. E “enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”. E “não ocorre em data marcada” (FREIRE, 2016: 105).
A autonomia não é, pois, determinação, é possibilidade que se concretiza nas experiências e exercícios de tomada de decisões, onde se vence medos e se supera preconceitos. O exercício de tomar decisões amadurece a compreensão crítica do significado de que a liberdade é uma conquista e se dá em comunhão. Só podemos afirmar nossa liberdade em convivência.
Assim, contra a sociedade estruturada segundo o modelo de exclusão, alienação de si e do mundo e fuga à responsabilidade para com o mundo, estabelecendo as bases para a barbárie, a “educação não pode muito”, mas ela pode, ao menos, cogitar certo projeto de sociedade que seja mais que um contrato de trocas de bens e serviços regulados pelo mercado.
Em nossa realidade presente a educação está reduzida um instrumento voltado a apreensão de determinadas técnicas e conhecimentos eficazes e uteis para a produção e o consumo. Assim, os sistemas educacionais empobrecem a prática educativa preocupando-se apenas com a eficiência dos métodos de ensino para a produção de habilidades e competências de interesse das estruturas de produção e de consumo.
O contraponto é a perspectiva formativa, cujos processos, procedimentos, conteúdos instigue a autonomia, a emancipação a liberdade, a convivência social fundada na justiça, no respeito à diversidade, na redução das desigualdades e na preocupação com o mundo como lugar de nossa existência e de amadurecimento de nossa humanidade.
Educar é “não esperar que a sociedade se transforme. Se esperarmos, ela não se transforma, temos de fazer, e é nos metendo dentro do processo, na própria intimidade do processo em movimento, que descobrimos os caminhos e vamos desmontando coisas que se opõem à mudança” (FREIRE, 2013: 175-176). Sem nossa contribuição, não podemos esperar outra sociedade a não ser a que está aí. E nossa contribuição é favorecer que os atores (alunos-professores) no processo educativo tornem-se sujeitos de sua história, lutando consciente e responsavelmente para mudar o que precisa ser mudado.
A educação para o humano, enraizado na autonomia e na liberdade, exige, então, o exercício da razão, do pensamento, do conhecimento. Exige coletividade fundada na partilha, na solidariedade, na convivência democrática; é comprometida com os despossuídos, os excluídos, os expropriados, aqueles que, para o “sistema”, não contam.
A educação decorre, diretamente, de nossa capacidade para pensar o futuro, de que podemos intervir nos acontecimentos que criam o amanhã. Ao mesmo tempo, a função primeira da educação é não desdenhar ou esquecer os acontecimentos passados. O esquecimento, a incúria para com a história cria condições para que os piores erros da humanidade reemerjam em seus aspectos mais grotescos. Para o futuro que vislumbramos, mediado pela educação, não podemos dispensar a memória. Pensar a educação é pensar a condição humana no mundo concreto de suas relações, no seu acontecer histórico.
A educação está umbilicalmente ligada à concepção de humano e à relação dos homens e mulheres em suas praticas sociais, políticas, culturais que os humanizam, orientam e fundamentam o pensar e o fazer educativo.
Assim, se todo o pensamento freireano, sustenta-se na sua concepção do ser humano como vocacionado a Ser Mais, é a consciência de inacabamento, de ser inconcluso, que ilumina tal vocação. E desta perspectiva, a educação, em Paulo Freire, não se restringe aos educando em situação de escolarização, ela estende-se a todos os homens e mulheres em qualquer estágio de suas existências, em qualquer ambiente em que atuem. E transitando do ser inconcluso ao vocacionado a Ser Mais, para Paulo Freire, não há educação que não seja ética, pois: “não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão” (FREIRE: 2016: 34). De tal modo: “Jamais pude pensar a prática educativa (...) intocada pela questão dos valores, portanto, da ética..." (FREIRE, 2000: 40).
A ética exige uma posição, uma tomada de decisão, uma escolha radical de que lado, como educadores, estamos: da formação integral ou do adestramento de habilidades e competências, da inclusão com todos os riscos e desafios que comporta ou da seleção meritocrática dos que melhor respondem às exigências da sociedade do consumo pelo consumo, da convivência com o diferente ou de sua negação, da diminuição das desigualdades ou da defesa da opulência criminosa, condenando os despossuídos por sua expropriação...
A educação não pode tudo, mas ela pode desafiar os despossuídos, os pertencidos de abandono a descobrirem que sua presença no mundo não é marcada por um determinismo cego e mecânico, instigando-os a serem sujeitos de sua história. Se a educação não pode tudo, ela pode ensinar que “a [liberdade] não pode ser doada, presenteada em uma festa de aniversário. A [liberdade] é algo que nós criamos, fazemos, em comunhão.” (FREIRE, 2013: 251). Ela “amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do Estado.” Talvez a educação não mude o mundo, mas ela pode mudar nosso modo de o ver e de nos ver nele, com ele e com os outros que o partilham conosco. Este olhar não se dá do dia para noite, ou recebendo em mãos o canudo de formatura. Ele vai amadurecendo dia-a-dia, vai se constituindo na experiência de varias, inúmeras decisões que vamos tomando, na luta em favor da partilha, da solidariedade, da inclusividade, da liberdade, da responsabilidade da equidade e da justiça.
Toda a concepção freireana de educação é por uma ética da vida, da convivência inclusiva, solidaria, partilhante. Nesta perspectiva encerro afirmando minha posição valendo-me de um poeta, Manoel de Barros: “Antes que das coisas celestiais./ Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de janeiro: Paz e Terra. 2016
____________. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2013
____________. Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: paz e terr. 2000 (edição em PDF)
____________. Política e Educação. São Paulo: Cortez.1995


quarta-feira, março 04, 2020

DE TOMÂNIA A TUPINAMBÁ


Em Tomânia, Hynkel, ditador de plantão, é confundido com um barbeiro e é preso em seu lugar. O barbeiro, por sua vez, para não ser preso, se faz passar pelo ditador. E na figura do ditador faz um célebre discurso: “[...] As nuvens estão subindo, o Sol está abrindo caminho! Estamos fora das trevas, indo em direção à luz!" Mas isto foi em Tomânia, onde havia um barbeiro genial. Aqui em Tupinambá não houve confusão, o próprio nefasto em exercício se fez representar por um bufão, o que há em comum entre os dois não é a semelhança física, mas a escassa inteligência e uma plateia cativa com um peculiar orgulho da própria ignorância. Em Tupinambá falta um gênio e as nuvens estão longe de se dissiparem. Em Tupinambá se caminha em direção a trevas profundas.