Para Selma Amorim Maida,
Mônica della Matta e Maria Rosilene Alves
A
maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse
ponto sou abastado
Manoel de Barros
A
educação em Paulo Freire está vinculada ao que ele define como vocação humana a
Ser Mais, que coloca homens e mulheres ante o desafio de, partilhando suas
existências, se reconhecerem sujeitos de sua história. A ideia, então, de
educação, em Paulo Freire, ancora-se na luta concreta de homens e mulheres por
Ser Mais, em que autonomia e libertação seja um horizonte que se conquista
caminhando entre e com os oprimidos...
A
autonomia é capacidade de decisão assumida responsavelmente, num processo de
amadurecimento que “vai se construindo na experiência de varias, inúmeras
decisões, que vão sendo tomadas”. E “enquanto amadurecimento do ser para si, é
processo, é vir a ser”. E “não ocorre em data marcada” (FREIRE, 2016: 105).
A
autonomia não é, pois, determinação, é possibilidade que se concretiza nas
experiências e exercícios de tomada de decisões, onde se vence medos e se
supera preconceitos. O exercício de tomar decisões amadurece a compreensão
crítica do significado de que a liberdade é uma conquista e se dá em comunhão.
Só podemos afirmar nossa liberdade em convivência.
Assim,
contra a sociedade estruturada segundo o modelo de exclusão, alienação de si e
do mundo e fuga à responsabilidade para com o mundo, estabelecendo as bases
para a barbárie, a “educação não pode muito”, mas ela pode, ao menos, cogitar
certo projeto de sociedade que seja mais que um contrato de trocas de bens e
serviços regulados pelo mercado.
Em
nossa realidade presente a educação está reduzida um instrumento voltado a
apreensão de determinadas técnicas e conhecimentos eficazes e uteis para a
produção e o consumo. Assim, os sistemas educacionais empobrecem a prática
educativa preocupando-se apenas com a eficiência dos métodos de ensino para a
produção de habilidades e competências de interesse das estruturas de produção
e de consumo.
O
contraponto é a perspectiva formativa, cujos processos, procedimentos,
conteúdos instigue a autonomia, a emancipação a liberdade, a convivência social
fundada na justiça, no respeito à diversidade, na redução das desigualdades e
na preocupação com o mundo como lugar de nossa existência e de amadurecimento
de nossa humanidade.
Educar
é “não esperar que a sociedade se transforme. Se esperarmos, ela não se
transforma, temos de fazer, e é nos metendo dentro do processo, na própria
intimidade do processo em movimento, que descobrimos os caminhos e vamos
desmontando coisas que se opõem à mudança” (FREIRE, 2013: 175-176). Sem nossa
contribuição, não podemos esperar outra sociedade a não ser a que está aí. E
nossa contribuição é favorecer que os atores (alunos-professores) no processo
educativo tornem-se sujeitos de sua história, lutando consciente e
responsavelmente para mudar o que precisa ser mudado.
A
educação para o humano, enraizado na autonomia e na liberdade, exige, então, o
exercício da razão, do pensamento, do conhecimento. Exige coletividade fundada
na partilha, na solidariedade, na convivência democrática; é comprometida com
os despossuídos, os excluídos, os expropriados, aqueles que, para o “sistema”,
não contam.
A
educação decorre, diretamente, de nossa capacidade para pensar o futuro, de que
podemos intervir nos acontecimentos que criam o amanhã. Ao mesmo tempo, a
função primeira da educação é não desdenhar ou esquecer os acontecimentos
passados. O esquecimento, a incúria para com a história cria condições para que
os piores erros da humanidade reemerjam em seus aspectos mais grotescos. Para o
futuro que vislumbramos, mediado pela educação, não podemos dispensar a
memória. Pensar a educação é pensar a condição humana no mundo concreto de suas
relações, no seu acontecer histórico.
A
educação está umbilicalmente ligada à concepção de humano e à relação dos
homens e mulheres em suas praticas sociais, políticas, culturais que os
humanizam, orientam e fundamentam o pensar e o fazer educativo.
Assim, se todo o pensamento
freireano, sustenta-se na sua concepção do ser humano como vocacionado a Ser
Mais, é a consciência de inacabamento, de ser inconcluso, que ilumina tal
vocação. E desta perspectiva, a educação, em Paulo Freire, não se restringe aos
educando em situação de escolarização, ela estende-se a todos os homens e
mulheres em qualquer estágio de suas existências, em qualquer ambiente em que atuem.
E transitando do ser inconcluso ao vocacionado a Ser Mais, para Paulo Freire,
não há educação que não seja ética, pois: “não é possível pensar os seres
humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou, pior,
fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão” (FREIRE: 2016:
34). De tal modo: “Jamais pude pensar a prática educativa (...) intocada pela
questão dos valores, portanto, da ética..." (FREIRE, 2000: 40).
A
ética exige uma posição, uma tomada de decisão, uma escolha radical de que
lado, como educadores, estamos: da formação integral ou do adestramento de
habilidades e competências, da inclusão com todos os riscos e desafios que
comporta ou da seleção meritocrática dos que melhor respondem às exigências da
sociedade do consumo pelo consumo, da convivência com o diferente ou de sua
negação, da diminuição das desigualdades ou da defesa da opulência criminosa,
condenando os despossuídos por sua expropriação...
A
educação não pode tudo, mas ela pode desafiar os despossuídos, os pertencidos
de abandono a descobrirem que sua presença no mundo não é marcada por um
determinismo cego e mecânico, instigando-os a serem sujeitos de sua história.
Se a educação não pode tudo, ela pode ensinar que “a [liberdade] não pode ser
doada, presenteada em uma festa de aniversário. A [liberdade] é algo que nós
criamos, fazemos, em comunhão.” (FREIRE, 2013: 251). Ela “amadurece no
confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da
autoridade dos pais, do professor, do Estado.” Talvez a educação não mude o
mundo, mas ela pode mudar nosso modo de o ver e de nos ver nele, com ele e com
os outros que o partilham conosco. Este olhar não se dá do dia para noite, ou
recebendo em mãos o canudo de formatura. Ele vai amadurecendo dia-a-dia, vai se
constituindo na experiência de varias, inúmeras decisões que vamos tomando, na
luta em favor da partilha, da solidariedade, da inclusividade, da liberdade, da
responsabilidade da equidade e da justiça.
Toda
a concepção freireana de educação é por uma ética da vida, da convivência
inclusiva, solidaria, partilhante. Nesta perspectiva encerro afirmando minha
posição valendo-me de um poeta, Manoel de Barros: “Antes que das coisas
celestiais./ Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as
soberbas coisas ínfimas.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
autonomia. Rio de janeiro: Paz e Terra. 2016
____________. Pedagogia da
Tolerância. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2013
____________. Pedagogia da
indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: paz e terr. 2000
(edição em PDF)
____________. Política e
Educação. São Paulo: Cortez.1995