domingo, janeiro 03, 2021

Libertar-se é morrer

 


Não fiz nada, bem sei, nem o farei,

Mas de não fazer nada isto tirei,

Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo.

Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos aos encontros do abandono

Sem verdade, sem dúvida nem dono.

Boa é a vida, mas melhor é o vinho.

O amor é bom, mas é melhor o sono.

Fernando Pessoa

 

A vida não é só o real, é mais o imaginado. Se a realidade sangra nos cotidianos, a verdade pulsa na literatura; à realidade escapa em versos. Sem ilusões a razão desatina, os sentidos amargam. A realidade é dura, nua, crua, e, tomada por verdade, desalenta. Decepção é tomar a realidade por verdade. A esperança se alimenta de fantasias. Sem ilusões, a existência, consciência de que viver é não realizar-se, é melancolia. Existir é imaginar. Toda pressa em ser e toda faina por ter, sem poesia seria apenas sacrifício e martírio.  Então diz o poeta: “Nesta vida, em que sou meu sono, não sou meu dono [...] E só me encontro quando de mim fujo” (Fernando Pessoa). E completa: “Tudo depende do que não existe. [...] Tudo é esperar à beira de uma estrada/A vinda sempre adiada.” Na vida “nada perdi”, por nada ter tido, na morte “tudo serei”...  Se a realidade reside na crônica, a verdade permeia a ficção. E, em versos, não diz o que por agora é, mas o como sempre tudo tem sido. A realidade nos sufoca de cotidianos enganos, a imaginação impede a razão de desatinos. Nem lá, nem cá, a verdade, é nas ilusões que ela se afirma. É morto que se está bem. Quando apenas se é, sem nada ter: morto “tudo serei”.  A vida é só metade do que a morte completa. Se existir é condenar-se a ser livre, vive-se para morrer: só a morte liberta. “Boa é a vida [...], mas é melhor o sono.”

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