quinta-feira, janeiro 07, 2021

EPIFANIA DE FIM DE TARDES

 

Era um início de tarde outonal. Um vento fresco, marítimo, bulia as copas das poucas árvores ao longo do calçamento. Um fio d’água corria o meio fio. A rua era parada. Ouve-se latidos distantes e uma canção de uma casa vizinha: Força Estranha, Gal Costa.

Pés esticados para fora da calçada, sentado com o corpo reclinado para trás e antebraços apoiados ao chão. Junto ao corpo um livro, páginas abertas viradas para o chão: “O homem que via o trem passar”, lia-se na capa. Com os olhos mirando o vasto céu, perseguindo o voo de andorinhas, o menino se entregava a devaneios. Sem aviso, mudou a posição do corpo. Encolheu as pernas, tomou o livro, marcando suas páginas com uma folha de Pata de Vaca, estendeu a cabeça para fora do portão. Passou a passear o olhar pelas casas, as poucas árvores na calçada, o movimento que o vento lhes imprimia, os carros estacionados. Seguiu um gato esgueirando um muro, entregou-se à água correndo o meio-fio. Expectativo, espichou o olhar a um ponto distante da rua.

Passado alguns intermináveis segundo, do ponto em que sua vista descansava, uma sombra foi surgindo, ganhando visibilidade e vindo em sua direção. A figura se aproximava preguiçosamente, ondulando forma e relevos, aromatizando o ar de sua colônia.

Passou pelo menino, shortinho, blusa casual, cabelo preso, um saco de pão, um litro de leite. Olhou-o sem esboçar percebê-lo, e foi sumindo até se apagar virando a esquina. Ainda durou um fugaz segundo o aroma de sua colônia. Passada sua epifania, o menino, tomou o livro, trancou o portão, entrou em casa. Era contentamento.

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