quarta-feira, outubro 05, 2016

LAURINDA




Sempre tive dificuldades com o erre. Bastava eu dizer qualquer coisa e começam as chateações. Por isso, evitava, quando criança, as outras crianças e mesmo os adultos. Na verdade, até hoje, procuro falar apenas o essencial e evito o quanto posso as reuniões sociais. As únicas que não me aporrinhavam eram vó Sabrina e tia Mercedes. Além de mim, tinha o Getulio de quem vó Sabrina cuidava. Ele quando nervoso gaguejava. E meus primos, principalmente o Ezequiel, faziam de tudo para deixá-lo nervoso.  Certa volta, a brincadeira ficou séria. Getulio lascou uma paulada no primo Ezequiel e foi uma confusão só. Tio Augusto, pai de Ezequiel, chegou a ameaçar a família de Getulio.  Vó Sabrina raiou, defendendo Getulio, fez tio Augusto pedir desculpas à família de Getulio. O fato é que depois de tudo Getulio e Ezequiel tornaram-se praticamente irmãos de sangue. Minha mãe eu vira apenas duas vezes. Na primeira vez ela chegou tarde da noite e passou um dia todo dentro de casa, espreitando, de quando em quando, as janelas, falando baixo. Na verdade ela sussurrava. Quando escureceu ela partiu. A segunda vez a vi apenas de longe, no cemitério, durante o enterro de vô Augusto. Como surgiu, desapareceu entre os arbustos. Ela mandava regularmente algum recurso para vó Sabrina em envelopes sem destinatário nem endereço. Pai, dizia vó Sabrina, “era homem bom, honesto, trabalhador: você é a cara dele”. Mas ela não sabia dizer ao certo o que havia acontecido. E tio Augusto e tia Marlene evitavam falar de seu desaparecimento. Certa feita, bisbilhotando um velho baú, encontrei um retrato que carrego comigo até hoje. Nele mãe e pai, ainda jovens, brindam rodeados de um grupo de amigos.

Getulio tinha duas irmãs, Marisa que já tinha quase dezoito anos e trabalhava com a mãe na fabrica de tecidos e Laurinda, que tinha minha idade e ficava aos cuidados de vó Sabrina. Como dizia, eu evitava falar e a maior parte do tempo preferia estar só, por isso quase não notava Laurinda.

Quando parti para os estudos na Capital. Laurinda abraçou-me demoradamente. Não fiz caso. Vó Sabrina também me abraçou demoradamente, parecia saber que seria seu último abraço. “Deixa disso, NhaNha”, disse -lhe, “daqui a pouco estou de volta”. Tia Marlene desfio um rosário de recomendações e tio Augusto também danou-se em conselhos...   

Assim, com um pouco mais de quinze anos, parentes de pai levavam-me para a Capital para dar continuidade aos estudos. Eles também evitavam falar de seu desaparecimento, uma de minhas tias paternas costumava culpar mãe por seus desaparecimentos. Terminado o colégio, ingressei no curso de Direito e comecei por conta própria a pesquisar sobre pai e mãe. Assim, da Capital fui para o Rio de Janeiro, dali para o Araguaia, França e Inglaterra. Aos poucos vou reconstruindo a história de pai e mãe. Recolhi razoável informação sobre eles, mas há ainda muitas lacunas que apenas a abertura de certos arquivos poderá completar. Mas quero tratar de meu retorno à Taquari.

A cidade é outra, quase não a reconheço. Não existe mais o coreto, o Chafariz, o pequeno córrego que cortava a praça. No lugar do cinema ergueram um grande Magazine e o Clube tornou-se condomínio. A antiga escola tornou-se secretaria de desenvolvimento e um novo prédio foi erguido onde, antes, o velho Raul criava porcos. Nossa casa também esta toda mudada. O quintal já não existe mais, nem as plantas que vó Sabrina tanto amava cultivar. Onde se corria, pulava e se esquentava fogo nas noites juninas dá, hoje, lugar à oficina de Ezequiel e duas pequenas lojas de variedades...

Na rodoviária, outra novidade, esperavam-me tio Augusto, tia Mercedes e Laurinda.

Afetuosamente, chegou-se para mim, abraçou-me um longo abraço, uma lágrima no rosto... Nunca havia prestado atenção em Laurinda. Se o tive feito, jamais teria deixado minha cidade sem ela.


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