Sempre tive dificuldades com
o erre. Bastava eu dizer qualquer coisa e começam as chateações. Por isso,
evitava, quando criança, as outras crianças e mesmo os adultos. Na verdade, até
hoje, procuro falar apenas o essencial e evito o quanto posso as reuniões
sociais. As únicas que não me aporrinhavam eram vó Sabrina e tia Mercedes. Além
de mim, tinha o Getulio de quem vó Sabrina cuidava. Ele quando nervoso
gaguejava. E meus primos, principalmente o Ezequiel, faziam de tudo para
deixá-lo nervoso. Certa volta, a
brincadeira ficou séria. Getulio lascou uma paulada no primo Ezequiel e foi uma
confusão só. Tio Augusto, pai de Ezequiel, chegou a ameaçar a família de
Getulio. Vó Sabrina raiou, defendendo
Getulio, fez tio Augusto pedir desculpas à família de Getulio. O fato é que
depois de tudo Getulio e Ezequiel tornaram-se praticamente irmãos de sangue.
Minha mãe eu vira apenas duas vezes. Na primeira vez ela chegou tarde da noite
e passou um dia todo dentro de casa, espreitando, de quando em quando, as
janelas, falando baixo. Na verdade ela sussurrava. Quando escureceu ela partiu.
A segunda vez a vi apenas de longe, no cemitério, durante o enterro de vô
Augusto. Como surgiu, desapareceu entre os arbustos. Ela mandava regularmente
algum recurso para vó Sabrina em envelopes sem destinatário nem endereço. Pai,
dizia vó Sabrina, “era homem bom, honesto, trabalhador: você é a cara dele”.
Mas ela não sabia dizer ao certo o que havia acontecido. E tio Augusto e tia
Marlene evitavam falar de seu desaparecimento. Certa feita, bisbilhotando um
velho baú, encontrei um retrato que carrego comigo até hoje. Nele mãe e pai,
ainda jovens, brindam rodeados de um grupo de amigos.
Getulio tinha duas irmãs,
Marisa que já tinha quase dezoito anos e trabalhava com a mãe na fabrica de
tecidos e Laurinda, que tinha minha idade e ficava aos cuidados de vó Sabrina.
Como dizia, eu evitava falar e a maior parte do tempo preferia estar só, por
isso quase não notava Laurinda.
Quando parti para os estudos
na Capital. Laurinda abraçou-me demoradamente. Não fiz caso. Vó Sabrina também
me abraçou demoradamente, parecia saber que seria seu último abraço. “Deixa
disso, NhaNha”, disse -lhe, “daqui a pouco estou de volta”. Tia Marlene desfio
um rosário de recomendações e tio Augusto também danou-se em conselhos...
Assim, com um pouco mais de
quinze anos, parentes de pai levavam-me para a Capital para dar continuidade
aos estudos. Eles também evitavam falar de seu desaparecimento, uma de minhas
tias paternas costumava culpar mãe por seus desaparecimentos. Terminado o
colégio, ingressei no curso de Direito e comecei por conta própria a pesquisar
sobre pai e mãe. Assim, da Capital fui para o Rio de Janeiro, dali para o
Araguaia, França e Inglaterra. Aos poucos vou reconstruindo a história de pai e
mãe. Recolhi razoável informação sobre eles, mas há ainda muitas lacunas que
apenas a abertura de certos arquivos poderá completar. Mas quero tratar de meu
retorno à Taquari.
A cidade é outra, quase não
a reconheço. Não existe mais o coreto, o Chafariz, o pequeno córrego que
cortava a praça. No lugar do cinema ergueram um grande Magazine e o Clube
tornou-se condomínio. A antiga escola tornou-se secretaria de desenvolvimento e
um novo prédio foi erguido onde, antes, o velho Raul criava porcos. Nossa casa
também esta toda mudada. O quintal já não existe mais, nem as plantas que vó
Sabrina tanto amava cultivar. Onde se corria, pulava e se esquentava fogo nas
noites juninas dá, hoje, lugar à oficina de Ezequiel e duas pequenas lojas de
variedades...
Na rodoviária, outra
novidade, esperavam-me tio Augusto, tia Mercedes e Laurinda.
Afetuosamente, chegou-se
para mim, abraçou-me um longo abraço, uma lágrima no rosto... Nunca havia
prestado atenção em Laurinda. Se o tive feito, jamais teria deixado minha
cidade sem ela.
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