domingo, outubro 30, 2016

CRÔNICA DE DOMINGO




“Eu vejo o futuro repetir o passado” Cazuza


O relógio o despertou às seis horas da manhã. Seis e trinta já se encontrava todo paramentado. A garoa fina que observava cair não o desanimou. Tomou um copo de suco verde, um preparo de couve, laranja e mel. Fez alongamento, flexionou o corpo, esquentou os músculos. Desceu os cinco andares saltitante. Os companheiros já o esperavam, combinaram o percurso e deram partida. Enquanto corria, organizava mentalmente a semana. Às oito horas já estava debaixo do chuveiro. Depois do banho, tomou um café, comeu pão integral com uma fatia de queijo, comeu uma fruta. Folheou o jornal, deteve-se ao artigo que escrevera. Ficou contente com a matéria, a edição pouco interviu no conteúdo. O telefone tocou. Atendeu. Saiu em seguida... Não voltou para o almoço como prometera. Não apareceu para acompanhar a rodada do brasileirão com os amigos... Seu corpo foi encontrado na madrugada de segunda feira. Estava nu. Seu artigo tatuava a pele. No Matinal, no espaço de sua coluna, um artigo sobre a importância do silêncio para uma vida longa...  

sábado, outubro 22, 2016

ÁGABO E AGATÃO


      Uma das versões do infortúnio do jovem Tirésias informa que o mesmo pastoreava próximo Uma das versões do infortúnio do jovem Tirésias informa que o mesmo pastoreava próximo às fontes de Hélicon, e sentindo sede Tirésias procurou deter-se a tomar água, para sua surpresa a deusa Atenas ali se banhava em companhia de Cáriclo, ninguém mais que a mãe de nosso jovem pastor. Tirésias, segundo o cronista da época, “sem querer, viu o que não é lícito ver”. Por tal motivo, o jovem pastor, de imediato, foi punido à perda da visão. Abaixo de rogos da mãe, Atenas, que nada podia fazer, pois não podia revogar a lei de Cronos: “quem observar um dos imortais sem que o próprio deus concorde, paga alto por tê-lo visto”, bem observou: “o ato, quando se cumpre, não é mais revogável”. Mas diante do sofrimento materno, para consolar sua bela companheira, Atenas concedeu ao jovem Tirésias um dom inimaginável. “Ó companheira!”, disse, complacente, a divina Atenas, “não te lamentes por isso; a ele, por teu favor, muitos outros prêmios estão, por mim, reservados: farei dele um adivinho digno de ser cantado pelas gerações futuras, de certo, ele será muito mais notável do que qualquer outro”. Tirésias habitou em Tebas e chegou a viver oito ou nove gerações, sendo o mais respeitado clarividente de toda mitologia grega.
Menos afortunado que Tirésias foi, na mitologia latina, a sorte de Acteon. Conta a lenda que o jovem caçador, criado pelo centauro Quíron, perdeu-se de seus companheiros de caça e se deparou próximo à fonte onde Diana e suas ninfas banhavam-se. As ninfas percebendo sua presença, “gritaram e correram para junto da deusa, tentando escondê-la”. E Diana, enfurecida, longe de suas flechas, pegou um pouco de água e jogou na cara de Acteon e disse: “Agora vai e conta, se puderes, que viste Diana desnuda”. O jovem caçador transformou-se em cervo e foi perseguido e sacrificado pelos cães de caça da deusa, que o consumiram enfurecidos... Dizem serem tais cães caçadores inadvertidos, também apanhados a contemplar Diana em suas abluções...
Tia tinha sua versão para Ágabo e Agatão.
Nós ainda não sabíamos o que era realejo. Vimos um acompanhando tia à cidade. Um senhor coxo e cego manipulava uma maquina emitindo uma alegre canção. Sobre tal máquina, uma gaiola com um periquito e uma gaveta com vários papeizinhos. Um grupo de curiosos rodeava o velho com sua curiosa engenhoca. Tia também se deteve, aproximou-se, tirou uma moeda do bolso e a depositou na máquina: “Vamos lá Agatão”, falando com o periquito, “minha fortuna”. O periquito retirou um dos papeizinhos da caixa e o depositou na mão estendida de tia. Tia tomou o papelzinho e o guardou seguro dentro do sutiã para que, em casa, a prima o lesse. A tarde não passava tal nossa curiosidade para saber o que dizia o papelzinho. As horas se estendiam intermináveis e a noite não caia.
Finalmente veio o momento esperado, vó cerzia umas camisas de tio, quando tia, engomando, começou: “Em remoto tempo, lá pelas bandas de Santa Luzia, contam, vivia certa Diana, benzedeira e parteira respeitada e temida, acreditavam ser feiticeira. Tal Diana, contam, tinha vistosa filha de nome estranho, não me recordo bem, mas me parece, Algama se chamava a filha de Diana. Contam que tal moçoila era costumada a buscar água finzinho de tarde no ribeirinho próximo. E que a tal costumava aproveitar para banha-se... Tinha pelas bandas de Santa Luzia dois irmãos muito abusados, dados a traquinagens e invencionices. Combinaram expiar a bela moça no ribeirinho e esconder-lhe as roupas, esperando ela voltar nua para casa. Então, Agatão e o irmão Ágabo, que puxava uma das pernas, procuraram atuar o planejado. Não sabiam os malandros o que os esperavam. E foi Ágabo quem assim a história me contou: “Descemos ao ribeirinho, eu e Agatão, para pregarmos uma peça na bela filha de Diana. Nós nos escondemos atrás de umas pedras e a esperamos desnudar-se. Mas, nada! Vimos foi a jovem tornar-se uma bela cotiara. Estupefatos com o que víamos, não demos conta da enorme coruja que nos alcançava. Desfaleci. Acordei já em casa, cego. Agatão ficou um tempo sumido. Um dia posou em meu ombro, neste periquito. De Diana e da filha nada mais soubemos. Lembro-me apenas de uns olhos enormes de coruja sobre nós e da bela cotiara serpenteando as águas do riachinho... ”
Tia tomou prima de lado para ler-lhe a sorte. Curiosos aguardávamos. Tia pôs-nos a dormir com severa reprimenda: “no desejo e na fortuna de outrem, quem o olhar lança a vista perde”. E vaticinou contra prima: “e tu, mocinha, se contares, rã serás.” Até hoje prima se faz de muda, quando tocamos no assunto...
“Ei Agatão! Minha fortuna.” Estendo ao velho Ágabo uma nota de cinco reais...        

terça-feira, outubro 18, 2016

SOBRE EDUCAÇÃO

Eu acredito seriamente que apenas a EDUCAÇÃO nos fará uma nação autônoma. Mas não descuido em pensar que os que receberam as melhores oportunidades de ensino e que estudaram nas melhores escolas e universidades são os que mais   facilmente se tornam reacionários, defendem o Estado mínimo, mas se locupletam da corrupção e dos programas de governo que favorecem o sistema financeiro  e defendem com naturalidade o regime de exceção, o desmonte do Estado Brasileiro, o interrompimento das políticas de inclusão social, principalmente as de acesso à educação. Só a EDUCAÇÃO nos salva, mas quem as merece ter? Na acepção dos que ora usurpam o poder político, com o beneplácito apoio dos batedores de panela,  apenas os que podem pagar. A Educação que os "bem formados" pregam aos filhos dos trabalhadores é a eficiência. O trabalhador não precisa saber, não precisa pensar, refletir, se manifestar, questionar, precisa apenas desenvolver habilidades e competências que o torne eficiente e consumível. Para tanto, não é necessário se investir em educação, na valorização e formação de professorado... Na verdade, para os bem educados, que amam o verde-amarelo de nossa bandeira, investir em EDUCAÇÃO é gasto. Só a EDUCAÇÃO torna os homens autônomos, mas o que oferecem ao filho do trabalhador é a quimera de que ele também é consumidor... Os bem formados dessa nação, em geral, são fascistas. A EDUCAÇÃO também produz monstros, mas acredito que ela nos é a saída contra a egolatria de nossa tacanha elite diplomada...

domingo, outubro 16, 2016

O INCRÍVEL HOMEM DE DOMINGO


Acorda no rotineiro horário de todos os dias, mas concede-se um tempo a mais na cama. Pode contemplar o sono confiante da companheira. Percebe com satisfação os sinais de uma longa vida juntos. Uma lembrança de tempos remotos invade-lhe e o apraz. “Estamos envelhecendo”, pensa. Levanta, lava o rosto, escova os dentes, ajusta os cabelos. Circula pela casa e percebe que apenas o mais moço dormiu em casa. Prepara o café, folheia o matinal, liga a televisão, abre a porta recepcionando o efusivo Banzé, um vira-latazinho amarelado. Fazem festa, prepara-lhe a ração: “Vamos tomar um banho, rapazinho!” O animal parece entender; murcha as orelhas, baixa o olhar. Troca o pijama por um conjunto de moletom surrado. Vai à feira, encontra antigos companheiros, cumprimenta-os com cordialidade, com um ou outro estende um pouco mais a conversa, faz as compras da semana, nota a variação dos preços, come pastel, toma caldo de cana. Já em casa, encontra a companheira no banho, saúda-a com um selinho, evitando se molhar. Por jogo a companheira lhe faz respigar água da ducha. “Comprou tomates para o molho?” “Sim!” Prepara o banho de Banzé que se esconde atrás da maquina de lavar. Não o poupa, e contra sua vontade o joga na banheira... Agora cuida do carro, ouvindo Tim Maia, Tom Zé, Maysa... A companheira lhe trás suco, biscoitos, comenta algo acerca do mais velho: a família deve crescer... Ajustado o carro, toma banho, socorre na cozinha, limpando a louça, picando alho, cebola, beliscando o bacon dourando... Almoçam, a futura nora anuncia a vinda de Gusthavo ou Lhaila, brindam... Agora tira uma soneca, acompanhado de Banzé... O mais moço anuncia estar indo ao Shopping com os amigos... Acompanha o futebol na televisão, discute com os comentaristas, “quanta asneira numa só frase!” A companheira ri, meneando a cabeça: “não te ouvem!”... O domingo vai minguando, prepara um lanche rápido para si e para a companheira, tomam vinho. Ele lê para ela versos de Hilda Hilst, assistem um documentário sobre a Revolução Cubana... O mais moço anuncia estar em casa. O mais velho chega logo em seguida. A companheira corre a casa verificando portas e janelas, apagando as luzes... Prepara as coisas para a semana... Ele já deitado, espera a razão de seu ser, folheando um livro. Acolhe-a junto a si. Abraça-a ternamente, desejando uma boa noite e: “sonhos comigo!”. A companheira repousa a cabeça sobre seu ombro: “vencemos mais um domingo!”       

sábado, outubro 15, 2016

DAS DING




As alucinações visuais são frequentes nas histéricas mas podem, de fato, aparecer em qualquer estrutura clinica (neurose, psicose e perversão). Elas são como o sonho: representações inconscientes que, de repente, se acendem de desejo e se imaginarizam no mundo sensível do sujeito. Elas brilham de libido. (Antonio Quinet)


Meus fantasmas aparecem-me nas horas menos oportunas. Quando menos estou preparado, eis que de uma pagina de livro, salta-me Euripides dos Santos e sua melancólica sabedoria. Rodner Lúcio tinha o hábito de aparecer-me no meio da aula, reprovando-me, meneando a cabeça e levando as mãos à cabeça como se eu dissesse algum absurdo. Talvez dele eu tenha me livrado. Leopoldo gosta de atrapalhar-me em meus relacionamentos amorosos. Christine Ramos, uma flor em meu jardim, recita-me Adélia Prado, Hilda Hilst, Marguerite Yourcenar.
Desço à padaria, peço pão com manteiga na chapa, café puro, sem açúcar. E, enquanto aguardo, acompanho o noticiário na televisão afixada um pouco acima de minha cabeça. Espero por Mirandha, marcamos de ir à Capital, ela quer visitar uma exposição no MASP e convidou-me para acompanha-la.
O inconfundível aroma de loção de amêndoas anuncia sua chegada, atraindo meu olhar para a entrada da padaria. Das Ding a acompanha. Mirandha acena, sorri-me e vem a meu encontro, eu, indo a seu encontro, acolho-a em um abraço caloroso, beijo-a amigavelmente, atenho o olhar ao volume e ao regaço de seus seios acomodados em um top cavado azul turquesa, sob uma camisa transparente, desabotoada e amarrada na cintura. A calça legging preta, bem ajustada ao corpo, evidencia o “pacote”, como dizem os amigos. Desvio o olhar para seu sorriso. Digo-lhe amenidades, ofereço-lhe me acompanhar no matinal... Meus olhos voltam ao “pacote” e à fenda levemente anunciada. Dali, Das Ding sorri-me.
Das Ding não é, propriamente um fantasma, é um resquício, uma lembrança arcaica, uma silhueta terna, com halito de hortelã e um sorriso inibidor e provocativo ao mesmo tempo. Apresenta-se sempre sensual, atrai-me para o insinuado: o regaço, a fenda. Das Ding é desdobro do desejo (no) outro, inibe-me, retrai-me, desconcerta-me, instiga-me. Sorri-me.
Procuro desviar o olhar, correndo-o à televisão, mas ele escorrega ao olhar verde mar de Mirandha, à fenda. Mirandha parece perceber, move com sutileza a bolsa tiracolo cobrindo-se. Esboço um sorriso confuso. Tergiverso sob as expectativas do dia. Ela Sorri-me. Escorrego o olhar para o regaço dos seios.
Tomamos o café e tento acompanhar Mirandha explicando-me uma situação embaraçosa que se metera. Depois, fala-me de Michelangelo, motivo de nossa visita ao MASP, com entusiasmo e familiaridade.  Entre nós, Das Ding evoca memórias remotas, embebidas de fantasia.
Quando criança mãe costumava me levar com ela para o banho. Tinha medo que eu, só, me acidentasse. Eu brincava com seus óleos e shampoos enquanto ela massageava os seios, o clitóris; corria a navalha pela pele... Então, ela untava-se de uma loção de um aroma suave de rosas, tomava-me no colo e dava-me de mamar... Não sei se isso ocorria de fato, mas é assim que recordo... Das Ding cheira a rosa.
Eu e Mirandha deixamos a padaria e tomamos o trem. Animada, Miranda fala-me de seu curso de esteticismo, de técnicas de limpeza de pele, de depilação... Eu procuro acompanha-la, dissimulo mal, estou preso ao regaço de seus seios, ao “pacote”, à fenda, à Das Ding sorrindo-me brejeira.
O perfume de mãe invade o trem e convoca-me Martha, minha irmã. Eu tinha nove, dez anos, ela doze ou treze. Martha vestia-se com as peças de mãe e desfilava pela casa dando ordem como mãe. Desde que ela sangrou, mãe vetou-nos o banho juntos... Mãe pegou-me observando Martha pela fresta da porta... Martha tirava as peças como mãe e corria a navalha pelo corpo e se massageava parecendo saber observada... Pai castigou-me de cinta e proibiu-me sobremesa uma semana... Martha esperava tudo se aquietar, vinha deitar-se comigo, deixava-me sentir seus escassos pelos e massagea-la por baixo da coberta. Das Ding sorri-me e diz que “o desejo produz memória de coisas que nunca ocorreram, produz sombra de sombra, um episódico em cerca de gozo, sombra sem objeto”...
Durante o passeio, que muito agradou Mirandha, comemos pizza, pastel, sorvete, doces. Tomamos cerveja, café, licores. Andamos pela Paulista, fomos ao cinema.
Tudo memórias revestidas de sensualidade. Mirandha, suas formas, sua voz, seu sorriso, provocava-me, evocando-me cheiros, sabores, acalantos remotos e incertos... Produzia-me inquietação e desconforto. No fim da noite, despedi-me de Mirandha, tomando vinho, relembrando a jornada, comentando detalhes do filme, da exposição, de uma ou outra cena que capturamos na Paulista.
Das Ding evanesceu sem que eu a apreendesse. Mirandha sorria-me, eu era melancolia: o olhar preso à fenda de sua vulva e ao inconfundível aroma de hortelã misturado a óleo de coco, que as mulheres de minha família costumavam usar após o banho...
De meus fantasmas, Das Ding é lembrança de coisas que não vivi...  


quinta-feira, outubro 13, 2016

BRIGITTE BARDOT



Fora apenas uma alucinação... Olhos verdes claros, pele rosada, cabelos castanhos, lisos, escorridos, lábios finos, sorriso tímido, seios pequenos... Fora apenas alucinação, um sonho talvez.
Era uma manhã fria de terça-feira. Acordei nauseado. Levantei-me. Tomei um banho rápido. Vesti-me sem pressa. Liguei o radio. No lugar do café, tomei dois copos seguidos de conhaque. Abri a janela, a brisa úmida e fria bafejou-me o rosto. Não se via a cidade coberta pela névoa...
Brigitte era um sonho, a aluna exemplar. Tímida, sentava na primeira fileira, terceira carteira. Aplicada nos estudos, falava apenas o necessário... Brigitte era um sonho realizando-se...
Eu, de fato, não me sentia acordado. O banho, o conhaque no lugar do café, a manhã fria tomada de nevoeiro, não me era real. Brigitte não era real... Acendi um cigarro, acompanhava o noticiário, folheando uma revista tomada por acaso. Tomei outro conhaque...
Não era Brigitte naquele vestido curto, colado ao corpo, os seios saltando ao decote... Era uma alucinação, um sonho: “Professor, eu te quero em mim. Todo dentro de mim”... Brigitte a aluna perfeita, sorrindo-me, tragando de meu cigarro... Tomei outro conhaque, fumei outro cigarro... O corpo alvo, quente e perfumado de Brigitte pulsava sobre mim, a menina tímida dizia coisas obscenas em meus ouvidos; seus lábios, doces lábios, roçavam meu corpo, sugavam-me...
Brigitte não era real, sua voz chamando-me para o quarto “vem, volta pra cama, vamos brincar mais um pouco”, não era real...
Ouvi um estrondo, antes que eu reagisse, a porta veio abaixo... Dois policiais empunhando suas armas: “onde está a menina? A menina, onde está a menina?”
Não soube o que responder. Não entendia o que eles perguntavam...
Eu alucinava...
“A menina, a menina, a menina???”...
Aquele corpo nu, frio, plastificado... Não, não era Brigitte. Não era Brigitte...

*****

“Na manhã desta terça-feira, a polícia recuperou uma boneca de manipulação do Centro de Estudos Aplicados ao Esporte (CEAE), que estava desaparecida desde a última quinta-feira. Chamada “Menina” pelos acadêmicos do CEAE, a boneca foi encontrada em poder do professor Adhimanto Couto, titular do curso de Antropologia e Cultura do Esporte, em um quarto de motel. Em depoimento à polícia, o professor apenas perguntou por uma certa Brigitte Bardot, segundo ele uma sua aluna. Mas a direção do CEAE informou não haver nenhuma aluna matriculada com o correspondente nome.” (24 de maio de 2011, Diário da Manhã)       

quarta-feira, outubro 05, 2016

LAURINDA




Sempre tive dificuldades com o erre. Bastava eu dizer qualquer coisa e começam as chateações. Por isso, evitava, quando criança, as outras crianças e mesmo os adultos. Na verdade, até hoje, procuro falar apenas o essencial e evito o quanto posso as reuniões sociais. As únicas que não me aporrinhavam eram vó Sabrina e tia Mercedes. Além de mim, tinha o Getulio de quem vó Sabrina cuidava. Ele quando nervoso gaguejava. E meus primos, principalmente o Ezequiel, faziam de tudo para deixá-lo nervoso.  Certa volta, a brincadeira ficou séria. Getulio lascou uma paulada no primo Ezequiel e foi uma confusão só. Tio Augusto, pai de Ezequiel, chegou a ameaçar a família de Getulio.  Vó Sabrina raiou, defendendo Getulio, fez tio Augusto pedir desculpas à família de Getulio. O fato é que depois de tudo Getulio e Ezequiel tornaram-se praticamente irmãos de sangue. Minha mãe eu vira apenas duas vezes. Na primeira vez ela chegou tarde da noite e passou um dia todo dentro de casa, espreitando, de quando em quando, as janelas, falando baixo. Na verdade ela sussurrava. Quando escureceu ela partiu. A segunda vez a vi apenas de longe, no cemitério, durante o enterro de vô Augusto. Como surgiu, desapareceu entre os arbustos. Ela mandava regularmente algum recurso para vó Sabrina em envelopes sem destinatário nem endereço. Pai, dizia vó Sabrina, “era homem bom, honesto, trabalhador: você é a cara dele”. Mas ela não sabia dizer ao certo o que havia acontecido. E tio Augusto e tia Marlene evitavam falar de seu desaparecimento. Certa feita, bisbilhotando um velho baú, encontrei um retrato que carrego comigo até hoje. Nele mãe e pai, ainda jovens, brindam rodeados de um grupo de amigos.

Getulio tinha duas irmãs, Marisa que já tinha quase dezoito anos e trabalhava com a mãe na fabrica de tecidos e Laurinda, que tinha minha idade e ficava aos cuidados de vó Sabrina. Como dizia, eu evitava falar e a maior parte do tempo preferia estar só, por isso quase não notava Laurinda.

Quando parti para os estudos na Capital. Laurinda abraçou-me demoradamente. Não fiz caso. Vó Sabrina também me abraçou demoradamente, parecia saber que seria seu último abraço. “Deixa disso, NhaNha”, disse -lhe, “daqui a pouco estou de volta”. Tia Marlene desfio um rosário de recomendações e tio Augusto também danou-se em conselhos...   

Assim, com um pouco mais de quinze anos, parentes de pai levavam-me para a Capital para dar continuidade aos estudos. Eles também evitavam falar de seu desaparecimento, uma de minhas tias paternas costumava culpar mãe por seus desaparecimentos. Terminado o colégio, ingressei no curso de Direito e comecei por conta própria a pesquisar sobre pai e mãe. Assim, da Capital fui para o Rio de Janeiro, dali para o Araguaia, França e Inglaterra. Aos poucos vou reconstruindo a história de pai e mãe. Recolhi razoável informação sobre eles, mas há ainda muitas lacunas que apenas a abertura de certos arquivos poderá completar. Mas quero tratar de meu retorno à Taquari.

A cidade é outra, quase não a reconheço. Não existe mais o coreto, o Chafariz, o pequeno córrego que cortava a praça. No lugar do cinema ergueram um grande Magazine e o Clube tornou-se condomínio. A antiga escola tornou-se secretaria de desenvolvimento e um novo prédio foi erguido onde, antes, o velho Raul criava porcos. Nossa casa também esta toda mudada. O quintal já não existe mais, nem as plantas que vó Sabrina tanto amava cultivar. Onde se corria, pulava e se esquentava fogo nas noites juninas dá, hoje, lugar à oficina de Ezequiel e duas pequenas lojas de variedades...

Na rodoviária, outra novidade, esperavam-me tio Augusto, tia Mercedes e Laurinda.

Afetuosamente, chegou-se para mim, abraçou-me um longo abraço, uma lágrima no rosto... Nunca havia prestado atenção em Laurinda. Se o tive feito, jamais teria deixado minha cidade sem ela.


NON DUCO, DUCOR


Nós não queremos o incomodo da ação, sempre incerta em seus resultados. Nós queremos a ilusão de que as coisas ou “são assim mesmo” ou “se ajeitam”. Não queremos revoluções, queremos um lugar à mesa do patrão, do senhor, queremos de suas migalhas. A ação é sempre incerta, ao fim podemos perder o pouco que não temos, é melhor sermos tangidos contando com a graça de Deus. Nosso salário é pouco, mas o senhor sempre nos oferta os sapatos gastos de seus filhos e os brinquedos que eles já não querem mais. Nosso alimento é pouco, mas a boa senhora nos permite trazer as sobras de sua mesa. Temos a inquebrantavel paciência da espera diária por um transporte que nos conduz como gados. Sonhamos no aperto da lotação, do trem, do metrô, com nosso carro, por isso somos solidários ao sofrimento de nossos senhores que não podem reduzir a velocidade de seus carros e ceder espaço a pedestres e ciclitas. Nós não queremos o incomodo e as incertezas da ação, queremos assistir nossa novela, nosso futebol, nossos programas de auditóro e acreditar que não importa quem nos governa, desde que nos prometa que amanhã, amanhã, nossas escolas serão como as escolas de seus filhos e que seremos empreendedores: donos de algo que nunca foi nosso, a força de nosso trabalho... Gostamos de pessoas que dizem: “farei por você, não se preocupe!” Não gostamos de quem nos convida a participar a “fazer juntos”, não queremos o incomodo de decidir, queremos a promessa de ter, mesmo que nos seja tirado. Queremos ser tangidos, não conduzir.

segunda-feira, outubro 03, 2016

RESSACA ELEITORAL


Os resultados das urnas me descorçoaram, tinha algum alento, uma breve expectativa de um outro resultado. Estou tépido. Resolvi pensar e escrever coisas vãs, dar vazão a coisas fúteis, banais, dedicar-me ao frugal ao erótico, ao sensual da vida. Abdico de qualquer interesse pela política, pelo justo, pelo direito, por qualquer coisa que vislumbre o humano no homem. Que viva a barbárie econômica, o pragmatismo utilitarista, o individualismo, o consumo de si mesmo acreditando-se consumidor de direitos. Se é fato que “há uma intima relação entre sexo, amor e morte”, renuncio ao pouco amor, ao pouco interesse que tinha pela vida. Viver nunca me preencheu, politicamente me declaro morto. Vou esperar que a prometida noiva, a que nos conduz ao mundo das sombras, venha a mim com seus lábios frios, e enquanto não se dá nosso laço eterno, serei frugal e usarei minha língua apenas entre pernas, onde é doce morrer .  

sábado, outubro 01, 2016

PARÁBOLA DO BOM ATEU*


Reunidos à multidão, os chefes dos pastores, dos padres e dos doutrinadores das mais diversas Igrejas, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntaram: “Senhor, que devemos fazer para receber em herança a vida eterna?”
Jesus lhes disse: “O que está escrito na Lei? Como lês?”
Unanimes, responderam: “Ensinarás a Boa Nova, sem subterfúgio, sem interesses mesquinhos, sem proselitismo, batizando aqueles que crerem”
Jesus lhes disse: “respondestes corretamente.” Fazei isso e vivereis.”
Então interrogaram Jesus: “E quem não crer?” Devemos espancar?”
Jesus respondeu com a seguinte parábola: “Certo homem, que voltava de ‘seus trabalhos’, caiu nas mãos de assaltantes. Estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no, e foram-se embora deixando-o quase morto. Por acaso, um padre estava descendo por aquele caminho. Quando viu o homem, seguiu adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um pastor: chegou ao lugar, viu o homem e seguiu adiante, pelo outro lado. E outro pastor, ainda, passando, desviou o olhar, esconjurando o homem caído. Mas um ateu que pelo mesmo caminho passava, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, cuidou dele e o ajudou a chegar em casa. No dia seguinte, passou por sua casa para saber se ele e a família estavam bem.
Terminada a parábola, Jesus perguntou: “Para vocês que chamam-me Senhor, qual dos homens cumpriu a BOA NOVA, para com o homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”

Os chefes dos pastores, dos sacerdotes e dos doutrinadores de todas as Igrejas foram concordes: “Aquele que não o julgou por sua crença e usou de solidariedade para com ele.”

Então Jesus lhes disse: “Este é o princípio da Boa Nova. Ide e fazei a mesma coisa. Não há Boa Nova sem misericórdia e compaixão.

* Poderia ser do “Bom Pai de Santo, do Bom Gay, Do Bom Budista, do Bom Mulçumano, do Bom Cristão...