Meus
fantasmas aparecem-me nas horas menos oportunas. Quando menos estou preparado,
eis que de uma pagina de livro, salta-me Euripides dos Santos e sua melancólica
sabedoria. Rodner Lúcio tinha o hábito de aparecer-me no meio da aula,
reprovando-me, meneando a cabeça e levando as mãos à cabeça como se eu dissesse
algum absurdo. Talvez dele eu tenha me livrado. Leopoldo gosta de atrapalhar-me
em meus relacionamentos amorosos. Christine Ramos, uma flor em meu jardim,
recita-me Adélia Prado, Hilda Hilst, Marguerite Yourcenar.
Desço
à padaria, peço pão com manteiga na chapa, café puro, sem açúcar. E, enquanto
aguardo, acompanho o noticiário na televisão afixada um pouco acima de minha
cabeça. Espero por Mirandha, marcamos de ir à Capital, ela quer visitar uma
exposição no MASP e convidou-me para acompanha-la.
O
inconfundível aroma de loção de amêndoas anuncia sua chegada, atraindo meu
olhar para a entrada da padaria. Das Ding a acompanha. Mirandha acena, sorri-me
e vem a meu encontro, eu, indo a seu encontro, acolho-a em um abraço caloroso,
beijo-a amigavelmente, atenho o olhar ao volume e ao regaço de seus seios
acomodados em um top cavado azul turquesa, sob uma camisa transparente,
desabotoada e amarrada na cintura. A calça legging preta, bem ajustada ao
corpo, evidencia o “pacote”, como dizem os amigos. Desvio o olhar para seu
sorriso. Digo-lhe amenidades, ofereço-lhe me acompanhar no matinal... Meus
olhos voltam ao “pacote” e à fenda levemente anunciada. Dali, Das Ding sorri-me.
Das
Ding não é, propriamente um fantasma, é um resquício, uma lembrança arcaica,
uma silhueta terna, com halito de hortelã e um sorriso inibidor e provocativo
ao mesmo tempo. Apresenta-se sempre sensual, atrai-me para o insinuado: o
regaço, a fenda. Das Ding é desdobro do desejo (no) outro, inibe-me, retrai-me,
desconcerta-me, instiga-me. Sorri-me.
Procuro
desviar o olhar, correndo-o à televisão, mas ele escorrega ao olhar verde mar de
Mirandha, à fenda. Mirandha parece perceber, move com sutileza a bolsa tiracolo
cobrindo-se. Esboço um sorriso confuso. Tergiverso sob as expectativas do dia.
Ela Sorri-me. Escorrego o olhar para o regaço dos seios.
Tomamos
o café e tento acompanhar Mirandha explicando-me uma situação embaraçosa que se
metera. Depois, fala-me de Michelangelo, motivo de nossa visita ao MASP, com
entusiasmo e familiaridade. Entre nós,
Das Ding evoca memórias remotas, embebidas de fantasia.
Quando
criança mãe costumava me levar com ela para o banho. Tinha medo que eu, só, me
acidentasse. Eu brincava com seus óleos e shampoos enquanto ela massageava os
seios, o clitóris; corria a navalha pela pele... Então, ela untava-se de uma
loção de um aroma suave de rosas, tomava-me no colo e dava-me de mamar... Não
sei se isso ocorria de fato, mas é assim que recordo... Das Ding cheira a rosa.
Eu
e Mirandha deixamos a padaria e tomamos o trem. Animada, Miranda fala-me de seu
curso de esteticismo, de técnicas de limpeza de pele, de depilação... Eu procuro
acompanha-la, dissimulo mal, estou preso ao regaço de seus seios, ao “pacote”, à
fenda, à Das Ding sorrindo-me brejeira.
O
perfume de mãe invade o trem e convoca-me Martha, minha irmã. Eu tinha nove,
dez anos, ela doze ou treze. Martha vestia-se com as peças de mãe e desfilava
pela casa dando ordem como mãe. Desde que ela sangrou, mãe vetou-nos o banho
juntos... Mãe pegou-me observando Martha pela fresta da porta... Martha tirava
as peças como mãe e corria a navalha pelo corpo e se massageava parecendo saber
observada... Pai castigou-me de cinta e proibiu-me sobremesa uma semana...
Martha esperava tudo se aquietar, vinha deitar-se comigo, deixava-me sentir
seus escassos pelos e massagea-la por baixo da coberta. Das Ding sorri-me e diz
que “o desejo produz memória de coisas que nunca ocorreram, produz sombra de
sombra, um episódico em cerca de gozo, sombra sem objeto”...
Durante
o passeio, que muito agradou Mirandha, comemos pizza, pastel, sorvete, doces. Tomamos
cerveja, café, licores. Andamos pela Paulista, fomos ao cinema.
Tudo
memórias revestidas de sensualidade. Mirandha, suas formas, sua voz, seu
sorriso, provocava-me, evocando-me cheiros, sabores, acalantos remotos e
incertos... Produzia-me inquietação e desconforto. No fim da noite, despedi-me
de Mirandha, tomando vinho, relembrando a jornada, comentando detalhes do
filme, da exposição, de uma ou outra cena que capturamos na Paulista.
Das
Ding evanesceu sem que eu a apreendesse. Mirandha sorria-me, eu era melancolia:
o olhar preso à fenda de sua vulva e ao inconfundível aroma de hortelã misturado
a óleo de coco, que as mulheres de minha família costumavam usar após o banho...
De
meus fantasmas, Das Ding é lembrança de coisas que não vivi...