segunda-feira, maio 31, 2021

NOSSO CHEIRO NATURAL

 


Minha professora de história repetia ao fim de cada aula: "leiam o jornal, saber o que acontece hoje é também história". E eu lia. Lia a coluna policial e a coluna social. Vez ou outra lia a coluna de esportes. Colocadas lado a lado, coluna policial e coluna social ilustravam a Belíndia, termo criado pelo economista Edmar Bacha para apontar o fosso que separa o diminuto grupo de pessoas cujo padrão de vida é elevado da massa de pessoas que vivem em extrema pobreza.  Na coluna policial se escorria o sangue da massa preta e pobre, na coluna social se exalava o aroma e o perfume das madamas e homens de negócio, que uma colunista batizou: “Massa cheirosa”. “O perfume – dizia um amigo – é um dissimulante. Sobre nosso cheiro natural impostamos as fragrâncias de rosas, jasmins..., mas no fundo cheiramos mal”. O cheiro natural dessa “massa cheirosa” que ilustra as colunas sociais é a do sangue que se derrama nas colunas policiais. Sob o agradável cheiro das madamas e dos cavalheiros encerra o odor do sofrimento, da exploração, da expropriação de vidas expostas à miséria.  E os jornalões nunca dissimularam de que lado da história estão, e não pode ser diverso. São os cheirosos que os mantém. A massa preta e pobre não os lê, os usa para atiçar o fogo da lenha, parra forrar o chão e cobrir-se em noites frias. Então, não há novidade se não mancheteiam ou noticiam as manifestações contra nosso genocídio.   Aos jornalões interessa apenas nosso sangue escorrendo em suas páginas policiais. A nossa luta, a nossa resistência, a nossa mobilização tira a tranquilidade do domingo dos cheirosos, então é melhor não da-la. Mas não importa, que os jornalões nos desconsidere, nunca contamos com eles. Ignorar que existimos, não nos faz deixar de existir nem de resistir. No passado, contra os jornalões e seus senhores, tínhamos os mimeógrafos, hoje temos as redes sociais. Se o cheiro natural das massas cheirosas é o de nosso sangue em suas mãos, o nosso cheiro natural é o de nossa luta, organizando-a, ele há de se espalhar. E nosso cheiro não será manchete, será história que nós mesmos haveremos de contar. Contra o silêncio dos covardes, não nos acovardemos: FORA GENOCIDAS!!!

terça-feira, maio 25, 2021

A IGNORÂNCIA SOBRE MOTOS

 

É atribuído a Sócrates o seguinte dito: “a origem do mal é a ignorância”. E segundo dizem, Platão concluiu: “logo, sabendo onde o mal está, o mal não nos atinge!” A ignorância tem duas acepções: 1) não saber algo. E não saber não é um problema, é uma condição. Sabemos não saber muitas coisas. E sabendo não saber, procuramos saber. Disto conclui Aristóteles que é próprio do humano querer saber. 2) não fazer caso, desdenhar do que sabe. O desdém com o conhecimento, com o saber produzido sob algo é pernicioso. É neste sentido que a ignorância é um mal. Um exemplo disto é sabermos que a realidade presente exige cuidados específicos: manter distanciamento social, higienizar as mãos com frequência, usar mascaras, evitar aglomerações, etc. Quando ignoramos, por não querer fazer caso, destas prescrições estamos colocando em risco a nós mesmos e aos que nos rodeiam. Na acepção do não saber algo, ao mal que desta ignorância resulta chamamos erro, acidente. Eu não sabia que não se joga água no óleo quente, me queimei: foi um acidente. Na acepção do desdenhar o que se sabe, elegemos Jair Bolsonaro. Nós não ignorávamos o que ele era, só não fizemos caso. Elegemos um ignorante, num sentido abjeto: um tipo bruto, inconsequente, maléfico. Bolsonaro ignora, desdenha, não faz caso, que não deve aglomerar, que deve usar máscara, que deve manter o distanciamento social, que deve incentivar e promover, o quanto antes, a vacinação da população. Este desdém não produz erro, ou acidente, produz centenas de infecções e mortes que poderiam ser evitadas. De maneira sistemática, Jair Bolsonaro não exprime desejo de saber e sua ignorância é abjeta e criminosa. No domingo sua ignorância desfilou de moto pelas ruas do Rio e promete repetir-se em São Paulo, quando especialistas indicam uma terceira onda de Covid-19 entre nós. Até quando permitiremos que tal ignorância estenda seus malefícios entre nós? Até quando veremos pessoas bem formadas, mas ignorantes, aplaudindo e dando corpo a tamanha monstruosidade?

 

segunda-feira, maio 24, 2021

COITO INTERROMPIDO

 

A faca sorri-me

e se me insinua

lisonjeira

Minhas mãos

a acaricia sem pudor

e brinca com o fio

de sua lâmina

como quem

prelimina

Toma de seu cabo

com firmeza

e a faz dançar no ar

A faca ri-me

Ri-me

Ri-me

Sussurra-me

ao pé do ouvido

coisas indizíveis

Suave desce à garganta

a jugular em frêmito

a anseia

penetrando-a

fria e firme

A leiteira rompe

a apitar

Frustrada a faca  

Corta o pão e

lhe espalha manteiga

“Há de haver outra ocasião”

Confidencia-me

domingo, maio 23, 2021

NOSSO TEMPO

 


 In memória de Aluísio Barbosa Nunes

 

São raras as manhãs de sol

breves manhãs

de alaridos de pássaros

e crianças em algazarra

horas que se esgotam

em segundos

entregues

às flores

e à poesia

Sem que haja tarde

para passeios

e conversas com os amigos

Súbito nos invade a noite

vazia de lua, de estrelas

de beijos lascivos

se estendendo sombria

carregada de suspeitas

e receios de

no dia seguinte

estarmos sós e tristes

As manhã de sol chegam já despedidas

Em noticias frias

 de amigos que partiram

no acumulo de vidas perdidas

Vamos ao leito desejando

não haver outro dia.

sexta-feira, maio 21, 2021

Congestionamento


 

JB


Na bizarra Naniquez apareceu uma fera, ainda não vista, a atacar as pessoas, provocando apreensão a todos.  Como a fera era desconhecida e não se sabia bem como capturá-las, os caçadores testavam às cegas armadilhas e recomendaram prudência, orientavam os naniquenses evitarem saírem, e, precisando, andarem protegidos. Não havia certezas, mas pedras e paus impediam o avanço da fera. JB, desdenhava do perigo, era capitão formado, não seria uma “ferazinha” que o impediria de seguir seus afazeres. “Paus e pedras, bobagem”, dizia, e emendava: “coisa de gente trocha, de idiotas”. Começou a circular que água benta matava a fera, que ela era coisa de um grande demônio vermelho. A princípio, anunciou-se que se devia usar água benta quando a fera atacasse. Os resultados, no entanto, não foram promissores. A fera era impiedosa. Depois, passou-se a dizer que se devia, preventivamente, banhar duas vezes por dia em água de cheiro. Entre padres e pastores houve controvérsias. Uns achavam que era charlatanismo, outros, um tanto quanto estultos, defendiam cegamente o uso e aconselhavam um combo: água benta, água de cheiro e óleo ungido.  JB era entusiasta da ideia, e não perdia oportunidade em recomendar: “Deixem de ser frouxos e ficarem trancados dentro de casa, procurem um padre, um pastor, um benzedor, é vida que segue. A fera vai comer alguns? Vai! Acontece!” Os caçadores insistiam: era preciso evitar sair sem motivo, e precisando, manter pedras e paus a disposição. Não impedia a fera de atacar, mas a atrasavam. Os caçadores anunciavam já ter uma armadilha eficaz, não mataria a fera, mas a colocaria sobre controle. JB mostrava-se reticente, para ele a solução já estava dada: “água benta, três banhos ao dia! Era só consultar o Malafalsa.” Quanto mais os caçadores recomendavam acolhimento e padres e pastores bem formados combatiam as teses da água benta, já provado que não passava de crendice, mais JB os atacava. Dizia que os caçadores queriam apenas vender jaulas e os padres e pastores que negavam as propriedades protetivas da água benta estavam mancomunados com os interesses do grande demônio vermelho. E para provar sua tese promovia marchas pelos povoados de Naniquez e tripudiava dos que seguiam as orientações de caçadores, padres e pastores lúcidos. Ademais, de toda parte chegavam noticias de que as armadilhas, de fato, continham a fera, mas era preciso, mesmo assim, por algum tempo, não baixar guarda e continuar armando-se de pedras e paus e evitar aglomerações sem motivo. A fera, se sabia, desde seu surgimento, atacava em multidões. Mas à frente de Naniquez estava JB. E a fera, em Naniquez, se fartava e  reproduzia feras mais agressivas...


quarta-feira, maio 19, 2021

NASCI PARA SER BREVE

Quando o dia da paz renascer, quando o sol da esperança brilhar, eu vou cantar. Quando o povo nas ruas sorrir, e a roseira de novo florir, eu vou cantar. (Pe. Zezinho)

“Quando nasci, um anjo louco disse-me: “Vai, irmão, ser insano na vida!” (Eurípedes dos Santos)

 

Eu sempre acreditei que eu havia nascido para ser breve, às varias permanências em hospitais na infância, apontavam para isto. Postulei não passar dos trinta. Cheguei e passei a ensaiar não chegar aos quarentas. Foram ensaios tímidos e erráticos, que me ensinaram que entrar e sair da existência, não nos pertence. Podemos decidir o salto, não o seu sucesso. Cabe à amada, de seu reino do não ser, aceitar-nos ou não eu seu regaço. Se não for de sua vontade, a corda não arrebenta, o choque apenas atordoa, perdemos o fôlego mas não nos afogamos, a queda te arrebenta, os ossos quebram, mas o corpo não dilacera, a existência não esvai. Tenho, portanto, aguardado que ela se me apresente e me conduza em seus braços, para seu reino do não ser. Há dias, porém, que abro o noticiário, e as noticias convidam-me a novos ensaios. Uma voz me confidencia: “insano é querer existir ainda mais um dia. O amanhã não há de ser melhor, os botões não florescerão, cães fardados de arrogância pisotearão as sementeiras; árvores serão desenraizadas antes dos frutos. Os que sonham um outro mundo, em que não sejamos números – números numa estatística perversa, marcada por balas perdidas, genocídio estatal, serão sufocados durante o sono.  Os que empunham  resistência, e gritam palavras de ordem, como se dissessem algum código mágico, capaz de dar-nos outra ordem, outro mundo, sentirão a mesquinhez, a ignorância soberba e desumana dos capitães do mato e de seus senhores. Mais uma vez a utopia do amanhã fraternal sucumbirá à ideologia Nazo-facista. Amanhã não haverá canção, a poesia será silenciada, o ódio prevalecerá.” Eu nasci para ser breve, num mundo de poucos encantos, vou existindo. E existindo, há dias rente ao desespero. Haverei, amanhã, de entrar em outra batalha perdida. Enquanto minha amada não me acolhe em seus lábios, entrar em batalhas perdidas é minha sina... Minha insanidade, num mundo que nos elimina por sermos quem somos, é acreditar na utópica fraternidade: O dia da paz é só uma ilusão que me sustenta, enquanto minha amada não me abraça. Ser visitado por ela, no dia em que entrei na existência, seria um presente. Mas, tudo indica que essa sua visita, infelizmente, deve ficar para amanhã. O amanhã da estupidez, da canalhice, do ódio, marchando braços dados, contra minhas ilusões... Nunca desejei tanto ser mais breve.

domingo, maio 16, 2021

DE ONDE SE FALA?

Já há algum tempo, eu não leio jornal impresso. Quando lia, sabia diferenciar uma crônica, de um editorial, um editorial de um artigo econômico, um artigo econômico de uma posição política, uma posição política de uma reportagem, uma reportagem de uma análise. O jornal ajudava nesta distinção com seus cadernos específicos.  Outro gosto que eu tinha era a do boteco. Meu pai manteve por longos anos um bar mercearia, e ali o comercio de meu pai era um lugar de acalorados debates políticos e esportivos. Nunca gostei de vender cachaça, mas das conversas de boteco tomei gosto. Por fim, agrada-me conversas familiares e de encontros de amigos, geralmente são voltas ao passado, releituras bem humoradas de conflitos, desentendimentos, incompreensões, coisas que no passado causaram constrangimentos e rusgas, retornam cheias de riso. Nem sempre é assim, eu sei. Há magoas que remoemos uma eternidade. Mas é bom, muito bom, reencontrar irmãos, irmãs, amigos, amigas e rir de situações que nos constrangeram no passado. O motivo deste texto é outro no entanto. Quando muito se fala do lugar de fala, eu acho importante dar sentido ao local em que se fala, e diferenciá-los: a fala num púlpito não é a mesma que no parlamento. Uma coisa é uma conversa no boteco, outra numa cátedra. Num mesmo jornal, um peso tem um editorial, outro uma crônica. Um artigo de opinião e uma análise de um fato não tem o mesmo peso. Recentemente conversando com uma amiga, defendi que damos muita atenção a quem fala, sem considerar o local: uma cátedra, uma coluna de jornal (de qual jornal?), uma mesa de bar, de onde se fala. Nós podemos falar de tudo a todo momento, mas é preciso estar cientes de onde falamos. Conversas atravessadas num boteco, entre familiares e amigos, se não se encerra em crime, é pode acontecer, pode tornar-se combustível festivo num encontro futuro. No púlpito, na cátedra, no parlamento, numa pagina de jornal, revista, livro, não podemos ser levianos ou grosseiros [também entre familiares e amigos deveríamos nos dar respeito e ser respeitosos com o que dizemos], requer compromisso, coerência, algum conhecimento. Uma opinião não é conversa fiada, uma opinião é uma posição diante da realidade, uma posição que diz de mim, de meu caráter. Uma opinião infundada, não apenas distorce a realidade, ela depõe contra o opinante. Então, é preciso ter claro, quando se toma a palavra se se está num stand up, numa conferencia, numa mesa de bar ou numa coletiva de imprensa. O ouvinte e ou leitor também precisa ter claro se está diante de um comediante, um poeta, um professor, um político, um sacerdote... e do lugar: uma coisa é o sermão dominical, na mesa da palavra, outra é a conversa camarada com o padre ou pastor, encontrados no mercado. Isto serve para quem lê jornal, uma coisa é uma crônica, outra um editorial, outra um artigo, outra ainda uma analise com dados e estatísticas. Deve dar conta também em que jornal está lendo tais coisas. Tudo isto serve para o mundo digital...


quinta-feira, maio 13, 2021

SEM LIBERDADE A IGUALDADE É CONCESSÃO PARA NOS MATAR

 

No dia treze de maio de 1888, decretaram o dia do esquecimento, da anulação de três séculos de expropriação da vida e da dignidade de homens e mulheres em condição de escravidão. A liberdade concedida vinha com os auspícios de que se esquecêssemos o flagelo da escravidão. Com a liberdade “concedida”, como se luta não houvesse tido, se devia iniciar uma nova história. Deixássemos para trás toda sujeição e dor passada. Agora seriamos todos iguais: os que usufruíam da dor sangrada de nossos corpos e os que tinham apenas os corpos sangrados e maltrapilhos. Era preciso olhar para o futuro. E o futuro sorri-nos seu sarcasmo: pretos e pobres continuam sangrando executados em nossas quebradas, enquanto os que sempre usufruíram deste sangue-sofrimento desfiram de verde e amarelo por nossas ruas legitimando o genocídio de nossa gente. A liberdade que nos concede não nos convém celebrá-la, em seu bojo sorri-nos nossa miséria, porque exige-nos esquecer o porquê eles se sentem no direito de nos humilhar e matar. A liberdade se não a conquistamos por nossas lutas, recuperando e preservando nossa história, não a temos. E sem liberdade, a igualdade é um discurso enganoso. Eu não tenho a menor vontade de ser igual a quem nos mata, a igualdade deles, dos capitães do mato (a polícia), dos senhores da senzala (os que detém nossas riquezas) e seus apaziguados (esta escumalha de verde e amarelo, que tomam nossas ruas), não me interessa. Não quero frequentar os seus palácios, participar de seus chás ou churrascos. De ser livre de fato, e ser tratado com respeito e dignidade, disto não abro mão. Esta liberdade não vem sem organização, resistência e luta. Sem ela, qualquer discurso sobre sermos iguais é concessão para continuar nos matando.

sexta-feira, maio 07, 2021

EU MERDA

 

Nossa geração é um fracasso! Estamos herdando às gerações futuras o pior dos mundos. Não, nós não nos humanizamos. Cedemos à barbárie. A nós agrada o espetáculo horrendo, o morticínio, 415 mil mortos não nos abalam, a morte bárbara de crianças não nos abala, a violência do Estado promotora de chacinas não nos abala. Continuamos o nosso desfile patriótico, encontrando justificativas para o que é insano, defendendo o indefensável. Não somos vítimas, somos cúmplices. Somos responsáveis por cada morte, em cada gota de sangue derramado há o nosso fracasso. Não somos humanos e não seremos. Nossa geração é diminuta, presa a mesquinhos interesses: conta mortos, contando dinheiro. As gerações que chegam, encontram um mundo bruto, grosseiro, insensato, cujo sentido é o ódio. Os novos que chegam terão que encontrar, por si mesmos, sob os escombros e os mortos que os legamos, os poucos rastros do que poderíamos ser e não empreendemos. Nós fracassamos, não somos humanos: somos apenas rancor e ódio monetizado. Sem pudor marchamos patrióticos, defendendo o indefensável : 415mil mortes, a chacina de Estado, o direito à vingança. Aos novos acalanto melhor sorte. Esta parca utopia é o que me alenta. Minha geração me desespera, ante a defesa que se faz da chacina de Estado, sinto-me um merda.

quinta-feira, maio 06, 2021

CIRCO DIVINO

 


Quo spectaculo nihil potest admirabilius esse, nihil pulchrius.[1] (Cícero, De natura Deorum)

 

Os abastados deuses

em sua monótona

eternidade

decidiram criar

um divertimento

para socorrer-lhes

do entediante

sempre mesmo

moldaram o mundo

variado em formas

cores e espécies

e para administrá-lo

modelou do barro

um bípede implumado

e breve

e nele, sem medidas,

inflou suas paixões

suas malícias

suas vaidades

e, por pura derrisão,

parca e comedida

racionalidade

Terminada a obra

os deuses em nada mais

interferem

apenas se divertem

ad in eternum

 

 



[1]   Nada pode ser mais maravilhoso do que este espetáculo, nada mais bonito do que isso. (Cícero, Da natureza de Deus)