sábado, abril 30, 2016

SHELMMA DA LUZ

O que segue são de fragmentos dos manuscritos de Eurípedes dos Santos que estou organizando, sob orientação de Rodner Lúcio, para um meu livro a ser publicado postumamente em 2025.

“... Eu crio um mundo de fantasias para esquecer que estou no mundo. Quando me ocupo do mundo me preocupo com os sem mundo. Eles querendo um mundo eu desquerendo...”  

“[...] A educação reflete a estrutura de poder. Quem pretende transformar a mentalidade do povo sem questionar as estruturas de poder, é  ser vergano trabalhando em açougue...”

“[...] Eu me preocupo com o boi tangido;  temo quem o tange. Há boiadeiro, penso, que é mais boi que o  boi: tange sem se saber tangido!”

“[...] Assim nasce Shelmma da Luz que grita: “boiadeiro amigo de fazendeiro é como professor que defende governo, operário que defende patrão, intelectual que fala do povo, mas não com o povo, jornalista que segue editor e não convicções.  São mais boi que boi, pensam-se boiadeiro (detentores de um título, de um lugar para o discurso), sendo hospedeiros de fazendeiro (querem participar das estruturas de poder), mas o fazendeiro dá-lhe sempre um tapinha nas costa, faz-lhe qualquer elogio ou concessão, e, quando entre os seus, ri-se dele, de sua pretensão de “ser um com nós”. Boiadeiro que não se sabe boiadeiro é pior que o boi que tange e pior que o patrão.”

“[...] Todo mundo sonha possuir o mundo. Eu sonho não ser. É esta distância que dá à luz Shelmma da Luz...”



quarta-feira, abril 27, 2016

SOLENIDAD


“Os sonhos de uns são pesadelos de outros” (anônimo)



O Dr. JB, Diretor geral das Telecomunicações Globais, o homem mais poderoso de Aquém Das Margens, teve um sonho agradável com a nova auxiliar de higienização. Dr. JB, conforme narrou a seu assessor, sentia-se jovial abraçado à “giovannetta” caminhando ao longo da praia, as ondas repousando tranquilas à areia. No horizonte o lilás se confunde ao alaranjado da tarde caindo. Na sequência, JB está servindo vinho e explicando para a agradável companhia (ele não percebe o terror em seus olhos, o corpo ofegante e trêmulo) o como ele se harmoniza com o suflê e o peixe... JB despertou ofegante com a sensação agradável do ato consumado, do calor e do perfume da “princesinha de ébano” impregnado em seu corpo.  O assessor acompanhava a narrativa em comedido frenesi... Mirthis Solenidad acordou no meio da noite, sentia-se sufocada e suando frio. Teve a impressão de sentir o halito asqueroso de whisky e charuto de JB. “Fora só um pesadelo”, disse para aliviar a mãe. Na manhã seguinte prestou queixa na delegacia: “Estavam roubando-lhe o sono”. Mas Dr. JB era Diretor geral das Telecomunicações Globais, não haveriam de dar-lhe crédito...   

domingo, abril 24, 2016

CONFIAR ATÉ QUE PROVE O CONTRÁRIO


“Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é” William James

Nossa realidade cotidiana nos coloca com o pé atrás com a política, pois as experiências que vivenciamos nos revelam, com frequência, a falta de vínculos entre ética e política. A desconfiança, porém, é mais profunda. De fato, desconfiamos não da política, mas da pessoa humana mesma. Nossa visão do humano é uma visão negativa. É o ser humano que é mesquinho, que é desonesto. Numa visão hobbesriana: Somos maus por natureza. E pragmaticamente dizendo, na posição de A ou de B, faríamos a mesma coisa: somos humanos. Mas se a compreensão da política, por ser humana, guarda semelhanças com a compreensão do humano, é preciso acrescentar um critério propriamente humano à análise da política e de seus agentes: O humano é sendo.
Porque deveríamos confiar apenas em Maquiavel ou Hobbes como juízes absolutos da natureza humana e de sua mais importante ação social? Como podemos afirmar categoricamente que o ser humano é (isto nos inclui, ou não seriamos humanos) falso, ou desonesto, ou, radicalizando, mal e ao mesmo tempo desejar que ele seja honesto, seja bom e se comprometa com a verdade?
Do mesmo modo que todos os dias faço a experiência de situações que me fazem suspeitar das pessoas, também faço a experiência da generosidade, da solidariedade, da militância engajada de milhões de voluntários. Pessoas que por um sorriso num rosto desconhecido, pelo brilho num olhar abandonado, pelo direito de que o outro também tenha acesso ao mundo e ao que nele o homem produz, me ensinam constantemente que o ser humano não é totalmente mal.
É preciso desconfiar de quem insiste em desqualificar a política. Ela é ação humana, não isolada, mas coletiva que visa um fim. Para muitos seu fim é o poder, estes a corrompem. Mas há aqueles que veem na política a construção do Bem Comum, algo difícil de traduzir, porque para se chegar ao que é comum a todos é preciso que todos se manifestem.
Desqualificar a política; reduzi-la a ação de alguns poucos (os desonestos) é impedir que todos se manifestem; é perpetuar a condição em que ela se encontra, isto é, dissociada de uma ética. O discurso maquiavélico serve a isto: a manter as coisas como estão. É preciso superar este discurso. É preciso dizer ao ser humano que ele não é mal e nem bom por natureza, mas, ser sendo. É por suas escolhas que ele se vai afirmando e produzindo o mundo.
Estas escolhas não são isoladas e não recai sobre si apenas e nem estão destituídas de critérios. Como as possibilidades de escolhas se dão mediante um conhecimento sempre incerto de nós mesmos e da realidade que nunca dominamos plenamente, só a desconfiança nos possibilita reconsiderar constantemente nossas escolhas e avançar por sobre nossos erros.
Politicamente, desconfiar é saber que, sendo uma ação humana, a ação política – escolha pelo poder ou pelo bem comum – só pode ser julgada a seu termino. Quando podemos observar se seu fim se coaduna à sua intenção.
Se a minha crença no campo de trigo for que ali só nasce trigo, eu vou colher joio misturado ao trigo. Mas se eu desconfiar que entre o trigo possa haver também joio, antes de colher o trigo eu vou procurar reconhecer e separar o joio. Num sentido inverso, se eu acreditar que na política (e querem me fazer acreditar nisto) só há malandros, eu deixo de olhar para os poucos bons que ainda se arriscam a propor o bem comum e os desconsidero. Mas se eu olhar com desconfiança para estes que reduzem a política a um covil de raposas e que dizem que a política é isto mesmo e atentar um pouco mais para as pessoas, talvez eu encontre pessoas seriamente comprometidas com o bem comum, que realmente querem uma política associada à ética. Desconfiar, neste sentido é positivo, porque não é negação, nem rejeição.
Não somos maus, não somos bons até o fim de uma ação. Eu ainda acredito que somos capazes de construir um mundo melhor e a realidade me mostra todos os dias pessoas que estão dando a vida por isto. Não participar da vida política é abandonar estas pessoas à própria sorte e entregar meus sonhos às raposas.
Por isso, se “todo mundo é suspeito”, canta o grupo Titãs: “É bom desconfiar/ De ser desconfiado/ Não vou desconfiar de você/ Até que prove o contrário”.
Que do meio deste joio, possamos descobrir o que é trigo.

sábado, abril 23, 2016

ANNE

Narrar a história de homens e mulheres que viveram e que inventamos ter vivido torna o mundo um lugar habitável (Christine Ramos)


Jacob contou a Pompeu a história de Anne Frank. Daí o nome de Anne, filha de Pompeu. Anne nunca viu uva, mas sabe que o vinho e o vinagre são produzidos a partir dela. E ela só sabe do vinho e da uva, porque o pai os recebeu como pagamento pelo consertos de alguns sapatos. Pompeu e Jacob acertavam que “numa refeição, a combinação do vinagre ao azeite na salada e do vinho na taça, rende um momento de extraordinário prazer. No entanto, se invertermos os usos, condimentando a salada com vinho e levando vinagre à taça, o resultado será totalmente desagradável”. Jacob comprometeu-se a trazer, de sua próxima viagem, uvas, “para a pequena Anne saber o que é, e o “camarada”, matar saudades da terra”. Anne não entendia tudo que Jacob dizia, mas gostava de suas visitas ao pai. Caixeiro viajante, às vezes levava meses sem aparecer. Mas, cada vez que aparecia trazia uma história diferente. Jacob e Pompeu se conheceram no navio que os trouxeram ao Brasil no curso da Segunda Grande Guerra. A amizade entre eles nasceu no mesmo momento em que se conheceram “n’è vero carcamano”, brincava Jacob com Pompeu. Jacob trouxe a Pompeu o livro de Primo Levi. Passaram a tarde conversando, para deleite de Anne que a certo ponto ouviu de Jacob: “a vida humana arrisca de desaparecer para sempre se não é recordada e contada por alguém.” Depois contou a história de um Imperador que ordenou a execução de 10 conspiradores. “Meses depois da execução, ficou ele sabendo que entre os executados, um era inocente.  O imperador, então, mandou convocar todo o império e diante de seus súditos se depôs do trono. Os súditos todos, atordoados, indagavam o imperador tamanha atitude. O imperador explicou-se: “Se em um pelotão de fuzilamento houver 100 homens e entre eles, por erro do aparelho de Estado, um inocente for fuzilado, o Estado terá cometido um desagravo profundo à humanidade, não terá sido apenas injusto, terá sido desumano. Eu não suportaria viver num Estado desumano, quanto mais governá-lo””.  Neste dia Anne resolveu que seria contadora de histórias. Contaria histórias que iluminam dias sombrios.

RESPONSABILIDADE


“Somos Responsáveis pelo que não prevemos” (Christine Ramos)




Sócrates nos ensina que “sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância” orientando-nos “tome cuidado com o vazio de uma vida ocupada de mais”.


Uma vida ocupada de mais é uma vida pautada no ativismo em que não se há tempo para pensar na ação, só para agir. Mas é preciso compreender o que estamos fazendo. O fazer sem o pensar no que se faz produz apenas automatismo, que é incapaz de perceber erros e aprendizados. Sem a percepção do que produzimos, nada produzimos.


Dizem que aprendemos com os erros. Sim, mas apenas quando tomamos consciência do erro e sobre ele pensamos. Não pensar sobre o erro, ignorá-lo, é estultice. O conhecimento não nasce do fazer, nasce da compreensão do que se faz. 


Só há autonomia onde conhecimento e responsabilidade se coadunam. A autonomia requer capacidade reflexiva, isto é, capacidade de se retirar do que se está fazendo para pensar o que se está fazendo.


Então, só conquistamos autêntica autonomia quando compreendemos o que estamos fazendo e podemos, assumir a responsabilidade pelos resultados de nossa ação, sejam eles positivos ou negativos.


É sempre bom lembrar que o desejo que motiva a ação não garante que atingiremos o resultado desejado. Podemos controlar o que desejamos não o que obteremos. Isto não nos escusa, aumenta nossa responsabilidade.  “Sobremodo quando a vida e ou a qualidade de vida de terceiros estão em jogo” (Christine Ramos)


sexta-feira, abril 22, 2016

LEGITIMIDADE



                                                             Quem faz injúria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto,

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.

(Luiz de Camões. Os Lusíadas, canto X, estrofe LVIII)*



Na linguagem política, segundo o Dicionário de Política organizado por Noberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, a legitimidade é “um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por isso que todo poder busca consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão”.

Para exemplificar tal conceito, resumido como “aprovação, pelos governados, daqueles que detêm o poder”, Fabio Konder Comparato usa uma passagem de Confúcio:

Zigong: Em que consiste governar?

O Mestre: em cuidar para que o povo tenha víveres suficientes, armar bastantes e para que ele confie nos governantes

Zigong: E se fosse necessário dispensar uma dessas três coisas, qual seria ela?

O Mestre: as armas.

Zigong: E das duas outras, qual seria dispensável?

O Mestre: os víveres. Desde sempre, os homens são sujeitos à morte. Mas sem a confiança do povo,não há ordem política que subsista.**



Voltando ao Dicionário de Política, ele adverte que é possível, quando as instituições políticas se encontram em crise, à pessoa ao vértice da hierarquia de poder congregar qualidades pessoais, capaz de legitimar seu governo. Porém, “Este tipo de Legitimidade, pela sua ligação com a pessoa do chefe, tem existência efêmera, por não resolver o problema fundamental para a continuidade das instituições políticas, isto é, o problema da transmissão do poder”.    

Com relação à legitimidade, então, nós temos um problema. Nossas instituições estão em crise, temos um Congresso chafurdado na corrupção, que para manter tudo como está, promoveu uma farsa bizarra. Nosso judiciário, seletivo em dar andamento a denuncias de corrupção, moroso em respeito a Eduardo Cunha, célere em ações contra o governo, evidencia inclinação política e fraqueza jurídica. E o que até ontem, enquanto conspirava sorrateiramente, queixava-se de seu papel secundário, figurativo, nas decisões do governo, desponta, agora, à cena política como o gerenciador mor. O caso é que, tal sujeito surge como aproveitador traiçoeiro, em um processo de deposição do governo em posto, internacionalmente condenado e ridicularizado.  É uma figura triste e sem a menor confiabilidade.

Tal figuração, para ficar nos termos do Dicionário de Política, exige uma atitude revolucionária em defesa do superamento da crise, pelo amadurecimento de nossa democracia e combate ao reacionarismo que desponta da outra ponta de questionamento da autoridade e legitimidade do governo presente e do que está por se instalar.



*  In COMPARATO, Fabio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. Pag. 596-7

**  Idem, 594

quinta-feira, abril 21, 2016

TIRÉSIAS


“Tirésias via em sua cegueira, eu vejo em minhas alucinações” (Euripedes dos Santos)

Tia, certa vez, contou-nos a história de Tirésias, um desafortunado que assistiu a cópula (não foi este termo) de duas cobras e depois disso passou a alternar-se ser homem por sete anos e ser mulher por outros setes. Depois disso entrou numa briga de casal, deu razão ao homem, viu se condenado pela esposa à cegueira (quanto a isto há uma outra versão: ele teria visado uma deusa em seu banho) e ganhou em contra partida a clarividência (termo que tia também não usou). Vó fez bolo, e enquanto o bolo assava e o café coava, ela explicou que há varias formas de cegueiras. A do não saber do erro e a do saber, mas insistir nele ou, por interesse, apoiá-lo são frutos de mesquinharia e ambição e são as que desumanizam o homem. Vó e tia não se diziam analfabetas, se diziam cegas para a letras uma atrás da outra (“eu as vejo meu fio, mas é como se não as visse”, dizia vó), no entanto eram como Tirésias, viam o que dissimulamos, viam o quanto obtusos podemos ser e o risco a que isto nos leva.


GETULIO


Claudio Domingos Fernandes

Às vezes penso que Getulio, meu Basset, pensa. Já faz algum tempo que as folhas de jornal que deixo em cantos da casa para ele fazer suas necessidades aparecem estraçalhadas, o que me faz ralhar com ele. Ele murcha as orelhas e me olha com aqueles olhos de dissimulada tristeza.  Três dias passados, eu troquei a forração de sua casa. Desde então, eu tenho notado que ele tem dormido no capacho. Hoje percebi seu olhar triste, ora voltado para mim, ora voltado para sua casa. Resolvi verificar a casa, se havia algo de errado com ela. Não notei nada. Então Getulio deixou o capacho e entrou em sua casa, retirando ele mesmo a forração que eu fizera. Descobri desalentado comigo mesmo, que os olhares tristes de Getúlio era comigo (senti-me um obtuso), que não percebera seu protesto. Eu, parecia dizer-me Getulio, o afrontava forrando-lhe a casa com a última edição da Veja, esta que trás uma matéria com a esposa do figurante que se pretende, de maneira abjeta, o papel principal. Pedi desculpa a Getulio, que parece ter visão mais objetiva e posições mais radicais que eu.    

POR QUE EU NASCI?


Eu nasci rio, para fluir e avolumar. Carrego esta irresistível tendência de correr às fontes. (Rodner Lucio)

Eu nasci árido, seco: Uma flor insiste fragilmente fincar-me raízes. (Euripedes dos Santos)

Nascemos para aquela que foge-nos quando a anelamos e captura-nos quando menos a esperamos.  (Zózimo de Ítaca)


Eu não nasci, fui lançado ao mundo. E logo assumi pouco apreço pela vida. Às coisas do mundo pouco me apego. Pra não-ser é que fui lançado na existência. Do mesmo modo que nasci, morresse agora, seria como fio de cabelo em vasta cabeleira, o mundo não daria conta. Talvez esta seja a falta com que nasci, o meu desejo é não desejar. Tenho anseio de suspensão, de quietação, de não envolvimento com o mundo e seu continuo desassossego. Sei apenas, compulsivamente, ler e escrever. A compulsão não esclarece: tortura. Não aplaca: tormenta. Circula na internet um dizer de Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo o que tentei na vida”. Eu também vou fracassando. Caído no mundo, cai, como Macunaíma, com muita preguiça.  Estando e ansiando não estar é preciso ir existindo e assumindo caminho. É contra sua vontade que a água escorre ao mar, pudesse voltaria sempre à fonte. É contra minha vontade que escolhi muito cedo o lado dos que fracassam, a diferença é que eles alentam coisas que eu não alento, que “o oprimido pode expurgar de si o opressor, libertando a si e ao opressor, humanizando-o” (Paulo Freire). Esta é uma luta perdida. Nasci para assumir lutas perdidas. Nasci para o fracasso. Hoje é um bom dia para deixar de ser, para me abandonar do mundo, ele não sentiria falta, seria cisco afastado pelo vento a lugar nenhum. Mas os desumanos se erguem à luz do dia com suas palavras de preconceito e ódio. Ao meu redor o que vejo são canalhas e cretinos pregando excrescências: militarismo, tortura, pena de morte, armamentismo... Assomo-me aos que ousam exigir direitos, educação, trabalho digno, boa remuneração, moradia, terra..., essas lutas que se perdem dia-a-dia. Não alento sonhos, o mundo se destina à ruína. Mas existindo temos que assumir lados. E os que eu abraço e com os quais sou solidário clamam: “Vamos à luta!” Então, a desejada noiva há de esperar, se não vem e me captura. E nessa batalha que se perde sempre, faço a única coisa que sei: escrevo. E minha escrita é orvalho em terra árida, bem sei. “Cada batalha perdida torna-nos cinzas, e das cinzas renascemos”, de uma frágil flor que insiste em fincar raízes em mim. Por ela existo, insisto, resisto, minha amada, se não me captura, há de esperar: vou à luta.    


DEUS VAI AO CONSELHO DOS ÍMPIOS


Claudio Domingos Fernandes

Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores... (Salmo 1)

No show de horrores que foi a votação de encaminhamento de impeachment de Dilma Rousseff, Deus foi chamado em causa inúmeras vezes, para sustentar o voto do nobre deputado. 

Ocorreu-me, por mais de uma vez, o segundo mandamento: Não tomar seu santo nome em vão. Numa versão bíblica evangélica se lê “Não use o meu nome sem o respeito que ele merece; pois eu sou o Senhor, o Deus de vocês, e castigo aqueles que desrespeitam o meu nome” (Ex. 20,7). Mas Deus, no conselho de ímpios (Alguém é capaz de encontrar honestidade e integridade em pessoas como Eduardo Cunha, Jair Bolsonaro, Paulo Maluf, Marcos Feliciano...?), foi invocado e, como reza o Salmo 82,1-4 tomou o seu lugar na reunião dos deuses (sim, eles se sentem deuses!) e no meio deles dá a sua sentença: “Vocês precisam parar de julgar injustamente e de estar do lado dos maus. Defendam os direitos dos pobres; sejam justos com os aflitos e os necessitados. Socorram os humildes e os pobres e os salvem do poder dos maus”.

Alguém sabe me apontar quando foi que Eduardo cunha e acompadrinhados apresentou algum projeto de lei favorável ao pobre, ao humilde, ao injustiçado? Não, nunca se preocuparam com os carentes, pelo contrario dos mais necessitados eles escarnecem. Seus projetos beneficiam sempre as grandes empresas, os oligopólios, os bancos. Chamar Deus em causa, em um processo viciado, é uma injúria, um desrespeito com o nome do Senhor. Ontem, Eduardo Cunha e os que o seguiram zombaram não só de nossas caras: Zombaram do que há de mais sagrado; escarneceram de Deus, tentando envolve-lo, em seus interesses.

Para os que além de invocar Deus, também invocou a família, fica, então, a manifestação de Deus a esses homens-deuses: “Eu sou Senhor, o Deus Eterno! Eu tenho compaixão e misericórdia, não fico irado facilmente (penso que é hora de Deus se irar, um pouco que seja)... Porém não deixo de castigar os filhos (um deputado desejou declinar ao filho o seu voto) e até os netos, os bisnetos e os trinetos pelos pecados dos pais” (Ex. 34, 6-7). Tenho resistência a aceitar este legado. Mas reforço, há certas coisas que me fazem invocar a ira de Deus.

Em Jó, Deus aceita o jogo de Satanás. Mas ali se tratava de testar um homem justo. Ontem não! E Deus saiu e, sacudindo contra a festiva assembleia o pó de seus pés, exclamou: “Ai de vocês hipócritas, sois como sepulcro caiado. Neste antro, todas as atitudes são corruptas e abomináveis: não há um que faça o bem” (Salmo 14,1). Não Me misturo a vossos interesses!”

Há quem dirá que os injustos, os ímpios, os corruptos se uniram para combater a corrupção, mesmo que a ré não tenha acusação formal de tal crime, que, derrubando-a, em seguida se derrubará Cunha, Temer, Aécio. Para estes, por ingenuidade ou má fé, o meios espúrios são justificados pelo desejo de fins nobres. Lembro a história que tia nos contou nos idos anos 70, anos de chumbo.

“Coronel Agripino Maia recebeu a noticia de que o filho precisaria transplantar o coração. Em seu coração de pai, coronel Agripino Mai, para salvar o filho, chamou capataz e ordenou-lhe tirar a vida do filho de Demétrio Silva, colono que lhe devia na venda. Coronel Agripino Maia encontrara meios de receber o que lhe era devido (que é justo) e salvar o filho (que é nobre)”.

Mais tarde, contando essa história a Rodner Lucio ele a resumiu “O uso de meios escusos a um fim justo, conspurca o resultado alcançado.” Ontem não demos um passo no combate à corrupção, abrimos brechas para a arbitrariedade e a ilegalidade.

Eu não tenho a menor preocupação com o processo de impeachment de Dilma, faz parte do jogo político. Ela é ciente disso. Preocupa-me ver pessoas instruídas, capazes de entendimento, aplaudir e dar eco a estes homens-deuses, apoiando um processo que sabemos viciado.