terça-feira, maio 30, 2023

UIRAPURUS

 

Minha carne não vem do esperma de um branco. Sou filho dos habitantes das terras altas da floresta e caí no solo da vagina de uma mulher yanomami. Sou filho da gente à qual Omama deu a existência no primeiro tempo. Nasci nessa floresta e sempre vivi nela. (Davi Kopenawa: A queda do céu)

 

Às primeiras horas do dia, o sol já se anunciava às fretas da cabana, prometendo uma jornada de calor intenso. O aroma de café apenas coado e o de toucinho fritando vindos do refeitório de campanha convidava-nos a pôr-nos de pé.  Servi-me em uma caneca com meu nome do café, em uma combuca acrescentei uma espécie de cuscuz, com farinha de milho e mel de uruçu-amarela, banana da terra cozida. Deixei o refeitório para sentar-me embaixo de um cajueiro da  mata. Beberiquei do café. Mastiguei um punhado do cuscuz. Observava os passaros ciscando o chão, saltando às arvores, cantando. Acompanhava a algazza dos papagaios, dentro da mata. Um  vento manhoso singrava sussurrante entre as copas das árvores.

Koty’ara veio sentar-se junto a mim. Trazia tapioca com carne de peixe desfiado e caldo de banana: “Tae-ëty”! (bom dia!)

– Bom  dia, Koty’ara!

Um pássaro pequeno de plumagens avermelhada pousou em seu colo, depois voou para um galho acima de nossas cabeças, de lá, em meu ombro. Olhando para mim, Koty’ara, sorrindo, disse: “tua jornada está em benção, kop’wa abre-te as trilhas!”

Kop’wa é uma espécie de espírito das matas. “Ele dança no canto dos yu’ë (uirapuru)”, explicou-me Koty’ara. “Os yu’ë são ariscos, mas viram em você graça. É kop’wa deitando-te benção!”

Kop’wa é o canto de Uyr’ka para Wari, por ela lhe ter dado muitos filhos e muitas filhas. Wari guardou o espírito de Kop’wa no yu’ë. Ao despertar do sol, quando Uyr’ka faz tudo o que vemos e o que só os xamãs enxergam, Kop’wa acorda os habitantes da floresta e os abençoa. Todas essas coisas, explicava-me Koty’ara. Eu as ia anotando, conforme ela me explicava.

Koty’ara é uma nativa e está nos guiando em nossa expedição. Devemos adentrar a floresta em sua região mais densa para alcançar um grupo de nativos que vive isolado e do qual temos poucas informações. Koty’ara é uma das poucas pessoas a ter a confiança deles. Através dela tentaremos nos aproximar deste povo. Na noite anterior, ao redor de um fogo, Koty’ara nos contou da criação de seu povo:

 

“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e“Quando ainda não éramos, Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI, dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a  wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Então, Wari e Uyr’ka  deitaram-se um no outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De Wari nasceram Ar’we  (o homem) e Yã’koa (mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente.  Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de Wari e Uyr’ka  e descobriu Wari e Uyr’ka  deitando-se um no outro. Uyr’ka encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros   já não cantavam, os bichos de caça, já não corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka  ia desfazer Ar’we  e Yã’koa, Wari aplacou sua ira. Ar’we  e Yã’koa, para agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que  Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs visitam os tempos em que   Wari e Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 Uyr’ka  faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.  Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”  

Naquele dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus cantos.

 

 

quinta-feira, maio 25, 2023

DA NÃO-VIOLÊNCIA NO COMBATE AO FASCISMO

  

A ofensa desvela as fraquezas do ofensor. Zózimo de Ítaca

Pessoas desesperançadas viram bons fascistas. Myles Horton

 

Vó era [é] uma negra sábia. Ela dizia que, numa disputa, quem parte para a agressão verbal ou física, demonstra não ter razão: “Como sua conversa é palavra fiada, faz uso da ofensa.” Um seu cliente de pai, Zózimo de Ítaca, ensinava que “a ofensa é uma forma de descredibilizar o outro, procurando preservar de si uma autoimagem superior, “imaculada”. Segundo Zózimo, a ofensa é uma espécie de avesso do argumentum ab auctoritate (argumento de autoridade), que apenas expressa a falta de argumentos do agressor. Eu tratava com vó da ofensa continuada e gratuita que eu e meus irmãos sofríamos na escola, não tinha a que ver com debates e discussões. Simplesmente, gratuitamente, éramos xingados. “Fio”, dizia vó, “aprenda a rir de si mesmo e sofrerás menos”. Um dia, cheguei com um par de dentes na mão, era de um metido a besta. Eu e meus irmãos levamos uma coça de pai: “se filho meu não puder ser doutor, não os quero assemelhado a feitor.”  Segundo pai, nós não iriamos resolver as coisas com violência: “É o que eles esperam de nós, que os respondamos com violência, que nos rebaixemos ao nível deles”, dizia. Zózimo corroborava: “Não se responde uma ofensa com outra ofensa ou agressão. Lançar mão da violência, mesmo em justa defesa, não produz reparação, dá razão ao agressor.”  Por não entender e não aceitar tal filosofia, me indispunha com pai. O meu lema era: “um murro bem dado, às vezes, é necessário.” “Quando é autodefesa, não é violência, é inteligência”, dizia um amigo, citando Malcolm X. “Inteligente, fio”, dizia vó, “é saber ri do agressor.” Eu não aprendi a rir, fui aprendendo, e estou neste processo, a ironia. A ofensa é a resposta do ignorante quando lhe falta argumento; a ironia é a atitude do sábio ante um argumento ignorante.

A ironia confronta o agressor com sua própria ignorância, revela uma existência miserável. Geralmente o agressor vive frustrado consigo mesmo. Se diante dos outros parece soberbo, presunçoso, vaidoso, em seu íntimo encontra um ser medíocre, carente de personalidade. O agressor “gratuito”, amarrado a mil preconceitos, que entorpecem seus sentidos, seus sentimentos, sua inteligência, acolhe com benevolência qualquer falsa informação que lhe mascare a frustração consigo mesmo.  Contra o agressor “gratuito”, o riso desdenhoso de vó, a rendição de pai e Zózimo, a arte da ironia, evitam que o agressor passe a ser o agredido, e revela sua miséria existencial.

“Mas quando o agressor se arrebanha, ele se torna perigoso. A força do número supre a debilidade individual” (José Ingenieros). O fascismo é o reduto em que o ser sem personalidade se sente seguro para ofender e agredir. Protegido no grupo, sua hostilidade à diversidade e à pluralidade se potencializa, e da ofensa se passa à defesa de banimento e mesmo extermínio dos “estrangeiros”. O fascismo se alimenta de preconceitos que desemboca no eugenismo, defesa de uma “purificação” da sociedade, constrangendo ou eliminando os elementos que supostamente a corrompe. Para agregar os seus e os manter em guarda prontos a assumirem o poder e tornar viável o seu mundo sombrio, os dirigentes fascistas alimentam o ser despersonalizado de falsas notícias e discursos de ódio. Sua propaganda difunde um nacionalismo obliquo sustentado em uma religiosidade nefasta. Contra tal situação o riso de vó, o “pacifismo” de pai e Zózimo, a ironia são ineficazes. A única arma capaz de combater o fascismo que agrega o ser despersonalizado é a ação política. Esta ação deve agregar todo aqueles que tenham profundo respeito pelas diferenças, pelas diversidades, pela pluralidade e se inconformam com a violência econômica, religiosa, política, cultural a que as minorias são submetidas, seja através do discurso de ódio, da agressão física, do extermínio, seja através de práticas dissimuladas de restrição de direitos.

Só o exercício político sistemático, persistente e coerente que aproxime todas as vozes contra a escalada fascista no mundo irá abrir possibilidades de um mundo menos ofensivo e mais acolhedor e inclusivo. Contra as hordas fascistas é preciso ações políticas de caráter cooperativo entre os numerosos grupos sociais e suas lutas distintas.

Eu já somei opinião com um amigo que costumava me citar Malcon X: “Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério”.  Mas tenho feito leituras acerca da não-violência como prática política. A não-violência é uma ação consciente e estratégica de defesa da dignidade da pessoa humana; é uma intervenção concreta na realidade sociopolítica, visando a transformação da sociedade e a superação das estruturas que a torna expropriadora das capacidades humanas de se humanizar. Tenho, então, compreendido que não é com punhos e porretes que vamos barrar os seres despersonalizados das hordas fascistas. As agressões que sofremos não são casos de polícia apenas, são, sobretudo de política. O fascismo é um movimento político agregador de boçais. Só pode ser combatido com a política. Esta política deve privilegiar a não-violência. A luta política de não-violência contra o fascismo não corresponde a posições apaziguadoras diante de agressões sofridas pelas minorias. Ela atua com e fortalece as manifestações coletivas de resistência contra instituições, regimes, empresas, coletividades que procuram legitimar o status quo do agressor e vitimar o agredido. Esta política se assenta, sobretudo, no esforço de transformação das estruturas de poder, empoderando indivíduos e coletividades na luta por seus direitos. Mobilizando-se contra as estruturas de poder, a não-violência permite que vejamos os adversários como pessoas, mesmo que alienadas e compondo as fileiras das forças que combatemos. A não-violência não combate pessoas, combate sistemas, organizações, formas de poder que se sustentam da degradação das relações humanas, potencializando conflitos que impossibilitam a coexistência solidaria, plural, diversa, isonômica  entre indivíduos e coletividades singulares. A não-violência acredita poder administrar  os conflitos inerentes às relações humanas de maneira pacífica, disciplinada e criativa, respeitando e exaltando os valores que dignificam a pessoa humana.

 “A não-violência é, paradoxalmente, a violência dos violentados” (Zózimo de Ítaca). Eu tenho me aproximado desta ideia. Como ação política, cogito ser  o único caminho de combate ao fascismo.  Não obstante: um soco bem dado na fuça de fascistóide de bairro é como surra de mãe. Reprimenda, não configura violência.

 

sábado, maio 20, 2023

PIADA NÃO É CRIME

 

Eu passei minha infância ouvindo certas piadas que não me permito contá-las a meus filhos. Ouvia-as no comercio de pai, nas festas de família, em velórios. Eram piadas machistas, sexistas, homofóbicas, racistas, pedófilas, zoofilias. Naquela época, os piadistas papagaiavam Costinha, Ari Toledo, Juca Chaves. E em todos eles tinha a piada do papagaio, tinha a piada do português, do japonês, da Raimunda, tinha piada de corno, piada de gago, piada de loira. Sei delas uma centena. Depois tinham os programas humorísticos: Os Trapalhões, Viva o Gordo, Chico Anysio, etc., seguindo a mesma toada: machismo, sexismo, racismo, homofobia. Este combo, não é, no entanto, um padrão do humor. Ele estrutura todo o padrão televisivo: da programação infantil aos tele jornais, dos programas de auditório aos femininos, no período da tarde, dos policialescos às telenovelas, findando com Sala Especial, em toda a grade, o negro, a mulher, o homossexual eram subalternos, marginais, risíveis. Há quem tenha saudades deste tempo, eu não tenho. Mesmo rindo, não me sentia confortável com a piada do cachorro e do negro que entram numa igreja, da mulher que não sabe diferenciar um micro-ondas de uma televisão ou da “bichona” colocada no seu devido lugar. O riso é uma construção social, e não rimos só de satisfação. Não rimos só do que gostamos. Há aquele riso de canto de boca, manifestação de desconforto. Geralmente meu riso é de desconforto.

Avançamos no tempo. Hoje Ari Toledo, Costinha, Juca Chaves não contariam mais a piada da menina “apalermada” que se oferece ao amigo do pai, para fazer algo com a língua e com as mãos por cinco contos. Chico Anysio reveria o seu tão celebrado Professor Raimundo, Jó Soares o seu Dr. Turíbio (o dentista tarado).   Não, contar piada não se tornou crime, não é crime, continua sendo uma das expressões humanas: “O humano é um animal que ri de si”. O que se tornou crime, porque de crime se trata, é o racismo, a transfobia, a pedofilia, o assédio sexual, moral, psicológico etc. O negro não é mais motivo de piada. O homossexual (nem sei se ainda se usa este termo), a pessoa trans não são motivos de piada, as pessoas com limitações psíquicas, físicas, motoras etc., não são motivo de piada. A mulher, geralmente responsabilizada pela violência que sofre, não é motivo de piada. Daí que o piadista, hoje, como ontem, é de habitat circunscrito: festa de família, roda de boteco, churrascos da empresa, velórios (ao menos quando eu era criança se contava piadas em velório). Como entretenimento de massa, o que está em cena é o stand-up. E o profissional deste humor se ofende se o tratamos por piadista.  “Não, eu sou autoral! Eu elaboro meu espetáculo. Eu não conto piada, eu produzo humor”, ouvi um deles dizendo. Sendo assim, ele tem uma responsabilidade que escapa à responsabilidade do tio chato já embriagado.

Em uma canção, Belchior nos lembra: “Sons, palavras, são navalhas”. Vó, também nos ensinava: “Fio, palavra é faca, parte o pão, mas também mata!”. É preciso, então, responsabilidade com este instrumento: a palavra.  Quem trabalha com a palavra  precisa ter claro que palavras matam, que discursos matam. Escrever não é crime, mas o conteúdo do que escrevo pode tornar-me criminoso. Isto serve para jornalistas, para romancistas, para cronistas. E se o standapeiro trabalha com o texto, é preciso que tenha esta clareza: palavras são faca, cortam o pão, mas, também, matam. Assim, diferente da piada, numa roda de boteco, ao escrever o texto do meu espetáculo a pessoa escolhe a palavra, a expressão, a entonação, o momento de  a usar, porque há uma intenção, ele quer dizer algo, quer tomar posição num debate através do humor.  Então ele tem que ter claro as consequências de seu ato. A escrita é ato. Todo ato produz um efeito desejado ou não. E eu sou responsável seja pelo efeito desejado de um ato, seja pelo efeito não esperado de minhas ações. Então, mesmo que eu não queira cometer crime, se minha escrita configura crime, eu respondo por ela. Piada não é crime! Mas, em nome do humor não posso, não devo, reforçar crimes e preconceitos.

Há um tipo de humor que desperta o senso crítico, ajuda a compreendermos a realidade, a questionar-nos, a questionar as estruturas de poder que regem nossas vidas. Há humor que nos faz repensar comportamentos, valores, pensamentos, que coloca em questão o que pensamos saber. Rir pensando e pensar rindo nos melhora em humanidade. Mas é preciso ter a estatura de um François-Marie Arouet para produzir um humor assim. Há, porém, o humor medíocre, rasteiro, preguiçoso. Um humor fundado em pré-conceitos, na ignorância, na insensibilidade, um humor que acha que tudo é motivo de riso, mas só ri de minorias e facilmente se associa a crimes. Para este tipo de humor não se requer muito, basta seguir uma determinada cartilha, muito utilizada por certos opinadores. A quem interessa produzir humor raso associado a crime, eu indico, então, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Sucesso nos tribunais!   

sexta-feira, maio 19, 2023

DESCULPEM-ME SE AINDA ESTOU PRESENTE

 

Ter nascido me estragou a saúde.1

 

 

A minha mística, uma voz ancestral que me visita com muita frequência, me ensina que em vida não deveríamos ser parabenizados por nada. Segunda ela, não temos mérito algum em nascer, e manter-nos vivo é um dever que cumprimos penosamente, “usufruindo do labor alheio”. “Acumular anos de vida é tão desnecessário e inútil quanto acumular bens dos quais não desfrutamos.” Observando um jardim Giacomo Leopardi2 observa que mesmo que queiramos nos sentir bem, mesmo na estação mais amena do ano não podemos olhar para qualquer lugar e não perceber, um estado de souffrance, (sofrimento):

 

La’ quella rosa e’ offesa dal sole, che gli ha dato la vita; si corruga, langue, appassisce. La’ quel giglio e’ succhiato crudelmente da un’ape, nelle sue parti piu’ sensibili, piu’ vitali. Il dolce mele non si fabbrica dalle industriose, pazienti, buone, virtuose api senza indicibili tormenti di quelle fibre delicatissime, senza strage spietata di teneri fiorellini.

 

Lá, aquela rosa é ferida pelo sol, que lhe deu vida; se enruga, definha, murcha. Lá, aquele lírio é cruelmente sugado por uma abelha, em suas partes mais sensíveis, mais vitais. O doce mel não é fabricado por industriosos, pacientes, boas, virtuosas abelhas, sem indizíveis tormentos daquelas fibras delicadíssimas, sem o abate implacável de tenras florezinhas.

 

Leopardi conclui sua observação dizendo que o que parece ser um lugar de alegria, observando bem é um lugar de sofrimento. O jardim para Leopardi, “è quasi un vasto ospitale ( luogo ben più deplorabile che un cemeterio” – é quase um vasto hospital (lugar bem mais deplorável que um cemitério) –. Assim é a vida um lugar que mantemos, usufruindo da vitalidade de outros. Manter-se vivo, passar de um ano a outro, não é possível sem dor ou sofrimento: E fazemos, dando conta ou não, muita gente sofrer. Se estou ainda vivo, e me pesa saber disto, é porque muita gente está. Sou como a abelha que para produzir um parco mel, sugo a vitalidade de uma flor. Manter-me vivo é um exercício de expropriação de afetos, de sentimentos, de vitalidade dos que me rodeiam. O mel que produzo é sempre fel.

Parabéns!, é uma expressão que me dói aos ouvidos e que me sai engasgada. As coisas que faço se atingem algum valor, algum sentido, algum proveito a outros, outras, nunca são méritos apenas meus. Se não há quem me empurre ou puxe, não me levanto da cama. Tudo que faço só é possível sustentado por outros, outras. Não realizo nada só. Nem a iniciativa de viver a tomo por mim mesmo. Se vivo é porque pessoas outras me firmam as mãos e me amarram às suas vidas. Não entendo ser parabenizado por estar vivo mais um ano. Se coloco na conta as dores e os sofrimentos, próximos e distantes, que produzi e produzo por este feito, vem-me de desculpar-me. Saber que não termino, em especial, o dia de hoje, e que amanhã devo continuar me valendo da miséria que produzo me dá de tomar a iniciativa de não acordar para um novo dia. O dia de meus parabéns será o dia desta coragem. Por hoje resta lamentar não a ter e desculpar-me por ainda estar presente.

Ter nascido, é um infortúnio aos que me amam. Deixem os parabéns, se eu os merecer, e acho que não os merecerei, para quando eu morrer.

Se ter nascido estragou a saúde da Clarice, manter-me vivo limita o pleno viver de muita gente.

 

 

1.     Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999

2.    Giacomo Leopardi:  Zibaldone di pensieri. Nuova edizione condotta sugli Indici leopardiani. A cura di Fabiana Cacciapuoti. Roma: Donzelli. 2014

 

quarta-feira, maio 10, 2023

NOSSA LÍNGUA É SINFÔNICA TECIDA DE VIDAS

                                                                                                           Para Lilian Rodrigues

 

Dia desses se celebrou o dia da Língua Portuguesa e entre os muitos comentários celebrativos um desabono chamou-me a atenção: “Lamentavelmente não há muito o que comemorar por aqui, pois temos visto frequentemente pessoas que não sabem ler, escrever e interpretar textos na sua língua pátria, e isto é vergonhoso.” Há muitas questões sócio-políticas que envolvem este fato. Mas o interesse de quem faz o desabono não é entender as razões do fato. E eu não vou dar-me ao trabalho. Mas sempre que me deparo com este tipo de desabono lanço o olhar a mim mesmo e me cobro usar melhor a gramática, pois faço da escrita meu ofício. E, por mais vigilante que eu me proponho a ser, sempre escorrego em seu uso, principalmente depois da reforma. Eu, confesso, já não sei mais onde vão os acentos gramaticais, como se usa o hífen. Minha dificuldade com o “l” e o “r” na fala sempre me trai na escrita. E a virgula, se não vigio, se posta como lhe apraz. Eu me esforço por escrever bem, e por dominar a gramática, mas como disse, é por ofício que assumo tal empenho. Mas a língua não se resume ao uso da gramática, não se expressa apenas na escrita. Ela é viva, é dinâmica, é rica. Fico observando meu pai conversando com os vizinhos. Imagina um mineiro, um maranhense, um gaúcho, todos com formação escolar precária, conversando e dando-se a entender. A sonoridade, a entonação, o ritmo, a cadência, a expressão específica do lugar que cada um emprega na fabulação compõem a nossa sinfônica língua portuguesa. Sim, nossa língua é musical. Sua sonoridade cambiante de uma região a outra, sua oralidade carregada de expressões próprias de um canto a outro a tornam uma sinfonia viva. É preciso desentupir os ouvidos da gramática para saboreá-la em sua riqueza de tons. Minha avó, analfabeta que era, dizia: “Nois veve”, “tauba”, “canhela” no lugar de “cadela”. Nunca me envergonhei de vó, nunca me envergonhei de pai e seu mineres. Não, eu não tenho vergonha das pessoas que tornam a língua portuguesa maior que  sua gramática. Eu que faço do ensino e da escrita meus ofícios procuro dominá-la como convém a um escritor-professor, e me cobro saber usá-la ante meus alunos e leitores em seus muitos modos: não escrevo bilhetes de amor como se escreve uma petição, não deixo recado na porta da geladeira como de estivesse me dirigindo ao papa. Embora me empenhe com a gramática, eu amo o uso popular de nossa língua, suas oralidades, suas expressões, seus desacertos com a oficialidade. Voltando a vó, ela dizia: “bicho prenhe, fio, num si domina!” Dizia-me, também: “fio, num importa que ocê há di ser, faça por ser o mió, memo num alcançando ser o mió.” Vó não lia, não escrevia, não interpretava texto, falava o melhor português possível. Não consigo ser o professor-escritor que gostaria de ser, mas não deixo de ter sempre em mente seu ensino. Ser “mió” é algo que nunca se atinge, principalmente quando se trabalha com algo tecido de vidas: Não há gramática que domine uma língua viva.

terça-feira, maio 09, 2023

SUA MARCA FICA


 

MENTA E CANELA

 


Trazendo um sorriso franco

No rostinho encantador

Minha linda normalista

Rapidamente conquista

Meu coração sem amor

Nelson Gonçalves

 

Quando meu irmão foi para a cidade, para continuar os estudos, coube a mim dormir com vó, para lhe prestar alguma assistência durante a noite. Eu tinha por volta de 9 anos. O quartinho de vó não era integrado à nossa casa, era apartado. Era um cômodo simples de pau-a-pique, telhado de  sapé e chão batido. Um giral servia-lhe de mesa, um outro conservava o filtro de barro, o bule e alguns copos e talheres. Em um caixote de madeira, vó guardava uns poucos trapos. Não havia cama. Vó se recusava a dormir em cama, preferia a rede. Eu dormia numa esteira de bananeira.  Completava o quartinho de vó dois troncos baixos de copaíba, que serviam de “sentadouro”, como dizia vó, e um oratório de carnaúba que sustentava Nossa Senhora do Desterro. Tapetes de sisal e cortinas de fuxico decoravam o ambiente. Embora tivesse luz elétrica, vó preferia as lamparinas. Dormir com vó fez-me herdar seus fantasmas. É, vó passava a noite confabulando com seus fantasmas. E eu os herdei. Confesso que as primeiras vezes eu me encolhia todo debaixo dos panos de dormir e cheguei a urinar nas calças com Dom Sebastião, um fantasma de vozeirão rude, que aparecia pouco, e era breve. Surgia, ditava ordens, ameaçava castigos, sumia, deixando apenas o cheiro do charuto e da cachaça. Mesmo sobressaltando-me com sua manifestação, fui me acostumando. Sá Maria era mais frequente. Era uma senhora de uns aproximados 70 anos que cheirava alecrim, que, como vó, vestia chitas floridas e turbante, colares e pulseiras de sementes, brincos de tucum. Conversava com vó coisas de criação dos bichos, de ervas, chás e unguentos. Vó e Sá Maria trocavam confidências e receitas. Às vezes, visitava vó Januário, um preto desdentado, fumando corda. Contador de causos, galanteava vó, cantando-lhe modas. Tinha também, Ritinha de Sá Doca. Vestia-se como as normalistas do Pedro II. Tinha os cabelos pretos escorridos que vó lhe os trançava, enquanto ela cantarolava Beijinho doce, das Galvão. Chamava vó de Dindinha. O quarto se enchia do aroma de menta e canela quando Ritinha se manifestava. Certa feita eu brincava no riachinho. Dei com Ritinha banhando-se em suas águas. Estabaquei de susto. Seu vulto nu socorreu-me de eu me afogar: “Que vozinha não fique sabendo. Ela nos arrepia de reio!”, sussurrou-me.  Ritinha foi minha primeira paixão. Num fim de domingo, vó partiu para ter com seus fantasmas em outro plano. Em seu velório os vi uma última vez. Quando falo dessas coisas com mãe e tia elas mangam de mim. Dizem que eu sempre fui de fantasiar. Dias desses, porém, eu estava a folhear um livro de culinária em um sebo no centro. Ao habitual cheiro de mofo do lugar, misturou-se o perfume alecrim de Sá Maria: “As melhores receitas estão no caderninho de Nhá Carmo!”, sussurrou-me ao ouvido. Nhá Carmo é tia, que, de fato, tem um carcomido caderninho de receitas. Não esperando Sá Maria, sobressaltei. O livro que folheava estabacou no chão, atraindo olhares para mim. “Disacustumou, fio, com os parentes? ”, era vó sorrindo-me. Agora, quando não, quando sim, vó e seus fantasmas me visitam. “Que vozinha não fique sabendo. Ela nos arrepia de reio!”, sussurra-me Ritinha, perfumando-me de menta e canela debaixo do chuveiro.

segunda-feira, maio 01, 2023

HÁ UMA LITERATURA DO ALTO TIETÊ?

 

“A literatura utiliza da palavra, como o pintor das tintas, para criar arte” Christine Ramos

 

A pergunta no título deste texto foi lançada por Ademiro Alves de Sousa (Sacolinha) durante o EducaShow, que ocorreu entre 25 e 30 de abril, no Parque Max Feffer, Suzano. Participei da conversa com meu compadre Marco Maida e o poeta e dramaturgo Matheus Borges. Entre os presentes destaco a presença do poeta Vandei Oliveira, o Poeta Zé, e acompanhado da esposa Cristina Domingos, o filósofo Elvis Almeida, sempre com uma pergunta provocativa. O que segue é um exercício de pura divagação a partir do que lá foi dito.

A linguagem humana é variadíssima, além de complexa. De um galho de árvore quebrado intencionalmente à uma pedra cinzelada, de entalhes em um tronco de árvores a nós em um cipó, de um aceno de mão a um dedo em riste ou sobrepondo os lábios, o ser humano comunica saberes, sentidos, sentimentos, emoções. A palavra, das muitas formas de o ser humano se dizer e dizer o mundo, é a mais complexa porque a mais sofisticada. E ela se presta a muitos usos. Ela acessa, organiza, fixa, conserva, disponibiliza, compartilha o particular de cada indivíduo ou coletividade. Jogando com a memória, o imaginário, a intuição, a criatividade, resgata o passado, descreve o momento presente, prospecta o futuro. O uso da palavra torna o humano acessível, mas, ao mesmo tempo, com a palavra “o  homem mata mais que com faca”, dizia minha avó. O ser humano não é só linguagem, mas sem a linguagem, não seria este ser sendo.

A literatura é uma forma de uso da palavra, não da língua. A língua é como a pedra para o cinzel: a palavra; é algo bruto clamando o entalhe, o polimento. Da língua faz uso as ciências, as religiões, a política, cada uma dessas manifestações e outras tem a língua como árvore a ser talhada pela palavra a seu modo. A língua pede beleza, não apenas precisão lógica, rigor gramatical ou reverencial.

O literato, como um construtor de mosaicos, toma a palavra como a cacos cerâmicos, alinhava-os em sentimentos, em emoções, em sensações, em pensamentos, e dá à língua um lugar-oásis entre os desertos que permeiam nosso cotidiano de falas rudes e perversas.

Não é o lugar que define a literatura. É o escritor, no seu talhar a palavra, dando à língua nuances de sons, sabores, ritmos, cores de seu lugar, que o eleva e o universaliza. Não há literatura deste ou daquele lugar. Há o escritor, que tornando bela a língua de seu lugar, eleva o lugar de onde escreve. O Além Tejo do Pessoa, a Itabira do Andrade, não seriam, não fossem o Pessoa e o Andrade. Não há literatura do Alto Tietê, a quem faça deste cinzel instrumento para ornar a língua do lugar e tornar a realidade menos bruta. No Alto Tietê há escritores de muita excelência, alguns já brilham para além de suas fronteiras. Em suas conquistas pessoais, nossos escritores tornam o alto Tietê mais altivo, e, ao revelar-nos ao mundo, estimulam novos escritores.