Minha carne não vem do esperma de um branco. Sou filho dos habitantes das terras altas da floresta e caí no solo da vagina de uma mulher yanomami. Sou filho da gente à qual Omama deu a existência no primeiro tempo. Nasci nessa floresta e sempre vivi nela. (Davi Kopenawa: A queda do céu)
Às
primeiras horas do dia, o sol já se anunciava às fretas da cabana, prometendo
uma jornada de calor intenso. O aroma de café apenas coado e o de toucinho
fritando vindos do refeitório de campanha convidava-nos a pôr-nos de pé. Servi-me em uma caneca com meu nome do café, em
uma combuca acrescentei uma espécie de cuscuz, com farinha de milho e mel de
uruçu-amarela, banana da terra cozida. Deixei o refeitório para sentar-me embaixo
de um cajueiro da mata. Beberiquei do
café. Mastiguei um punhado do cuscuz. Observava os passaros ciscando o chão,
saltando às arvores, cantando. Acompanhava a algazza dos papagaios, dentro da
mata. Um vento manhoso singrava
sussurrante entre as copas das árvores.
Koty’ara
veio sentar-se junto a mim. Trazia tapioca com carne de peixe desfiado e caldo
de banana: “Tae-ëty”! (bom dia!)
–
Bom dia, Koty’ara!
Um
pássaro pequeno de plumagens avermelhada pousou em seu colo, depois voou para
um galho acima de nossas cabeças, de lá, em meu ombro. Olhando para mim, Koty’ara,
sorrindo, disse: “tua jornada está em benção, kop’wa abre-te as trilhas!”
Kop’wa
é uma espécie de espírito das matas. “Ele dança no canto dos yu’ë (uirapuru)”,
explicou-me Koty’ara. “Os yu’ë são ariscos, mas viram em você graça. É kop’wa deitando-te
benção!”
Kop’wa
é o canto de Uyr’ka para Wari, por ela lhe ter dado muitos filhos e muitas
filhas. Wari guardou o espírito de Kop’wa no yu’ë. Ao despertar do sol, quando
Uyr’ka faz tudo o que vemos e o que só os xamãs enxergam, Kop’wa acorda os
habitantes da floresta e os abençoa. Todas essas coisas, explicava-me Koty’ara.
Eu as ia anotando, conforme ela me explicava.
Koty’ara
é uma nativa e está nos guiando em nossa expedição. Devemos adentrar a floresta
em sua região mais densa para alcançar um grupo de nativos que vive isolado e
do qual temos poucas informações. Koty’ara é uma das poucas pessoas a ter a confiança
deles. Através dela tentaremos nos aproximar deste povo. Na noite anterior, ao
redor de um fogo, Koty’ara nos contou da criação de seu povo:
“Quando
ainda não éramos, Wari e Uyr’ka faziam e
desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é
visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI,
dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando
os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a
wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.
Então, Wari e Uyr’ka deitaram-se um no
outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e
Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os
rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a
cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De
Wari nasceram Ar’we (o homem) e Yã’koa
(mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou
Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente. Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de
Wari e Uyr’ka e descobriu Wari e
Uyr’ka deitando-se um no outro. Uyr’ka
encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs
veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros já não cantavam, os bichos de caça, já não
corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm
espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka
ia desfazer Ar’we e Yã’koa, Wari
aplacou sua ira. Ar’we e Yã’koa, para
agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa
Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari
e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada
com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs
visitam os tempos em que Wari e“Quando
ainda não éramos, Wari e Uyr’ka faziam e
desfaziam o dia e a noite, enxiam e esvaziavam tudo o que podemos ver e o que é
visto apenas pelos xamãs nos uterës (cerimônias xamânicas). E os xamãs, no UY’WARI,
dançam o fazer e o desfazer de Wari e Uyr’ka. E no princípio dos tempos, quando
os céus se avermelham, Uyr’ka descobriu a
wa’wari (vulva), de Wari. Wari descobriu o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.
Então, Wari e Uyr’ka deitaram-se um no
outro. Tudo o que se desfazia firmou-se no deitar-se um no outro de Wari e
Uyr’ka. Tudo que Wari e Uyr’ka preenchiam passaram a não mais esvaziarem-se. Os
rios passaram a correr sempre, as árvores passaram a ser sempre, os pássaros a
cantar sempre, os ventos, tudo passou a durar sempre. Wari, então deu à luz. De
Wari nasceram Ar’we (o homem) e Yã’koa
(mulher). Wari ensinou a Yã’koa cantar e tecer e preparar o peixe. Uyr’ka ensinou
Ar’we a caçar e levantar cabanas. E tudo era permanente. Ar’wytë, filho de Uyr’ka, subiu à morada de
Wari e Uyr’ka e descobriu Wari e
Uyr’ka deitando-se um no outro. Uyr’ka
encheu-se de ira e pôs-se a desfazer tudo o que vemos e tudo o que só os xamãs
veem. O rio já não corria, as árvores já não eram, os pássaros já não cantavam, os bichos de caça, já não
corriam nas matas. Tudo Uyr’ka ia desfazendo. Por isso dizemos que os brancos têm
espírito irado de Uyr’ka. Quando Uyr’ka
ia desfazer Ar’we e Yã’koa, Wari
aplacou sua ira. Ar’we e Yã’koa, para
agradar Wari, arrancaram os olhos de Ar’wytë e escondeu sua memória numa
Ar’keytë (chacrona). Ar’wytë é o ancestral de todos os xamãs, porque viu, Wari
e Uyr’ka deitando-se um no outro. Quando se bebe do chá de raízes de Ar’keytë misturada
com cascas de ucuúba e folhas de Ar’we Wari (uma qualidade de orquídea que Kop’wa também chama vulva de Wari), os xamãs
visitam os tempos em que Wari e
Uyr’ka faziam e desfaziam tudo o que
vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka.
Tudo o que morre o desfazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do
deitar-se um no outro, que os xamãs assistem nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka
descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka.
Nós nascemos de Wari, quando Uyr’ka
deita e brinca com Wari, quando Wari deita e brinca com Uyr’ka. Wari nos
protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear Wari, Uyr’ka faz tudo ser,
o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”
Naquele
dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus
cantos.
Uyr’ka
faziam e desfaziam tudo o que vemos e tudo que só os xamãs veem. Tudo o
que nasce é o fazer de Wari e Uyr’ka. Tudo o que morre o desfazer de Wari e
Uyr’ka. Tudo o que dura, dura do deitar-se um no outro, que os xamãs assistem
nas noites de UY’WARI, em que Uyr’ka descobre a wa’wari (vulva) de Wari e Wari
descobre o uy’ Uyr (pênis) de Uyr’ka. Nós
nascemos de Wari, quando Uyr’ka deita e brinca com Wari, quando Wari deita e
brinca com Uyr’ka. Wari nos protege da ira de Uyr’ka. Por isso, para presentear
Wari, Uyr’ka faz tudo ser, o que vemos e o que apenas os xamãs veem, toda manhã.”
Naquele
dia caminhamos sete quilômetros mata adentro. Os uirapurus guiavam-nos com seus
cantos.