segunda-feira, junho 14, 2021

GELO PASSANDO-SE POR ROCHEDO

 

Era destas noites de junho. Noites ao redor de fogueira, comendo pipoca, assando batata, tomando quentão com, os adultos, e sem, as crianças, cachaça. Noites de muita reza, cantoria, e causos de tia. E tia sempre começava: “Cumpadre ocê se alembra?” E foi numa destas noites que tia contou-nos: “Cumpadre ocê se alembra que os antigos por burla, roubavam boi pra fazer churrasco e convidava o dono pra festa? Então, fio de coronel Laurenciano, ocê se alembra de coronel Laurenciano, cumpadre? Homem de pouco assunto, prezador de sua honra. Fio de Laurenciano, o Nequinha, que casou com Sá Roslaine, de comadre Terência. Ocê se ricorda, cumpadre, de comadre Terência? Lógico que se lembra, ocê se lembra de arrastar asas pra cumadre Terência, cumpadre?” Esta observação de tia era um tanto ríspida “Então”, continuava tia, “Nequinha queria fazer homenagem a coronel Laurenciano e pôs-se de acordo com os companheiros e roubou um dos bois de coronel. Preparou festa e fez o convite chegar a coronel. Pelo tanto das horas, a festa comia solta, muita música, muita bebida, muita risada, casaizinhos de bobiça pelos cantos da casa... Coronel chegou com delegado e macacos dando voz de prisão. Nequinha pôs se a explicar a burla, mas não teve conversa, foi dormir no xilindró ele e os camaradas. E coronel pôs fim à festa.” E coronel se explicava: “Burla ou não, houve roubo, homenagem ou não, houve roubo. Eu não autorizei assarem um meu boi. Comer dele, mesmo sendo meu, seria compactuar com um roubo. E por minha honra não participo de mal feito. “E se os meus assim agem, que respondam.” É, cumpadre, coronel Laurentino era dado por seco, mas prezava sua honra.” O cumpadre das conversas de tia era tio que logo dedilhava a viola cantando: “[...] Hoje tudo tá mudado, pra ninguém isso é segredo/ A moral de certos homens está servindo de brinquedo/ Quando fala volta atrás muda a verdade por medo/ São simples montes de gelo que se passa por rochedo/ Pra encontrar muitos deles não precisa sair cedo”, de Tião Carreiro e Pardinho.

A justificativa do Trovão, do Abutres Motoclube, para participar do motomicidio de sábado é como gelo passando-se por rochedo. E tal evento nem foi uma burla, mas um acintoso crime de lesa-humanidade.

“O Abutre’s Moto Clube - Raça em Extinção esclarece aos seus integrantes, parceiros, amigos e admiradores, que sua participação na “[Motomicida] para Cristo” realizada no dia 12/06/21, foi única e exclusiva na condição de convidado, por sua notoriedade em toda a América Latina e receber a homenagem oferecida.” (Trovão, presidente)

Tião Carreiro e Pardinho estão certos: Não é preciso sair cedo para tropeçar em certas morais usadas como brinquedo.

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