domingo, junho 27, 2021

AMORES DE OUTRO MUNDO

 

Na minha adolescência, nutri um romance platônico com a modelo e atriz Magda Cotrofe. As poucas economias que juntava, consumia com minha musa.  Por sua causa, crie rusgas entre pai e mãe. Pendurei seu pôster da Playboy na porta do quarto. Mãe ofendida, requisitou a intervenção de pai. Pai foi ter comigo. Namorou um bom tempo minha garota, depois explicou a inconveniência do pôster: “Sua mãe, suas irmãs... Não fica bem... Deixa debaixo do travesseiro, entre suas coisas, para quando você estiver só...”. “Eh ai?”, indagou mãe. “O menino tem bom gosto!”, respondeu pai. Esta resposta rendeu dias de silêncio incomodo entre os dois. Por esta época, além da Cotrofe, eu nutria outro amor platônico por uma comadre de mãe, Maria Rita. Maria Rita tinha um lance quântico esotérico. Conversando com mãe, explicava-lhe que meu romance com a Cotrofe era ressonâncias de mundos paralelos: “Em algum desses mundos, o Niko e a Magda são irmãos, em outro colegas de escola, em outro namorados, mãe e filho...” Eu ouvia estas coisas de soslaio, de espreita, escondido, sacando Maria Rita, embebendo-me de seu perfume, alucinando-me de sua voz.  Neste mundo, a Cotrofe era apenas um papel em minha parede e Maria Rita uma presença intocável. A adolescência passou, mas minha capacidade de cair de amores não.  E, por estes dias, na ante sala do dentista, folheando uma revista,  me dei com uma amiga. Ela sorriu-me endossando um conjunto de lingerie lilás. Disfarçadamente arranquei a página da revista e a guardei para mim. Num outro mundo, e nele me estabeleço, ela já não endossa mais a lingerie e sela-me um demorado beijo.  

sábado, junho 26, 2021

DORMINDO COM O JAIR

 

Jair era avesso à boa higiene e não era novidade. No departamento, todos sabiam e comentavam.  E Jair não fazia questão nenhuma de esconder isso. Havia pronunciamentos dele a respeito dos hábitos de higiene, principalmente banho: “Quem gosta de tomar banho é índio, que não sabe fazer outra coisa”, “quem tem que tomar banho é preto catinguento”, “é mulher de vida fácil, que toma banho frequente”, “banho é coisa de fresco” Mesmo assim, tinha quem acreditasse que Jair pudesse-ser o superintendente do departamento de higiene, e foi levado ao cargo: “Ele só cheira mau! É orgânico”, “Ele tem mau hálito, mas é do estomago”, diziam. “Fará uma limpeza no órgão”, prometiam. Devemos lembrar, que Jair passara uma vida no setor de regulamentação e normas, sem apresentar uma única proposição. Com Jair o departamento de higiene tornou-se inadministrável.  O gerente de fiscalização do comércio anulava multas, desautorizava fiscais, posava ao lado de comerciantes multados. O gerente da qualidade dos alimentos propunha relevar a validade dos mesmos. Para o gerente de zoonose, só animais com pedigree mereciam cura. “Pedigrees, são de família, da família de bem. Aos vira-latas: o sacrifício!”, anunciava, sem pudor! Entre os atos do Jair e as iniciativas da vigilância sanitária o conflito era, dia-a-dia, mais patente. Jair contestava todas as ações do órgão e, de suas orientações, fazia tudo ao contraio. Em um evento para crianças, tirou caca do nariz, coçou a bunda, fez entender que não lavava as mãos ao usar o mictório e escrevia excrescências em portas de banheiro com a própria fezes.  E, pasmem, senhores, sob salva de palmas. Um pai chegou a dizer, entusiasmado: “O Jair é um mito de espontaneidade!” Não obstante a popularidade, começaram os buxixos, os descontentamentos, os questionamentos: “quem consegue dormir com o Jair?” “O Negão consegue!” “Aquela menina de cabelos vermelhos, a Espanhola, não sai do saco dele”. “E o Fabinho, da comunicação?” “O corregedor, também! Até disse que denuncias contra ele não têm peso.” E Jair vai por ai, espalhando seu mau cheiro, seu mau hálito, seu caráter mal, e por onde passa tem quem o aplauda.  “O problema, fii”, dizia vó, “não é dormir no chiqueiro: é passar a dormir com o porco.” “Quem dorme no chique”, explicava tia, “ainda sonha com um bom leito. Mas quem dorme com o porco é como ele, habituado com a lavagem.” A meu ver, os que dormem com o Jair são menos higiênicos que ele.

quinta-feira, junho 24, 2021

A PORCA DE SÁ ODORICA

 


“Cumpadre, cê se lembra?”. Quando ouvíamos esta expressão, já sabíamos: lá vinha um causo. “Cê se lembra de Raimundo, fio de Sá Odorica, que tinha uma porca de estimação. Ela tratava a bicha como filha. Tinha até nome a bendita. Chamava se Maria Rita. Cê se lembra, cumpadre de Sá Odorica? Quem esquece Sá Odorica! Sá Odorica era madrinha honorária dos órfãos das Irmãs da Imaculada. Um dia indo visitar o orfanato, levava consigo um cesto de pão, marmelada e queijo, para lanchar com os órfãos e órfãs. No caminho, Sá Odorica foi interpelada por uma senhora que lhe pediu esmola. E Sá Odorica deu-lhe algumas moedas e dos pães, da marmelada e do queijo. Dizem, que agradecida, a velha senhora deu-lhe Maria Rita. Mas voltemos a Raimundo, fii de Sá Odorica. Pois então, cumpadre, Raimundo de Sá Odorica andava amuado, encostado pelos cantos, ombros caídos, rastando pé, resmungando. Foi de Sá Odorica levar Raimundo em dona Dita. Cê se lembra de dona Dita, cumpadre? Lógico que se lembra, cumpadre! Num foi dona Dita que lhe fez aquela garrafada de melado, com ervas e raízes, de quando cê convalesceu, cumpadre. Foi sim cumpadre, oh si num foi! Então cumpadre, deu de Sá Odorica levar Raimundo em dona Dita. E dona Dita, assim dizem, consultou o mazelado, pousou a mão em sua cabeça, na testa, no peitoral, olhou fundo nos seus olhos, dentro de sua boca, sentiu cheiro de seu bafo, experimentou sua saliva, fez o rapazola levantar bem os braços. Depois, assim dizem, acendeu vela, pitou charuto, queimou ervas, e chamuscou fumaça no atempado, enquanto rezava avesmaria e crendeuspadres.   “É feitiço!” Disse em seguida, naquela voz rouca e sombria. Cê se lembra da voz de dona Dita, cumpadre, era de dar arrepio! “Este menino (numa voz sombria) está de quebranto de amor. Em São João, antes da meia noite, ele deve pular fogueira três vezes, e pedir a São João que lhe revele aquela que lhe tomou o coração. A cada vez que ele pular a fogueira, deve fazer esta oração: Glorioso São João Batista, que a Cristo batizou, revele-me numa fita quem meu coração roubou.” Cê se lembra cumpadre, foi das festa de São João, a festa mais bonita, não teve outra igual no tempo. E a história de Raimundo, que corria de orelha a orelha, atraiu grande público. Arrastando os pés como andava, poucos acreditavam que Raimundo, saltaria fogueira. E, a custo de fato, dona Dita o arrastou ao festejo. Lá pelas tantas, noite avançando, já se preparava o foguetório, a fogueira crepitava com o fogo dançando animado, parecia apenas ateado. Raimundo se arrastando, tomou de coragem. Num se sabe por que milagre o danado deu os três saltos rezando o combinado. No fim do terceiro salto, num é cumpadre, que o menino tava sarado! E para surpresa de todos, a leitoa de dona Dita, que era toda enfeitada de fitas, de seu colo deu um salto, e transformando-se numa moça das mais bonita a Raimundo enlaçou uma das fitas.” Era noite de São João, e tia sabia cada causo!  

quarta-feira, junho 23, 2021

Vivas ao Genocida

 

Em despedida de Pe Marco Aurélio

 

Pão dormido

Sem manteiga

Sem fatia de queijo

Sem expectativas

Bramidos lacônicos

Ruivar melancólico

Manhã cinza

chuvosa

Pálpebras pesadas

Olhos lagrimosos

Canção na radio

Sem missa

Café sem açúcar

Soluços

Mais um amigo que parte

- Era ainda um menino -

Entre estúpidas vivas

Ao genocida

quarta-feira, junho 16, 2021

Flor entre frestas

 

De entre frestas

acompanho-te a correr

a mão pelos cabelos

rosto, colo

seios

a espuma a escorrer

por teu corpo

envolvendo

crespa penugem  

produzindo um falso

véu

a esconder-me

rósea flor

 

Saias logo

destas águas que

te tomas de mim

e venhas pousar

em meus lábios

túmida flor

que entre frestas e espumas

escapa-me

 

 

 

 

segunda-feira, junho 14, 2021

GELO PASSANDO-SE POR ROCHEDO

 

Era destas noites de junho. Noites ao redor de fogueira, comendo pipoca, assando batata, tomando quentão com, os adultos, e sem, as crianças, cachaça. Noites de muita reza, cantoria, e causos de tia. E tia sempre começava: “Cumpadre ocê se alembra?” E foi numa destas noites que tia contou-nos: “Cumpadre ocê se alembra que os antigos por burla, roubavam boi pra fazer churrasco e convidava o dono pra festa? Então, fio de coronel Laurenciano, ocê se alembra de coronel Laurenciano, cumpadre? Homem de pouco assunto, prezador de sua honra. Fio de Laurenciano, o Nequinha, que casou com Sá Roslaine, de comadre Terência. Ocê se ricorda, cumpadre, de comadre Terência? Lógico que se lembra, ocê se lembra de arrastar asas pra cumadre Terência, cumpadre?” Esta observação de tia era um tanto ríspida “Então”, continuava tia, “Nequinha queria fazer homenagem a coronel Laurenciano e pôs-se de acordo com os companheiros e roubou um dos bois de coronel. Preparou festa e fez o convite chegar a coronel. Pelo tanto das horas, a festa comia solta, muita música, muita bebida, muita risada, casaizinhos de bobiça pelos cantos da casa... Coronel chegou com delegado e macacos dando voz de prisão. Nequinha pôs se a explicar a burla, mas não teve conversa, foi dormir no xilindró ele e os camaradas. E coronel pôs fim à festa.” E coronel se explicava: “Burla ou não, houve roubo, homenagem ou não, houve roubo. Eu não autorizei assarem um meu boi. Comer dele, mesmo sendo meu, seria compactuar com um roubo. E por minha honra não participo de mal feito. “E se os meus assim agem, que respondam.” É, cumpadre, coronel Laurentino era dado por seco, mas prezava sua honra.” O cumpadre das conversas de tia era tio que logo dedilhava a viola cantando: “[...] Hoje tudo tá mudado, pra ninguém isso é segredo/ A moral de certos homens está servindo de brinquedo/ Quando fala volta atrás muda a verdade por medo/ São simples montes de gelo que se passa por rochedo/ Pra encontrar muitos deles não precisa sair cedo”, de Tião Carreiro e Pardinho.

A justificativa do Trovão, do Abutres Motoclube, para participar do motomicidio de sábado é como gelo passando-se por rochedo. E tal evento nem foi uma burla, mas um acintoso crime de lesa-humanidade.

“O Abutre’s Moto Clube - Raça em Extinção esclarece aos seus integrantes, parceiros, amigos e admiradores, que sua participação na “[Motomicida] para Cristo” realizada no dia 12/06/21, foi única e exclusiva na condição de convidado, por sua notoriedade em toda a América Latina e receber a homenagem oferecida.” (Trovão, presidente)

Tião Carreiro e Pardinho estão certos: Não é preciso sair cedo para tropeçar em certas morais usadas como brinquedo.

NÃO BASTA LER O MUNDO É PRECISO ESCREVÊ-LO

 Meus queridos, minhas queridas, eu não sei fazer outra coisa que escrever. E não faço bem, bem sei. Não sou um exímio escritor, estou bem ciente disto. Escorrego com muita frequência no bom uso da gramática e peco com maior frequência no conteúdo de meus escritos. Sei bem que este espaço não é para textões, que ele se ajusta melhor a memes e imagens legendadas, mas julgo importante escrever, ler e não escrever é como fumar e não tragar, namoro sem intimidade, transa sem gozo... E ler não consiste em apenas folhear livros, revistas ou jornais, ler é observar o mundo, as pessoas, o que ocorre ante nossos sentidos e motiva-nos sensações, emoções, sentimentos, é perceber nossas reações e nossos posicionamentos ante a realidade que nos envolve, é o que Paulo Freire chama de leitura do mundo. É a escrita que torna o mundo - o psíquico, o subjetivo, o intersubjetivo - historizado. As pessoas costumam dizer: as História há de ensinar, a História há de julgar... Sem registro, não há história. No entanto, nem toda escrita garante a história, há escritas que são apagadas com o tempo, de muitas nem se faz caso. E neste espaço, em que textões são relevados, escrever é um exercício inócuo. Mas eu escrevo, e escrevo para ser lido. Tem quem gosta, tem quem não gosta do que escrevo. Fico contente em ambos os casos, quando, por parte dos desgostosos, não há ofensas. Não há motivos, amigos, amigas, de pedirem-me permissão, quando gostam de qualquer coisa minha para compartilha-la, o texto, uma vez publicado não pertence mais ao escritor, o texto é do leitor, foi produzido para ele, é ele quem decide o que fazer com o texto. "O leitor é responsável por aquilo que lê" (Euripides dos Santos). Digo isso porque uma amiga, dia desses, veio pedir-me permissão para compartilhar um meu texto. Não vejo necessidade disso.

 

domingo, junho 13, 2021

PESSOA LUZ

 Um tributo a Alexandre Guilherme

 

Não tenho receios de dizer que vim ao mundo para ser breve. Vim como exilado, como refugiado político. Portanto, vim para passar despercebido. Não sei como é o mundo de onde fui expulso, uns dizem ser Jardim, outros um nada absoluto. Há os que dizem que devo voltar a um ou outro, cumprida minha pena neste mundo. É, neste mundo sou um apenado, e cumpro minha pena de mal grado. Poucas coisas me satisfazem, tenho ojeriza a quase tudo. Vem-me, de quando e quando uma vontade de antecipar o salto no nada absoluto, uma vez que para o Jardim colocam-me prescrições que não atinjo. Mas mesmo não sentindo-me em casa, inda mais hoje que campeia  encômios ao ódio e à ignorância, há flores, há pássaros, há pessoas que me encantam e me empenham. Pessoas luzes, Faróis de humanidade brilhando e rompendo a densa tenebrosidade que nos assola, apontando rumos a um horizonte em que o Jardim não esteja além, mas em nossas mãos, em nossa capacidade criativa, em nossa capacidade de dar vida, cores, luz, musica ao mundo. Não tenho dúvida o Mestre e Maestro Alexandre Guilherme é destas pessoas luz a alentar-me o existir e a impor-me não desistir e crer que o Jardim em nossas mãos é possível. Prova do que digo é sua criação: CONCERTO DO JARUÁ. Uma luz rompe a densa noite que atravessamos e anuncia uma nova aurora.

Obrigado!, é pouco a ser dito, caro Alexandre.

 

https://www.youtube.com/watch?v=wppZMEFtcLw&t=431s

QUE CADELA PARIU ESTA BESTA?

 A cadela do fascismo está sempre no cio (Bertoldt Brecht)

 

     Não foi Bolsonaro que deu origem ao bolsonalismo. Bolsonaro apenas empresta seu nome a uma cadela que sempre se valeu das concepções fascio-nazistas para defender seus privilégios. Esta cadela sempre circulou entre nós destilando seu discurso contra os direitos trabalhistas, contra os movimentos sociais, contra as classes populares, promovendo a defesa de armas, o rigor da lei e a truculência das policias contra minorias e populachos, investindo contra as terras indígenas e quilombolas, em nome de seus interesses financistas, travestidos de defesa da família, da pátria, de Deus...

Esta cadela não é composta de ignaros, não: ela é bem formada. Dela participam médicos, engenheiros, professores, advogados, juízes, arquitetos, promotores, artistas, gente de boa formação acadêmica, com acesso a informação de qualidade. São pessoas articuladas, manejam o discurso intelectual para dissimular seus interesses, seduzem os incautos com seus currículos. Para darem corpo a seus interesses, servem-se de tipos como Bolsonaro. Bolsonaro é só um boneco de ventríloquo animando os que o bajulam em seu cercadinho, distraindo-nos com suas nescidades com ar de espontaneidade. A cadela mesmo não mostra seus dentes, geralmente apresenta-se isenta, neutra, “sem opinião formada”, evitando “tomar posição”, ou se desculpando: “eu não quis ofender, se alguém se sentiu ofendido, desculpe-me”, “eu até tenho mãe, irmã, filha, esposa...”, “eu até tenho um amigo, uma amiga ...”  Delegam então ao néscio de plantão manifestar sem pudor algum algumas de suas teses mais abjetas contra mulheres, negros, nativos, LGBTsQ+... Zanottos, Yamaguchis, Meneguessos, Wizards, Sorrentinos, Malafaias, Abravaneis, para ficarmos apenas nos que estão expostos, não são bolsonalistas, são desde sempre, em nossa história, expressões da Cadela sempre a parir quem fale e aja por ela: Bolsonaro é só mais um de seus ovos, e, cumprido seu papel, será devorado por quem o chocou.

quarta-feira, junho 02, 2021

AUTONOMIA

 Sou um ser humano: tudo aquilo que acontece a um ser humano concerne a mim também. (Cremes de Terêncio, em Kant: Fundamentação da metafísica dos costumes)

A ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida (KANT: Fundamentação da metafísica dos costumes).

 

     Antes da pandemia a discussão era sobre a autonomia ou liberdade de cátedra do professor. Com a pandemia a questão da autonomia voltou-se para a prática médica. Tem o professor de ensinar qualquer coisa a seu aluno? Tem o médico o direito de receitar qualquer coisa a seu paciente? Em que de fato consiste a autonomia?

O termo é apresentado por Emmanuel Kant, em 1785, em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, que tem como objetivo central: “a busca e fixação do princípio supremo da moralidade.” Kant defende a capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível, e tal capacidade tem sua expressividade na autonomia. Assim, a autonomia, para Kant, consiste na apresentação da razão para si mesma de uma lei moral que é válida para a vontade de todos os seres racionais.

Pensa Kant que a lei moral não pode ser imposta de fora ao homem, nem mesmo por Deus. O homem, ao seu parecer, está atrelado a uma legislação moral simplesmente pelo fato de que a voz que o chama para a obediência dessa legislação parte de seu próprio ser, de sua própria consciência. A autonomia, identificada, então, por Kant como sendo o fundamento da vontade diverge da heteronomia, que surge quando a razão é determinada por um interesse egoístico ou uma inclinação sensível “devo fazer tal coisa, porque quero uma tal outra.”

Para uma determinada ação ser autônoma ela não pode estar a serviço dos desejos pessoais de cada indivíduo, o que a tornaria condicionada e heterônoma. A ação autônoma se dá pela capacidade de escolher apenas aquilo que a razão, independente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom. (FMC, BA 36).

Em torno da autonomia, a pergunta que Kant se propõe é a seguinte: existe um imperativo que não está a serviço de qualquer fim subjetivo? E mais: há um imperativo capaz de expressar um mandamento absoluto e incondicionado da razão prática, ou vontade?

Ao lançar tal questionamento, Kant adverte que nós temos uma vontade imperfeita do ponto de vista subjetivo, isto é, uma vontade que se inclina facilmente aos desejos e a interesses contrários à razão. E a razão nos dita a agir sempre segundo o bem, que não se confunde (isto sou eu que estou a dizer), com a satisfação ou a comodidade. A autonomia consiste em agir não segundo o melhor a ser feito, mas segundo o que, de fato, guiado pela razão, se deve fazer.

Ao fim de sua empresa, conclui Kant que “o homem é um fim em si mesmo” e não pode ser utilizado como meio ou instrumento para a consecução de finalidades de outrem. “Ora, se os homens são fins em si mesmos, e não podem ser utilizados como meio para a obtenção de outros fins; se os homens são os únicos seres no mundo capazes de viver segundo as leis que eles próprios editam, daí se segue que só os homens têm dignidade; o que significa que eles não têm preço. O preço é o valor daquilo que pode ser substituído por outra coisa. Mas os homens em geral, e cada homem em particular, são propriamente insubstituíveis na vida.” (Fabio Konder COMPARATO. Ética, Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Companhia das Letras. 2006, p. 297)

Na busca de fundamentar a autonomia, Kant oferece um princípio, que ele nomeia imperativo categórico, para orientar a vida humana, em qualquer circunstância: “Age de forma a tratar a humanidade, não só em tua própria pessoa, mas na pessoa de qualquer outro, ao mesmo tempo como uma finalidade e jamais simplesmente como um meio” (in. COMPARATO, 297). Em outros termos: não faças ao outro aquilo que não farias a ti.

Neste sentido, a autonomia preconiza a capacidade de escolha, mas não de qualquer escolha, mas orientada por um princípio, que repetimos: não faças ao outro aquilo que não farias a ti.

Então, em que consiste a autonomia do professor: a de não desinformar, a de não ensinar conhecimentos destituídos de fontes verificáveis, prováveis, universalizados. Mesmo que numa perspectiva crítica e provocante o ensino não pode ser engodo ou demagogia. E em que consiste a autonomia do médico, não é a de prescrever qualquer medicamento ou terapêutica, mas em, fundado em conhecimentos consolidados, promover a saúde, a preservação, a melhor qualidade de vida de seus pacientes. Professores, vocês, em sua formação continuada, gostariam de ser formados por profissionais pouco consistentes em seus conhecimentos e que fundam seu ensino em estudos e pesquisas sem qualificação, sem referências, sem fontes, fundados apenas em suas suposições? E vocês médicos, tomariam medicamentos duvidosos? Se tratariam com profissionais que abrem mão de estudos e pesquisas qualificadas e adotam procedimentos personalistas?

A razão dita-nos apenas duas normas: Ousa conhecer! Faça ao outro o que esperas a ti!

            Sem conhecimento não há autonomia, que, ao fundo, consiste em oferecer ao outro aquilo que desejas receber: verdade, respeito, conhecimento, confiança ...