quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Gosto de ser visitado por meu passado

Gosto de ser visitado por meu passado, de tê-lo ao meu lado no ônibus ou a caminhar comigo pelas ruas e praças.

Gosto de sua companhia enquanto espero numa longa e interminável fila, entre as páginas de uma vaga leitura, numa boa conversa ao fim da tarde, numa flor seca entre os papéis.

Gosto quando, de um sorriso, um brinquedo, um encontro, uma paisagem, ele me conduz por remotas veredas, emoções longínquas.

Basta um nada. Sento-me à sacada e ei-lo a visitar-me num aceno que passa e segue o seu caminho.  Banho os pés longo o mar, olha-o na próxima onda: vem brincar com o menino a construir castelos. Caminho pela praça, e ele me sorri no sorriso da menina, vestígio de um adolescente amor.

Geralmente, de tudo rimos, numa risada boba... Outras vezes, restamos circunspectos, remoendo pequenos remorsos. São dias cinzas e tristes: de amizades desfeitas, partidas inesperadas, amores mal resolvidos.

 Gosto quando ele se acompanha das avós, dos avôs, dos tios, dos primos, irmãos ou amigos. Gosto quando ele me traz os almoços, os batismos, os casamentos, velórios, aniversários, os beijos ansiados, os abraços dados, os sorrisos arrancados, as lágrimas engolidas, escondidas, partilhadas num puro contentamento. Com meu passado passo horas, não as perco.

 Repentino e espontâneo, é companheiro, é mestre, é conselheiro. Às vezes faz-se de juiz, então é um tormento. Nada me decide, porém. Aponta-me erros e acertos, sucessos e fracassos, alegrias e tristezas; ilumina-me e deixa-me a escolha, o salto decisivo.

Gosto de ser visitado por meu passado. Nas incertezas do que virá, ele me ensina a confiar.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário